Opiniões relevantes de uma
mulher de relevo. Sobre Passos Coelho e os seus hipotéticos sucessores.
Sobre Puigdemont e um processo deslustrador da personagem,
tanto como dos participantes na tal autonomia da Catalunha, de que ficam os ameaços.
Maria João Avillez, uma
pessoa recta e firme, uma escritora igualmente firme. Dois artigos que sobressaem
pela nobreza de pensamento e de escrita. A não perder.
3/10/2017
1. Esperava más noticias, teve as piores.
“Veremos”, disse para si mesmo domingo à noite, no intervalo entre a
expectativa de o PSD passar o cabo de 2013 e a certeza de que ficaria aquém.
Depois, face à devastação nacional, reflectiu: partiria.
A decisão foi solitária, como
ele. “Uma decisão destas toma-se sozinho”, disse-me Pedro Passos Coelho na
madrugada de domingo, quando tentei apurar a devastação e descodificar-lhe o
discurso. Deixaria a liderança e o parlamento e tudo o mais em nome “da sua
responsabilidade” no desaire, apesar do carácter “local” destas eleições.
Quando? “O mais breve possível”.
Tinham passado sete
implacáveis anos de pressão sobre ele.
A costela transmontana
forneceu-lhe a resistência, a dureza, o valor da palavra, o papel do esforço, o
aço da convicção. Por de trás do olhar esverdeado e do sorriso cortês há mais
razão que coração mas morou sempre, da intenção ao gesto, uma férrea vontade e
uma imensa dose de auto-controlo.
Como na noite de domingo.
Como certamente ontem, na Rua de S. Caetano, face a uma plateia para a qual
olhou como sempre até aqui, sem réstea de ilusão. Se há coisa que em absoluto o
distingue, e não é de hoje, é o nunca ter sido capaz de alimentar – ou sequer
ter – qualquer ilusão sobre a natureza humana.
2. Talvez por se ter entregue totalmente ao país,
tinha menos para dar ao PSD. Talvez por ter ganho duas legislativas seguidas
contra tudo e todos (e da segunda vez sem proveito), enganou-se nos vaticínios.
Tropeçou nos timings, errou nas apostas de insucesso do adversário sem nunca
lhe ocorrer desistir da coerência do discurso e da sobriedade da atitude.
Preferindo quiçá a sua antiga pele de chefe da governação, não soube abrir o
PSD ou não foi capaz de cuidar dele de forma partidariamente mais sedutora e
politicamente mais eficaz. Adequada ao estado do país e ao momento do mundo.
Com mais gente e outra gente.
Talvez que saltar da
“Europa”, com ou sem aspas, e das suas grandes tribulações; talvez que trocar o
mundo e as suas desafiantes questões pelas distritais, concelhias, grandes
intrigas e pequenos umbigos de um partido na oposição, seja bem mais difícil do
que supõem os críticos de bancada. Mesmo assim. Estranhou-se a falta de
candidatos presidenciais, permanecem um inteiro mistério os bastidores destas
eleições. Que se passou? A verdade é que o seu cuidado no país e
(aparentemente) menos no seu partido, a fé na sua estratégia oposicionista, a
propensão natural para não abrir janelas nem frequentar o mundo, a imposição de
uma “distância” que podia intimidar ou confundir, foram fazendo estragos: no
PSD, nas sondagens, na militância, e não se sabe se nele próprio: a oposição –
armadilhada, ainda para mais – estava a transformar-se numa inutilidade.
Pedro Passos Coelho
cansou-se, desgostou-se, desiludiu-se? (Se é que algumas destas
coisas ocorreu de facto). O certo é que, apesar da cabeça invariavelmente bem
arrumada, da lucidez na escala das prioridades, da experiência e da
resistência, a partir de certa altura alguma coisa pareceu interpor-se entre um
dos seus mandamentos – saber sempre o chão que pisava – e a sua vontade
política. No caso, a sua vontade partidária.
Tentei aperceber-me deste
último mistério (doloroso como nos rosários) eleitoral: “Mas então eu havia de
interferir nas escolhas autárquicas dos dirigentes locais? Eleitos para
saberem, decidirem, escolherem?”. Pausa. Insisto. E as “suas” escolhas?
“Candidatos fracos? Era perguntar a algumas das estrelas do PSD, sondadas ou
convidadas, se estavam disponíveis… Não estiveram”.
3. As
pessoas sérias lembram-se, reconhecem, algumas agradecerão – gostem ou não dele
– a determinação meticulosa e corajosa, racional e resiliente como em 2011 ele
se instalou no olho de todos os furacões. E o venceu. Quatro anos e meio de
pressão non stop e massacres vários, desde a obrigação governamental
de acertar as contas e prestar provas delas lá fora, até delirantes humilhações
à base de manchetes falsas, irrevogáveis certezas de “segundos resgastes”,
coelhos enforcados nalguns sítios por onde passava, ódios orquestrados. Nada
disso distraiu nunca ou sequer comoveu este cavalheiro e ainda menos lhe
esmoreceu o ritmo ou confundiu o rumo. Pelos vistos ao eleitorado também não:
as últimas legislativas exibiram a vitória improvável da seriedade política
sobre os massacres, das contas certas sobre falsas certezas, de uma sólida
herança sob a forma da “folga” de alguns milhões (que muito confortou e serviu
os vindouros).
As pessoas mais distraídas já não se lembrarão, e há outras que ainda
hoje não se lembram mas um dia (a vida é assim, a política também), muitos
recordarão aquele tipo decente que com uma equipa e uma boa metade dos
portugueses salvou o país de catástrofes várias. Com sobriedade e boas
maneiras, ainda para mais.
Haverá melhor passaporte para o futuro?
Mesmo que tudo isto agora
lhe pareça, caro leitor, uma mera conversa de “passista” com ranço, olhe que
não é. É muito mais que isso: é um elogio não fúnebre. Tive muita
sorte em ter sido testemunha (sentada na primeira fila de tudo) da passada
política de Passos. Vi muito, sei algumas coisas, apercebi-me de outras,
lembro-me de tudo.
4. Não há
como não antecipar o porventura agora ainda mais irrelevante futuro que espera
o PSD. Nenhuns dos nomes de que se fala e dos que se pode ainda vir a falar
unirá o partido, argumento pesado sempre incessantemente disparado sobre Passos
Coelho, como um certificado de fracasso. Entre os que de fora querem a
destruição, o sumiço, o apagamento da marca PSD e os que de dentro irão tecer a
sua irrelevância, resta um débil sopro de esperança chamado ruptura geracional.
E mesmo assim.
Também não há como não prever a glória desta ou outra geringonça
socialista, o vento está-lhe de feição e o país, visivelmente comovido com ela
(mesmo que inconscientemente endividado).
Também me surge como irresistível não pensar na alegria – pessoal,
tanto quanto política – de Marcelo, mesmo que ele deteste e (muito) tema vir a
lidar com Rui Rio. E claro, há ainda o inimaginável, de tão amplo, alívio de
Costa. Marcelo e Costa foram, não se duvide, dois dos grandes obreiros (há outros)
da teia onde desde há seis anos se tenta asfixiar politicamente o agora
ex-líder do PSD e o próprio PSD.
5. E agora? Agora, Pedro Passos Coelho volta para
casa. Amargura? Olímpico: “Que ideia!” O futuro: “Não sei, mas não sou de
grandes necessidades”. Convites? “É sempre complicado convidar um
ex-primeiro-ministro para trabalhar. Não sei se teria o feitio…”. Projectos?
“Acabar o meu livro, que gostaria que já estivesse terminado”.
Com uma coisa ele irá,
sem dúvida, poder contar : com ele próprio. Como assinatura e retrato, se não
houvesse mais já não era modesto.
OBSERVADOR, 11/10/2017
1. Escrevo estas notas, breves mas não leves, no
decurso de dois acontecimentos que encenaram o dia de hoje e que embora de
natureza muito diferente, deixarão marca.
Cá dentro e lá fora.
Sejam quais forem as suas consequências, de um modo ou de outro, elas pesarão
sobre os dias. E por isso, sobre todos nós.
2. A hora a que redijo este texto, hoje, terça
feira de manhã, as nuvens adensam-se sobre o céu catalão, céu fechado sobre o
desastre. A inconstitucional cavalgada das autoridades catalãs põe em sentido
qualquer ser normalmente constituído. Todos os erros políticos foram
cometidos numa direcção de sentido único que é uma sombria incerteza. (Não
há livro de instruções porque não existem referências históricas, nem exemplos
nem precedentes de como agir ou que fazer). O mundo reteve porém que a Espanha soube estar a altura do que
significa — e simboliza — o gesto abrupto de Puigdemont e dos seus pares, e
usou de sabedoria na resposta que deu: unindo-se contra o desvario. Um não
forte e claríssimo. Sectores sempre tão sensíveis como a rua ou a media por
exemplo, recusaram a manipulação e a paixão, usando quase que a uma só voz a
recusa política a um imprevisivelmente perigoso estado de coisas. Um exemplo em
tempos disconformes, onde o conceito de nação anda esmorecido.
Dada a história de
Portugal, os seus suados oitocentos anos de vida, a sua posição geográfica, os
seus interesses estratégicos, as suas gritantes necessidades económicos, esperava-se
entre nós reação idêntica: que não houvesse margem para dúvidas que o país
recusava “aquela” independência. Para meu grande espanto não foi assim. Com
alta leviandade e alguma ignorância, privilegiou-se o ar do tempo, enfeitado de
(supostos) bons sentimentos e frases de efeito, em vez de atender ao essencial
que seria, a curto prazo, a muito previsível irrelevância de Portugal num
quadro federativo ibérico. É difícil negar ou sequer não ver que caso a
Catalunha se tornasse verdadeiramente independente, no dia seguinte o país e os
portugueses transformar-se-iam, automaticamente, numa pequena região da
Península Ibérica. Em vez de permanecermos o que sempre fomos desde há muito
séculos: uma nação independente, com as mesmas fronteiras, a mesma língua, a
mesma identidade, o mesmo povo.
Todo o dia de hoje — e
ontem, e anteontem...– ouvi falar de “divisões” em Barcelona e na Catalunha.
A palavra é óbvia – claro que há divisões –, mas é também cómoda e sobretudo
ardilosa. Convinha sublinhar o
desequilíbrio não só numérico como de vontades, entre tais divisões; lembrar
como o processo está desde o seu início anticonstitucionalmente armadilhado
contra a integridade do Estado espanhol; relembrar que a divisão começou por
ser semeada e adubada pelo lote de ilegalidades cometidas pelo governo de
Puigdemont. Havia certamente maneira mais engenhosa de alertar Madrid para os
estados de alma de uma percentagem de catalães. (E também havia meios melhores
e instrumentos mais adequados para lidar com os alçapões e as arestas deste
processo, do que a eleita pelo governo espanhol.)
E finalmente e voltando
ao início desta “sale histoire” paremos por momentos na desarmante parcialidade
com que foi votada a decisão do referendo, ou — voando sobre outros artifícios
pouco sérios – no anúncio, previsto para terça-feira à tarde, da declaração
unilateral da independência catalã.
Serei testemunha de um
golpe de Estado moderno quando logo à tarde me sentar diante da televisão e
assistir a ele em directo e ao vivo?
3. No plano interno, a intenção de Pedro Santana Lopes se
candidatar a liderança do seu partido, caso se concretize mesmo, é uma notícia.
Pelo seu passado no PSD , o seu currículo político, a sua história no país,
Santana Lopes não é qualquer pessoa. Há boas e más recordações dele mas muito
antes delas, há aquilo que lhe deu um estatuto na família partidária a que
pertence desde sempre: antiguidade, fidelidade, talento político, intuição
alerta, coragem, desassombro. Nunca se comoveu com a esquerda e que me lembre
nunca namorou com ela e ainda menos lhe cedeu. Cada coisa no seu sítio, Santana
esteve sempre no dele. E depois há o resto, também estamos lembrados,
precipitações, emoções, humores em alta, humores em baixa, efervescências.
Seja como for, a sua entrada em cena irá proporcionar um debate
político interessante com Rui Rio — com um pouco de sorte, talvez substancial.
Nada têm a ver um com o outro — o que ajuda ao confronto — nem ideologicamente,
nem intelectualmente, nem humanamente. Será revelador ver que PSD sairá da
contenda caso o partido ainda seja capaz de “sair” para algum lado. Sem se
deixar arrumar numa arrecadação da memória ou anular aos poucos. Trabalhos de
Hércules. Para ficar por aqui, porque depois falta saber se o país está
interessado em olhar outra vez para o PSD, liderado por um destes dois
senhores.
4. Última hora:
não, Puigdemont não declarou a independência mas não baixou a guarda. Foi mais
hábil que isso: “suspendeu” o processo, o que não pressupõe uma marcha atrás.
Falou em “diálogo”, o que não envolve um compromisso. E citou ajudas
internacionais e mencionou mediadores, a que chamou “todos”, o que fez dele um
moderado. Ou seja, o chefe do governo catalão entreabriu abriu uma porta que
porém nada do que disse permite abrir de vez.
Intervalo.
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