Guardo este texto de Nuno
Pacheco - Reinaldo Ferreira, um poeta a relembrar - como mais um de muito interesse, na sua precisão
de dados sobre o poeta e o destino de poemas que Reinaldo Ferreira escreveu e
que foram cantados por tanta gente conhecida.
Reinaldo Ferreira morrera um
ano antes de eu chegar a Lourenço Marques e do seu livro, publicado nesse ano
de 1960, falavam Rui Knopfli e Eugénio Lisboa, no convívio breve que chegámos a
ter, de esplanada aos sábados após o cinema dos hábitos lourençomarquinos da
cidade trabalhadora. Também Knopfli publicara “O País dos Outros”, em
59, que enviara para o seu amigo Rui Lacerda, pai dos meus filhos Ricardo,
Paula e João, que eu lera com muito entusiasmo. Daí, o encanto desses primeiros
anos de algum convívio em Lourenço Marques, que os incidentes do percurso
distanciaram. Mas devo ter emprestado o meu Reinaldo Ferreira da altura, pois
que a edição que tenho hoje é a de 98, também referenciada por Nuno Pacheco,
oferecida pelo meu segundo marido, que sabe quanto custa perder livros que
amamos. E concordo com Nuno Pacheco: Reinaldo Ferreira é bem um poeta a
relembrar, no peculiar de uma poesia simultaneamente concisa e densa de tensão
e sentido fatalista, em que avultam caprichos retóricos de musicalidade e
sombra. E tédio, afinal, na incoerência da vida de destino indecifrado. Um
exemplo:
"Eu, Rosie, eu se falasse eu dir-te-ia
Que partout, everywhere, em toda a parte,
A vida égale, idêntica, the same,
É sempre um esforço inútil,
Um voo cego a nada.
Mas dancemos; dancemos
Já que temos
A valsa começada
E o Nada
Deve acabar-se também,
Como todas as coisas.
Tu pensas
Nas vantagens imensas
De um par
Que paga sem falar;
Eu, nauseado e grogue,
Eu penso, vê lá bem,
Em Arles e na orelha de Van Gogh...
E assim entre o que eu penso e o que tu sentes
A ponte que nos une - é estar ausentes."
Que partout, everywhere, em toda a parte,
A vida égale, idêntica, the same,
É sempre um esforço inútil,
Um voo cego a nada.
Mas dancemos; dancemos
Já que temos
A valsa começada
E o Nada
Deve acabar-se também,
Como todas as coisas.
Tu pensas
Nas vantagens imensas
De um par
Que paga sem falar;
Eu, nauseado e grogue,
Eu penso, vê lá bem,
Em Arles e na orelha de Van Gogh...
E assim entre o que eu penso e o que tu sentes
A ponte que nos une - é estar ausentes."
OPINIÃO
Reinaldo Ferreira, um
poeta a relembrar
A obra de Reinaldo Ferreira foi breve mas de tal modo forte que levou
até a que o comparassem a António Nobre ou a Fernando Pessoa.
Nuno Pacheco
Público, 28 de Setembro de 2017
Reinaldo Ferreira, co-autor
de Uma casa portuguesa teve duas facetas criativas: a de autor de
canções ligeiras destinadas à rádio ou ao teatro de revista em Moçambique,
onde vivia e morreu; e a de poeta, de obra breve mas de tal modo
forte que levou até a que o comparassem a António Nobre ou a Fernando Pessoa,
como o fizeram José Régio (num estudo analítico na primeira edição da sua obra
poética), António José Saraiva e Óscar Lopes.
Nascido Reinaldo Edgar de
Azevedo e Silva Ferreira, em 20 de Março de 1922, em Barcelona (por um acaso
devido às andanças do pai, o célebre Repórter X, também Reinaldo
Ferreira de seu nome), estudou no Porto e chegou a Moçambique, à então Lourenço
Marques (hoje Maputo), com 19 anos, onde concluiu o 7.º ano do liceu.
Funcionário público, imergiu na boémia da época. Guilherme de Melo,
jornalista e escritor, ali seu contemporâneo e amigo, escreveu que Reinaldo
estava já então “perfeitamente integrado no dia-a-dia Lourenço-marquino” mas
não fora por ele absorvido. “No fundo, é um europeu – pelo nascimento, pela
cultura, pela mentalidade. E como tal permanecerá até que a morte chegue.” E
chegou cedo, aos 37 anos, em 30 de Junho de 1959. Um cancro no pulmão.
Em vida, os seus poemas
foram apenas publicados em jornais e revistas. Logo após a sua morte,
amigos reuniram-se para os editar em livro. E assim sucedeu, primeiro em
Moçambique, pela Imprensa Nacional, no dia do primeiro aniversário da sua
morte, em 1960; e depois em Lisboa, em 1962, pela Portugália, com o referido
ensaio de José Régio e introdução e notas de Eugénio Lisboa. Depois delas,
o livro Poemas (único e póstumo) de Reinaldo Ferreira só teve uma
outra edição, em 1998, com chancela da Vega de Assírio Bacelar, com
prefácio (já citado) de Guilherme de Melo.
O livro incluía, na
verdade, quatro livros, reunindo poemas publicados, inéditos, inacabados: I,
Um Voo Cego a Nada; II, Poemas Infernais; III, Poemas do Natal e da Paixão de
Cristo; e IV, Dispersos. E se as canções ligeiras que ali ia escrevendo
tiveram expressão pública com ele vivo (além de Uma casa portuguesa,
também Kanimambo, Piripiri ou Magaíça),
principalmente na voz de João Maria Tudella, cantor e seu amigo, as
outras canções a ele ligadas foram compostas, todas elas, a partir do
livro Poemas. A mais conhecida é Menina dos Olhos Tristes, que
foi gravada por Luís Cília (1965), Adriano Correia de Oliveira (1968), José Afonso (1969), Manuel Freire (1970) e Daniel (1970).
Fausto Bordalo Dias gravou Rosie (1977), Amélia Muge gravou Natal (em
1972, numa composição de parceria com a sua irmã Teresa Muge) e João Maria
Tudella cantou e gravou, em 1969, Um sossego mais largo, Flor de lapela e Quero um cavalo de várias cores. Esta viria
mais tarde a ser também gravada por Frei Hermano da Câmara e António Pedro Braga, entre outros.
Amália, por sua vez,
além de Uma casa portuguesa,
gravou ainda Medo e Viuvinha, ambos com música de Alain
Oulman. Viuvinha, apesar de nos créditos surgir como “popular”, é
atribuído a Reinaldo por Vítor Pavão dos Santos (socorrendo-se de fontes
“das noites de copos de Lourenço Marques”), no seu livro O Fado da Tua
Voz, Amália e os Poetas (Bertrand, 2014). Medo, porém,
acarreta uma injustiça. Gravado em 1966 e esquecido nos arquivos da Valentim de
Carvalho, quando finalmente é editado em disco (Segredo, 1997), Reinaldo surge
como “Reginaldo Faria” ou “Reinaldo Faria”. Já nos projectos Amália Hoje (2009)
e Amália, As Vozes do Fado (2015, onde Gisela João o canta), esse
prodigioso poema que é Medo surge enfim creditado a Reinaldo
Ferreira.
Há ainda Receita para
fazer um herói: “Tome-se um homem,/ Feito de nada, como nós,/ E em tamanho
natural./ Embeba-se-lhe a carne,/ Lentamente,/ Duma certeza aguda, irracional,/
Intensa como o ódio ou como a fome./ Depois, perto do fim,/ Agite-se um pendão/
E toque-se um clarim.// Serve-se morto.” Mário Viegas gravou-o em disco (1975),
dizendo-o; e o grupo punk brasileiro Ira! fez dele uma canção (1988), mas
sem o creditar logo ao autor, porque Edgar Scandurra, líder do grupo, então a
cumprir o serviço militar, recebeu-o de outro soldado que lhe disse que o
escrevera.
Dos tão expressivos e
profundos poemas que deixou, Reinaldo Ferreira teve apenas um inscrito a bronze
na sua lápide. Definitivo: “Mínimo sou./ Mas quando ao Nada empresto/ A
minha elementar realidade,/ O Nada é só o resto”. Ler Reinaldo Ferreira é
salvá-lo do esquecimento. Leiam-no.
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