Termo tabu, à vista, quando se fala em imigrações…
Espanha viu o número de imigrantes
multiplicar-se por dez na década de 2000. A maioria é de Marrocos e da América
Latina. O sentimento anti-imigração começou a crescer, mas a criminalidade não
subiu.
JOÃO FRANCISCO
GOMES Texto
OBSERVADOR, 03 abr. 2025, 19:323
Índice
O boom da
imigração em Espanha entre 2000 e 2010
Sentimento
anti-imigração sobe e extrema-direita aproveita a boleia
Políticas
migratórias mais flexíveis, com oposição da extrema-direita
Criminalidade
e imigração? Dados mostram que não há ligação
Este é o
primeiro de um conjunto de trabalhos alargados do Observador sobre a realidade
da imigração na Europa. Numa altura em que o tema das migrações está novamente no topo da
agenda mediática, em que o debate sobre os imigrantes se intensifica entre os
partidos políticos portugueses e em que a discussão em torno da “percepção
de insegurança” em algumas zonas da cidade de Lisboa fez ressurgir o
discurso que associa a criminalidade à imigração, o Observador procura
traçar um retrato da imigração em vários países europeus. Quantos
imigrantes vivem em cada país e de onde vêm? Que políticas migratórias existem
em cada país? Como é que a imigração influenciou o debate público e moldou a
esfera político-partidária? E que relação pode ser encontrada entre a imigração
e a criminalidade? Neste primeiro artigo, olhamos para o caso de ESPANHA.
O boom
da imigração em Espanha entre 2000 e 2010
Historicamente,
Espanha foi essencialmente um país de emigração. Até à reta final de um século
XX marcado por uma história conturbada que incluiu a Guerra Civil (1936-1939) e
a longa ditadura franquista, Espanha teve um saldo migratório negativo, isto é,
eram mais os espanhóis que deixavam o país em busca de vidas melhores do que
aqueles que chegavam a Espanha vindos do estrangeiro. A
situação começou a inverter-se de forma acentuada no final do século XX e, de
forma ainda mais evidente, na viragem do século — com vários factores,
incluindo a transição para a democracia, a adesão à Comunidade Económica
Europeia (CEE), o desenvolvimento económico e as mudanças dos fluxos
migratórios globais a terem grande influência na transformação do país rumo a
uma sociedade diversa e multicultural.
“Espanha, tal como Portugal, até ao século XXI, foi
sobretudo um país de emigração. Ou seja, de emigrantes espanhóis, que saíam de
Espanha devido às condições económicas em Espanha, especialmente em
determinadas regiões”, explica ao Observador a
investigadora espanhola Blanca Garcés, especialista em migrações no
Barcelona Centre for International Affairs (CIDOB), um dos mais reputados
centros de investigação europeus na área das relações internacionais. Garcés, que tem dedicado a sua carreira
académica à investigação dos fluxos migratórios na Europa e do discurso
político sobre as migrações e o asilo no continente europeu, destaca
ainda a grande prevalência da
“migração campo-cidade” no século XX em Espanha. O fenómeno do êxodo rural, que
também marcou Portugal no século passado, levou grandes porções da população a
abandonarem regiões como a Andaluzia, Aragão ou a Galiza e a deslocarem-se
para as grandes cidades espanholas, com destaque para Madrid e Barcelona.
“Tudo isto mudou no final dos anos 90, mas
especialmente no início dos anos 2000. Espanha passou a ser um país de
imigração e, além disso, passou a ser um país de imigração de um momento para o
outro”, sustenta Blanca Garcés. “Até ao ano 2000, a percentagem de população nascida no
estrangeiro era irrelevante, irrisória, e, em poucos anos, até 2007, 2008,
aumentou e passámos a ser um país diverso. Não só o saldo migratório líquido
passou a ser positivo — havia mais entradas do que saídas —, como, além disso,
a população mudou. Passámos a ter uma população diversa, um país diverso.”
Os
números falam por si. Em 1981, viviam em Espanha 198.042 cidadãos estrangeiros,
que representavam apenas 0,52% da população total, segundo dados do governo espanhol. Década e meia depois, em
1996, este número era já de 522.314 estrangeiros, que representavam 1,37% da
população total do país. Daí em diante, como pode ver no gráfico abaixo, o
número de estrangeiros a viver em Espanha subiu a um ritmo muito acentuado. Numa década, o número
multiplicou-se por dez e, em 2008, já viviam mais de 5,2 milhões de
estrangeiros em Espanha, representando mais de 11% da população.
O número de imigrantes a viver em Espanha registou alguma estagnação
a partir de 2009 — e mesmo
uma quebra a partir de 2012, chegando a situar-se em torno dos 4,5 milhões de
estrangeiros a residir no país entre 2016 e 2018. Isto aconteceu na
sequência da crise económica global, que começou em 2008 e se fez
sentir com especial intensidade na Europa nos anos que se seguiram. Segundo uma resenha histórica do próprio governo espanhol, a crise afectou especialmente a população
imigrante, “como consequência, fundamentalmente, da sua maior exposição a sectores
que foram mais afectados pela crise económica, como a construção”.
Como recorda Blanca
Garcés, “no norte da Europa, a imigração dos anos 60 e 70 foi, sobretudo, uma
imigração urbana, uma imigração que ia, sobretudo, trabalhar na
indústria” nas grandes cidades. Contudo, o caso espanhol apresenta algumas
diferenças: “Se for a uma pequena
povoação no meio de Castela, se for ao café da terra, é de uma família de
origens migrantes”, explica a especialista. Se é verdade que, “numericamente”, a imigração está mais presente
nas zonas urbanas, Garcés sublinha que existe uma importante presença da
imigração no mundo rural espanhol, “ligada ao despovoamento” dessas zonas. “Os
cafés fecharam e quem é que os abriu? Os que estavam dispostos. Nos Pirenéus,
por exemplo, há muita imigração, ligada a duas questões: o turismo nessa zona e
o sector dos cuidados aos mais velhos.”
Blanca Garcés não tem dúvidas de que “o crescimento
económico de Espanha está directamente ligado à imigração” que chegou ao país
nas últimas décadas. “Se não tivessem
entrado os milhões de imigrantes que entraram nos últimos 20 anos em Espanha,
não tínhamos tido o crescimento económico que tivemos”, afirma. “Isso é válido tanto para os anos 2000
como para os últimos anos”, acrescenta, destacando que o
recente crescimento económico de Espanha, sobretudo em comparação com outros
países europeus, deve muito à imigração.
"Espanha passou a ser um país de imigração e, além disso, passou a
ser um país de imigração de um momento para o outro. Até ao ano 2000, a
percentagem de população nascida no estrangeiro era irrelevante, irrisória, e,
em poucos anos, até 2007, 2008, aumentou e passámos a ser um país diverso." Blanca
Garcés, investigadora especializada em migrações
(Índice)
“O
crescimento, em parte, assenta sobretudo numa série de sectores que dependem
destes trabalhadores migrantes. São sectores, muitos deles, de baixa
produtividade, com trabalhos precários, que os nacionais já não querem fazer:
agricultura, construção, sector dos cuidados, hotelaria, sector turístico
em termos gerais”, sustenta a especialista do
CIDOB. “É aqui que trabalha a população
migrante e a economia espanhola assenta, em grande parte, nestes sectores.”
A entrada de
Espanha na CEE, em 1986 (juntamente com Portugal), na sequência da transição para a
democracia, contribuiu para o desenvolvimento económico do país e, por
conseguinte, terá ajudado a atrair novos imigrantes. Ainda assim,
argumenta Blanca Garcés, não é aí que devem ser encontradas as principais
explicações para o aumento da imigração, já que uma parte significativa dos
imigrantes que vivem em Espanha tem origem noutros países europeus — Reino Unido, Itália, Roménia e
Alemanha encontram-se no top-15 dos principais países de
partida dos imigrantes que residem em Espanha, um processo de imigração intra-europeia facilitado
pela abertura de fronteiras dentro do espaço comunitário.
Para compreender
melhor o fenómeno da imigração actual em Espanha, é imperioso olhar para os principais
países de origem dos imigrantes que ali vivem. Da lista, destacam-se três
origens fundamentais, além de alguns países da Europa ocidental: Marrocos, Roménia e a América Latina.
Destes três,
o fenómeno mais óbvio será o da América Latina: mais de 1,5 milhões dos
estrangeiros que vivem em Espanha nasceram na América Central ou na América do
Sul. Em traços gerais, as razões pelas quais uma boa parte dos imigrantes
em Espanha tem origem na América Latina, são as mesmas pelas quais uma
grande fatia dos imigrantes em Portugal veio do Brasil e dos PALOP: o passado
colonial e as proximidades culturais e linguísticas.
“Em Portugal, à
excepção do Brasil, as colónias africanas tornaram-se independentes muito
mais recentemente do que no caso espanhol. Temos laços coloniais muito
anteriores”, compara Blanca Garcés. “Mas, acima de tudo, há a proximidade
linguística, a cultura. E há uma questão fundamental: a maioria dos cidadãos
latino-americanos pode entrar em Espanha, e na União Europeia em geral, sem
necessidade de visto. Por isso, digo sempre que Espanha tem duas
fronteiras. A fronteira sul, com Marrocos, uma fronteira fechada e cada vez
mais fechada; e a fronteira atlântica, que é uma fronteira absolutamente aberta.
Os cidadãos latino-americanos podem chegar a Espanha sem necessidade de cruzar
nenhuma fronteira irregular. Chegam através de Barajas, chegam pelos
aeroportos.”
No caso de Marrocos, que continua hoje em dia a ser o país mais
representado entre a comunidade imigrante em Espanha, tem mais nuances. “Também
há uma relação colonial com Marrocos, por Ceuta e Melilla e pelo Saara Ocidental”,
assinala Blanca Garcés. “Nos
anos 80 e 90, já havia imigrantes
marroquinos, por
exemplo, a trabalhar na agricultura, no sul de Espanha, na Andaluzia. Por isso,
aí há também um laço histórico, um movimento histórico de população.”
As coisas
mudaram em 1992, quando, na sequência da integração europeia de Espanha, passou a ser
exigido visto aos cidadãos marroquinos para poderem entrar no território
espanhol. “Até ao ano de 1992, os marroquinos podiam
entrar livremente e voltar. Entravam, trabalhavam uns meses na agricultura e
voltavam. No momento em que foi imposto o visto e já não puderam voltar, muitos
ficaram”, afirma Blanca Garcés. Além disso, ainda como herança das décadas
em que o território marroquino esteve dividido em protectorados, entre Espanha
e França, existe uma grande presença marroquina em França. “Desde pequena que via os marroquinos a cruzar
Espanha no verão, para passar férias em Marrocos”, recorda a especialista. “Há todo um movimento de
população, seja em direcção a França, seja a trabalhar historicamente na
agricultura em Espanha, que facilitou esta imigração. Quando se fechou a
fronteira com os vistos, manteve-se,
seja de forma irregular ou através de reunificação familiar.”
"Os cidadãos latino-americanos podem chegar a Espanha sem
necessidade de cruzar nenhuma fronteira irregular. Chegam através de Barajas,
chegam pelos aeroportos." Blanca Garcés, investigadora especializada em migrações
Índice
No gráfico dos países mais representados entre a imigração presente em
Espanha destaca-se ainda a Roménia — e, em menor grau, a Bulgária. Nos anos 2000, quando houve esta chegada
importante de imigrantes, houve também
muitos romenos e búlgaros que vieram trabalhar para Espanha”, salienta
Blanca Garcés. “Isto, agora, é menor,
porque muitos voltaram à Roménia e outros foram para outros países europeus com
melhores condições laborais.”
Sentimento
anti-imigração sobe e extrema-direita aproveita a boleia
Uma
sondagem realizada no final de 2024 pelo Instituto 40dB para o
El País e a Cadena Ser traça um retrato das percepções dos espanhóis
sobre a imigração e ajuda a compreender o debate público em torno do assunto no
país. Um dado que salta à vista é a diferença entre a
realidade e a percepção: de
acordo com a sondagem, os
espanhóis acreditam, em média, que a percentagem de imigrantes a viver em
Espanha é de 30,2%, quando na verdade é de 14%
(considerando apenas as pessoas com nacionalidade estrangeira que nasceram
noutro país) ou de 19,1% (considerando também as pessoas que nasceram noutro
país e que têm nacionalidade espanhola). Mais
de metade dos inquiridos (57,2%) acredita que há “demasiados” imigrantes em
Espanha, enquanto apenas 25,5% acreditam que há um número “adequado” e 4,1% que
há “poucos”.
Aos inquiridos foi também
pedido que escolhessem, entre uma lista de 12 conceitos, aqueles que mais
associam à imigração: seis eram conceitos negativos (insegurança, sobrecarga dos serviços públicos,
conflitualidade social, criminalidade, desemprego e perda de identidade
cultural); seis eram positivos (diversidade
cultural, crescimento demográfico, tolerância, progresso económico, abertura
global, inovação). Entre os seis mais
votados, cinco eram negativos. Os dois conceitos mais votados foram a insegurança
(30%) e a sobrecarga de serviços públicos
(27%). Só em terceiro
lugar surgiu um conceito positivo (diversidade cultural, com 23%), logo seguido da conflitualidade social
(21%), da criminalidade (19%) e o desemprego (17%).
▲ A
fronteira com Marrocos é um dos principais pontos críticos Reduan/EPA
(Índice)
Em sentido contrário, a
experiência pessoal dos espanhóis em relação à imigração é muito mais positiva: a maioria dos inquiridos tem
contacto com imigrantes na sua vida quotidiana, seja porque são vizinhos
(75,6%), porque contactam com eles em serviços de saúde ou hotelaria (74%), em
actividades de lazer (56,3%), no emprego ou estudos (51%) ou ainda no seu
círculo de amigos (50,6%). Em
todos esses contextos, diz o estudo citado pelo El País, a maioria dos
inquiridos tem experiências positivas — até entre os eleitores de partidos de
extrema-direita como o Vox e o recém-criado Se Acabó La Fiesta (SALF).
Se a maioria dos inquiridos diz que lhe seria
indiferente a existência de imigrantes nos seus círculos mais próximos, há uma variação quando são questionados sobre se gostariam de que os
seus filhos casassem com imigrantes: 49% veem com bons olhos ter um genro ou
nora de outro país europeu, mas apenas 22,8% e 25,8% aceitariam de bom grado um
genro ou nora do Magrebe ou da África subsaariana, respectivamente. Nesta
questão, a diferença entre eleitores à esquerda e à direita é mais evidente.
A sondagem, cujos resultados
pode ler mais detalhe aqui,
revela vários dados adicionais, incluindo o facto de a perspetiva
anti-imigração estar a disseminar-se especialmente entre os jovens rapazes da
Geração Z, entre os 18 e os 27 anos de idade: por exemplo, 75% acreditam que os
imigrantes recebem demasiadas ajudas públicas.
O El País recorda ainda o estudo recente feito pelo Conselho Europeu para as Relações
Internacionais, que alertava para uma “deriva perigosa rumo a uma
concepção étnica da europeidade”. Segundo
aquele jornal, vários episódios dos últimos meses na política espanhola mostram
como essa concepção também está crescentemente a ganhar adeptos em Espanha,
incluindo o caso recente em que um dirigente do Vox atribuiu erradamente um
crime violento a um imigrante (viria, depois, a descobrir-se que o autor do
crime não tinha qualquer ligação à comunidade imigrante) ou as múltiplas vezes
que Alvise Pérez, fundador do SALF, procurou associar vários crimes ao aumento do
número de imigrantes em Espanha.
"Toda a gente
tem uns filhos, uma casa ou uns avós que são cuidados por uma mulher que vem de
um país latino-americano. (...) De facto, todos estamos rodeados de pessoas
de origem latino-americana que nos tornam a vida mais fácil." Blanca Garcés, investigadora especializada em
migrações
(Índice)
Entre os eleitores dos partidos da direita (PP) e da
extrema-direita (Vox e SALF) — cujos líderes mais vezes repetem discursos que podem
ser interpretados como anti-imigração, que vão
desde a simples referência ao “efeito chamada” da política de imigração às mais
radicais alegações de “invasão” —, a rejeição
dos imigrantes é mais significativa: 93,4%
dos eleitores do SALF e 86,1% dos eleitores do Vox acreditam que há
“demasiados” imigrantes em Espanha. Entre os eleitores dos partidos da
esquerda, esta percentagem situa-se em torno dos 25%.
Apesar do retrato traçado por esta sondagem, a
investigadora Blanca Garcés, que tem estudado o fenómeno do debate público
sobre a imigração em vários países da Europa, tem uma perspectiva relativamente mais optimista
sobre a situação em Espanha — embora reconheça que existe discriminação contra
os imigrantes no país.
“Há discriminação, sim”, explica Blanca Garcés,
sublinhando que os imigrantes “estão nos postos de trabalho mais mal pagos do
mercado laboral”. Ainda assim, diz a investigadora, os imigrantes “não são considerados um problema”, sobretudo no que diz
respeito à experiência pessoal dos espanhóis. “Toda a gente tem uns filhos, uma casa ou uns avós que são cuidados
por uma mulher que vem de um país latino-americano”, sustenta a
académica. Os imigrantes,
concretamente os que chegam da América Latina, “não são vistos como uma ameaça,
não são vistos como culturalmente distintos, não são vistos como um problema”.
“De facto,
todos estamos rodeados de pessoas de origem latino-americana que nos tornam a
vida mais fácil. Essa é uma das razões pelas quais a imigração, em Espanha, não
tem sido um tema especialmente politizado, especialmente visto como algo
negativo”, acrescenta Blanca Garcés, considerando que a visão mais positiva dos espanhóis
em relação à imigração “tem a ver com o
facto de esta imigração, em grande parte, vir da América Latina e ser percepcionada
como culturalmente e linguisticamente próxima”. Ao contrário de Portugal, onde tem crescido o número de
imigrantes oriundos da Índia, Bangladesh e Nepal, o chamado “Indostão” não
surge na lista das principais regiões de origem dos imigrantes — embora
haja algumas comunidades significativas da Ásia, como os chineses e os
paquistaneses. De acordo com Blanca Garcés, estas populações
têm uma implantação considerável em alguns bairros, onde são donos de pequenos
minimercados, e em profissões como estafetas de entrega de comida.
▲ O Vox, liderado por Santiago Abascal, não surgiu como
partido anti-imigração, mas adotou esse discurso posteriormente FERNANDO
VILLAR/EPA
(CONTINUA)