domingo, 27 de fevereiro de 2011

El-Rei Seleuco

Tema do incesto:
Excertos (principais) do Auto de “El-Rei Seleuco” de Luís de Camões:
(Essencialmente de expressão lírica)


Entra El-Rei Seleuco, com a Rainha Estratónica.

Rei: Senhora, desde que a ventura
Me quis dar-vos por mulher
Sinto-me rejuvenescer;
Porque em vossa formosura
Perde a velhice o seu ser.
Um homem velho, cansado,
Não tem força nem vigor,
Para em si sentir amor,
Se não é que estou mudado,
Com vosso ser, noutra cor.
Muito grande dita tem
A mulher que é formosa.
Rainha: Senhor, grande; mas porém
Se a tal é virtuosa,
Quer-lhe a Ventura mor bem.
(…….)

Rainha: Senhor, há dias que sinto
No Príncipe Antioco
Certo descontentamento.
Dera alguma coisa a troco
De saber seu sentimento.
Vejo-lhe amarelo o rosto,
Ou de triste ou de doente;
Ou ele anda mal disposto,
Ou lá tem certo desgosto
Que o não deixa ser contente.
Mande, Senhor, Vossa Alteza
A chamá-lo por alguém;
Saberemos que mal tem,
Se é doença de tristeza
De que nasce, ou de que vem.
Rei: Certo que eu me maravilho
Do que vos ouço dizer.
Que mal pode nele haver?
Ide dizer a meu filho
Que me venha logo ver.
………..

Entra o Príncipe Antioco, com seu pajem por nome Leocádio
Príncipe: Leocádio, se és avisado,
E não te falta saber,
Saberás dar-me a entender:
Quem ama desesperado,
Que fim espera haver?
Pajem: Senhor, não,
Mas porém por que razão
Lhe convém sabê-lo ou de quê?
Príncipe: Pergunto-te a conclusão;
Não me perguntes porquê.
Porque é minha pena tal
E de tão estranho ser
Que me hei-de deixar morrer;
E por não cuidar no mal,
Não ouso de o dizer.
Que maneira de tormento
Tão estranho e evidente,
Que nem cuidar se consente!
Porque o mesmo pensamento
Há medo do mal que sente.
Pajem: Não entendo a Vossa Alteza.
Príncipe: Assim importa à minha dor.
Pajem: E por que razão, Senhor?
Príncipe: Para que seja a tristeza
Castigo do meu temor.
Porque ordena
O Amor que me condena,
Que se haja de sentir
E sem dizer nem ouvir.
Bem-aventurada a pena
Que se pode descobrir!
Oh! Caso grande e medonho
Oh! Duro tormento fero!
Verdade é isto que eu quero?
Não é verdade mas sonho
De que acordar não espero.
…………………………
Rei: Filho, como andais assim?
Que tanto desgosto tomo
De vos ver como vos vi!
Príncipe: Não sei eu tanto de mim
Que possa saber o como.
Dias há já, Senhor, que ando
Mal disposto, sem saber
Este mal que possa ser;
Que se nele estou cuidando,
Quase me vejo morrer.
Rei: Pois, filho, será razão
Que meus físicos vos vejam.
Príncipe: Os físicos, Senhor, não;
Que os males que em mim estão,
São curas (=cuidados) que me sobejam.
Rainha: Deitai-vos; que na verdade
Um corpo, deitado e manso,
Descansa à sua vontade.
Príncipe: Senhora, esta enfermidade
Não se cura com descanso.
…………………………………………………..

Entra a Rainha com uma criada por nome Frolalta e diz
Rainha: Frolalta, como ficava
Antioco em tu te vindo?
Frolalta: Ficava-se despedindo
Da vida que então levava,
E assim seus dias cumprindo.
Rainha: Frolalta, pois que és discreta,
Nada te posso encobrir;
Porque, se queres sentir,
A uma mulher discreta
Tudo se há-de descobrir.
O dia que entrei aqui,
Que a Seleuco recebi,
Logo nesse mesmo dia
No Príncipe, filho, vi
Os olhos com que me via.
Este princípio sofri-lho,
Para ver se se mudava;
Antes, mais se acrescentava.
Eu amava-o como filho,
E ele doutr’ arte me amava.
Agora vejo-o no fim
Por se me não declarar.
E pois já a isso vim,
A morte que o levar,
Me leve também a mim.
Porque já que a minha sorte
Foi tão crua e desabrida,
Que me não quer dar saída,
Sejamos juntos na morte
Pois o não somos na vida.
Oh! Quem me mandou casar,
Para ver tal crueldade!
Ninguém venda a liberdade,
Pois não pode resgatar
Onde não tem a vontade.
Que não há mor desvario,
Que o forçado casamento
Por alcançar alto assento;
Que enfim, todo o senhorio
Está no contentamento.
……………………………………..

Rei: Neste mal, que não compreendo,
Que meio dais de conselho?
Físico: Senhor, nada dele entendo.
E supondo que o entenda
Quisera não entendê-lo.
Rei: Porquê?
Físico: Porque tenho entendido
O pior de entender,
Para o que possa ser:
Porque anda, Senhor, perdido
De amores por minha mulher.
Rei: Santo Deus! Quê? Tal amor
Lhe dá doença tão fera?!
Que remédio achais melhor?
Físico: Forçado será que morra,
Para que minha honra não morra.
Rei: Pois como? A um só herdeiro
Deste Reino não dareis
Vossa mulher, pois podeis,
Que tudo faz o dinheiro?!
Pois este , não o enjeiteis;
Dai-lha, porque eu espero
Dar-vos dinheiro e honra,
Quanto eu para ele quero.
Físico: Não tira o muito dinheiro
A mácula da desonra.
Rei: Ora bem pouco defeito
É pequice conhecida,
Quando deixa de ser feito,
Porque com ele dais vida
A quem vos dará proveito.
Físico: Quão facilmente porfia
Quem em nunca tal se viu!
Do conselho que me deu
Vossa Alteza que faria
Se agora fosse eu?
Rei: A mulher que eu tivesse
Dar-lha-ia. Oxalá
Que ele a Rainha quisesse!
Físico: Pois dai-lha, se vos parece,
Que por ela morto está.
Rei: Que me dizeis?
Físico: A verdade.
Rei: Sem dúvida tal sentistes?
Físico: Sem dúvida, sem falsidade.
Pois, Senhor, agora tomai
Os conselhos que me destes.
Rei: Certamente eu o veria
Em tudo quanto falava.
Como o vistes? Por que via?
Físico: No pulso, que se alterava,
Se a via ou a ouvia.
Rei: Que maneira há-de haver?
Que eu decerto me maravilho
Possa mais o amor do filho
Do que pode o da mulher!
Finalmente hei-de lha dar,
Que a ambos conheço o centro (=o íntimo)
Quero-o ir levantar
E iremos para dentro
Neste caso praticar.
……………………………………………….
Entra El-Rei e Antioco com a Rainha pela mão, e diz
Rei: Que mais há i que esperar?
Olhai que estranheza vai
O muito amor ordenar:
Ir-se o filho enamorar
De uma mulher de seu Pai!
Querer bem foi sua dor,
Negar-lha será crueldade;
Assim que já foi bondade
Usar eu de tal amor,
E de tal humanidade.
Ela deixou de reinar
Como fazia primeiro,
Para com ele se casar;
E por amor verdadeiro
Tudo se pode deixar.
Eu que nela tinha posto
Todo o bem de meu cuidado,
Deixei mais que ela há deixado;
Que mais se deixa no gosto,
Que no poderoso estado.
Mas já que tudo isto vemos,
Haja festas de prazer,
As que melhor possam ser,
Porque em tão grandes extremos,
Extremos se hão-de fazer.
Haja cantos para ouvir,
Jogos, prazeres sem fundo;
Porque se quereis sentir,
Deste modo entrou o mundo
E assim há-de sair.
(…)

Nenhum comentário: