quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Salero megalómano

A minha amiga anda num rebuliço de excitação, lembrando as suas qualidades de profetisa de há muitos anos a esta parte. E assim nos pegámos, que eu também sempre que posso, profetizo, não sei como é que ela achou que só ela é que profetizava. Só pode ser pela sua elegância salerosa, descendente das raças que lêem a sina. Mas expliquei-lhe que, por ser mais baixa e gorda, não me eximo a dizer coisas, que aliás muitos outros disseram e continuam dizendo, que é o que sabemos mais: dizer. E por muito que se diga, por muito que fique dito, não passa disso, de ditos.
Disse. “Dixi”, se quiser dizer com mais pose, e assim revelar que se pode mergulhar no mundo dos antigos, que tanto se fartaram de dizer. Foi o próprio Cícero que lançou para a posteridade o “O tempora! O mores!” que ainda hoje há muitos que repetem, até mesmo a brasileira Cidinha Campos, que, absolutamente sem papas na língua, a propósito do tema do leite para os pobrezinhos, se alargou em considerandos sobre os que mamam e mais ainda todos os habituais da corrupção.
Desta vez, o que provocou o discurso inflamado da minha amiga foi a respeito da violência dos filmes para a infância, como um bom ponto de partida para os desvios morais juvenis. Sempre culpara a sociedade por isso, pela indiferença e a apatia com que se aceitam tais programas nas televisões, que se prolongam em telenovelas de exibição de atitudes marcadas por irracional deselegância juvenil, para com os mais velhos apáticos ante a grosseria inútil de uma juventude que mais não tem para dar a não ser isso.
Disse a minha amiga que há vinte e mais anos já preconizava a torpeza da agressividade actual, que vem em notícias diárias, de gente nova matando, estropeando os próprios pais, e eu voltei a lembrar – coisa que faço há largos anos também – a responsabilidade das doutrinas dinamizadas há muito, de bondade para com as crianças, que chamam mais a atenção para os seus direitos do que para os seus deveres e que invertem totalmente os papéis, tanto dos pedagogos como dos discípulos, com o sentido da liberdade proporcionando o dilatar desregrado – as mais das vezes desbragado - de experiências e de auto-suficiências de aprendizes de feiticeiro, sem passarem pelo cadinho do conhecimento, muitas vezes travão da irracionalidade. Muitos filmes mesmo - como “O Clube dos Poetas Mortos” - traduzem essa amplitude de liberdade, coroada por uma aura de encanto em sátira contra a burguesia nos seus anquilosamentos preconceituosos e dirigistas.
Muitas outras causas há - entre as quais o esbatimento do significado de família - de chegarmos ao actual estado de decadência social quase se diria selvática, se não tivéssemos confiança, apesar de tudo, nas competências das várias instituições, que poderão contribuir sempre para limar as arestas das convulsões que tanto encolerizaram hoje a minha amiga.
Mas a minha amiga também descrê das competências institucionais, "dixit".

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