domingo, 20 de fevereiro de 2011

Um dia na vida de…

É vulgar para muitos o lançamento de um livro, do seu livro. Para mim, embora não inédito, constitui acontecimento vivido em pânico. Ou, pelo menos, stress.
Habituada que estou à minha “prisão” diária, de espaço limitado a um circular próximo, é em casa que tenho o meu mundo, de que não abstraio os prazeres viageiros concedidos pela televisão ou pela Internet, é no café que, por momentos, me liberto da casa, quer em breves paragens de diálogo apressado, com a família e os amigos – quase diariamente com a minha amiga, embora em tempo cada vez mais condicionado pelas contingências dos respectivos mundos caseiros - quer em cada vez mais efémeras paragens solitárias de convívio com os autores, nas leituras do meu agrado. Tudo muito breve, tudo muito belo também, como música que nos acompanha na vida, em notas várias de amor ou escapes de humor, a que se não dá atenção, no ferrete de outras ambições, e que são, afinal, os alicerces de uma felicidade real, que só reconheceremos, ingratos que somos, quando por vezes eles se desmoronam.
Os poetas e demais escritores mais sensíveis ao absurdo que é a vida de toda a gente, condenada irremediavelmente por uma drástica lei exterior aos desígnios humanos, criarão obras de mais ou menos fundas reflexões, ironias ou enredos trágicos ou monstruosos, em torno desse efémero sem sentido, ou de experiências vividas de crueldades ou torturas, engendradas por mentes humanas. Obras muitas vezes compostas no intuito de inverter situações repugnantes, de apelo às consciências políticas. Tais os livros de Soljenitsin, de Kafka, de Sartre, de Pessoa… E hoje, mais do que nunca, mas menos do que amanhã, hélas, somos bombardeados com uma realidade alucinante, nas injúrias sociais em que vivemos, sem tréguas, e que é descodificado diariamente pelos encarregados mediáticos dessa descodificação.
À medida que envelhecemos, vamos abrindo mais os olhos sobre o mundo que vai ruindo, o mundo que nos traz a morte de gente com saúde há pouco, de gente envelhecendo na solidão, de gente maltratada, de gente que, vivendo melhor, não escapará também à sentença da vida. E temos pena, pelos filhos, pelos netos, embora admirando todos os que lutam corajosamente ou na inércia contra o irremediável.
Foi um dia diferente o que vivi ontem, no stress da expectativa, no alimentar de esperanças de vender muitos livros, na consciência do fracasso económico - eterno gulag nas minhas desditas existenciais - na aceitação dele pela sobreposição de outros valores que preencheram plenamente os meus afectos: a presença da família, o apoio de alguns amigos, como eco fantástico de tempos vividos em comum, uma sessão de encantamento, nos textos produzidos, no à-vontade e graça da minha filha Paula, na mordacidade e elegância expositiva de Salles da Fonseca, no discurso preciso da apresentadora da Chiado Editora – Marisa – no apoio logístico do meu filho Ricardo e do meu genro Joaquim - o sempre eficiente Quim, que com pertinente razão me chama de santa - no próprio comportamento sossegado dos meus quatro netitos pequeninos, o último, o Sebastião, dormindo, na obrigação dos seus três mesinhos, e na presença atenta das minhas duas netas maiores. Foi isso que valeu para mim.
O resto… fica no silêncio das expectativas, apesar de tudo nunca perdidas. Porque foi de apreço e reconhecimento pelo valor da obra publicada, o que se disse então.
Eis os textos da sessão, com pena de não ter gravado o da apresentadora da Chiado Editora, pelo menos no referente ao meu “Maravilhoso Mundo…”:
O primeiro a ler o seu texto foi o Dr. Salles da Fonseca, após a breve exposição da representante da Chiado Editora:

LANÇAMENTO
O MARAVILHOSO MUNDO DAS
“LENDAS DE SANTOS”
DE
EÇA DE QUEIROZ

APRESENTAÇÃO – 19FEV11

«AUDÁCIA – eis o melhor substantivo para definir a atitude da Autora, a muito Prezada Professora Berta Brás, ao convidar para apresentador do seu estudo literário um economista mais afoito nas estatísticas, gráficos e modelos de desenvolvimento do que nas subtilezas da arte literária.
LOUCURA – eis o melhor substantivo para definir a aceitação desse convite.
Mas como é com audácia e loucura que se constroem as Nações, eis-nos a cumprir o nosso desígnio de patriotas canónicos ungidos pelo sal e pela pimenta que dão sabor à vida pós-moderna em que hoje sobrevivemos.
E se tais condimentos podem fazer a diferença entre uma rotina tristemente cumpridora das obrigações necessárias ao ganho do sustento e uma vida geradora de obras que alimentem o espírito alheio, então convenhamos que na escrita também há que distinguir uma lista telefónica dum romance de Tolstoi ou de Dostoievsky. É que em todos esses resultados do prelo abundam as personagens mas é o enredo e o estilo da escrita que os distingue.
É, pois, a estas diferenças que me vou dedicar. E se o enredo também existe numa telenovela, resta a pergunta: o que é o estilo?
Neto e sobrinho de escritores, tive muitas oportunidades de os ouvir falar sobre essas questões e se todos nós sabemos distinguir perfeitamente o estilo dos diferentes Autores, confessemos a nossa incapacidade para os definir sinteticamente. É que o estilo não é axiomático; carece de demonstração.
Numa pequena ilustração de cena familiar, conto a história que se passou com o meu Avô e comigo. Já definitivamente acamado em casa dos meus Pais (onde eu ainda vivia), chegava a ter o quarto atafulhado com os livros que lhe íamos buscar a pedido à sua grande biblioteca. Uns lia, outros consultava e com a gentileza que o caracterizava, pedia para os irmos devolvendo às estantes a que os tínhamos ido buscar. Mas uns havia que iam ficando sem devolução e ele relia-os, relia-os... até que um dia, a propósito de um livro de Camilo e outro do Eça já mais do que manuseados e quase a desfazerem-se aos bocados, lhe disse:
- Oh Avô! Não sabe esses livros já de cor? Não conhece já as histórias de trás para a frente e da frente para trás? Não quer outros, para variar?
E ele, com a simpatia que era o seu timbre e manteve até final, respondeu-me:
- Sim, sei tudo de cor e salteado mas eu não me interesso pelo enredo; do que eu gosto mesmo é do estilo.
É claro que eu já sabia o que era o estilo mas também é claro que já nessa altura sentia grandes dificuldades na definição do de cada um desses Autores. Eu já andava pelas matemáticas e economias mas sempre gostei muito de conversar com o meu Avô. Não só porque gostava muito dele como Avô mas também porque ele falava de «coisas» muito diferentes das que eu aprendera na minha vida académica. E não deixei fugir a oportunidade de lhe perguntar o que é o estilo:
- É um ponto que está aqui em vez de estar ali; são umas reticências que prolongam o raciocínio até ao infinito; é a composição da frase; é o discurso directo; é a erudição ou a expressão vernácula... Só lendo se percebe. Esse é o grande prazer da leitura dos livros bem escritos; os mal escritos são pesadelos.
Eis o prazer sublime que dá a boa literatura: o do estilo.
E Eça tem um estilo muito característico, nomeadamente pelo recheio de discursos directos e indirectos mas totalmente plausíveis, pelas expressões sarcásticas, pela ironia, pela caricatura, enfim, o inconfundível estilo queiroziano que todos conhecemos da crítica a uma decadência que ele via como originária da vacuidade da mensagem política da Casa reinante e da ilusão em que vivia a classe dominante papagaia de imitação da dita vacuidade. É dessa sociedade fútil que Eça nos traça um perfil dramático no seu pequeníssimo conto JOSÉ MATIAS, é dos «preciosos ridículos» que em quase toda a sua obra nos dá exemplos magistrais.
Mas há outro Eça! O das LENDAS DE SANTOS, o de O CRIME DO PADRE AMARO. E que têm estas obras em comum? Eis o cerne de grande polémica e do livro que agora apresento: o que foram os escritos anteriores sobre os mesmos temas? Fonte bibliográfica, de inspiração, tradução, alvo de plágio,... Copy-paste?
Terá LA FAUTE DE L’ABBE MOURET, de Zola, sido a fonte inspiradora de Eça para o seu romance de Leiria? Foi uma tradução adaptada à portugalidade? Foi quê?
Numa época como a nossa em que não se pode apresentar um trabalho académico sem lauta bibliografia, fácil se torna compreender Eça quando repesca temas alheios, estrangeiros, com vista a levar os portugueses a enfiar carapuças. E ai está ele no seu melhor: a dizer que o rei vai nu; ele, ilustre mundano, a denunciar uma sociedade que considera tacanha, mesquinha, saloia, oca, vaidosa e... cheia de brasões mas iletrada. E porque quer fazer da portuguesa uma sociedade moderna, mundana, erudita, traz para a nossa língua os temas que lhe parecem melhor servir essa causa de modernização cosmopolita e de erradicação da saloiada.
Creio que é nesta perspectiva que devemos ler Eça de Queiroz: como um aguilhão que espevita a sociedade portuguesa no sentido da modernidade, da erudição, duma prática útil e não mais fútil.
Eça sabia por certo que no ano de inauguração do Observatório de Greenwich e da descoberta do espermatozóide, na Universidade de Coimbra ainda era proibido dissecar cadáveres para se ter a certeza de que se não esquartejava a alma... Essa mesma Universidade em que os Lentes eram obrigatoriamente recrutados entre os seus próprios doutorados com rejeição de quaisquer candidatos provenientes de outras Universidades. Sempre (e só) mais do mesmo. Estratificação do conhecimento não deveria ter sido anquilosamento. Mas foi!
Eça quis abanar uma sociedade liderada por licenciados anquilosados; Eça sabia que o tempo urgia pois ou abanava a sociedade para que ela reagisse ou a sociedade portuguesa se afundaria num estertor que poria em causa a Nação.
Recordemos o humor com que Eça saudou a modernização do ensino em Portugal quando o liberalismo laicizou os curricula e introduziu a educação física referindo que «se substituiu o Crucifixo pelo espaldar» …
Tenho para mim que este abanão social foi a sua grande missão – desenhando mesmo reflexos de cariz político. Em terminologia moderna, Eça de Queiroz abdicou do hard power tipicamente militar que fazia (e faz) revoluções empunhando fuzis e usou o soft power, a escrita, para cabalmente exercer o smart power. E uma revolução de mentalidades é muito mais profunda do que a conseguida com fuzis. Então, malgré tout et pour cause, considero que Eça foi um revolucionário.
Então, o que dizer do outro Eça, o das LENDAS DE SANTOS e de outros escritos não socialmente críticos? A resposta encontra-a o leitor logo no início do livro da Professora Berta Brás quando cita uma carta de Eça a Oliveira Martins em que afirma: “... por probidade de artista, eu tenho uma ideia de me limitar a escrever contos para crianças e vidas dos grandes Santos”. Aqui está a revelação do enigma: o nosso revolucionário era, afinal, um artista. Quod erat demonstrandum. Por outras palavras, eis-nos chegados ao que já todos sabíamos: Eça era um artista.
É, portanto, de arte que trata o livro da Professora Berta Brás – arte explicada, teorizada, uma verdadeira tese académica transformada em documento acessível aos não-académicos. E é precisamente aqui que reside um dos grandes méritos deste livro: traz a cultura para a rua, desmantela a sacro-santidade da Academia, (aquele tipo de instituição que pela voz de Carlos Drummond de Andrade «coroa com igual zelo o talento e a ausência dele»). Sim, esta é uma obra que democratiza a erudição. Faz com que o simples Contribuinte não tenha que se indumentar de borla e capelo para aceder ao que habitualmente lhe está vedado na trivialidade da vida comum. Mais: presta um inestimável serviço à língua portuguesa publicando uma tese cujo original está escrito na nossa língua e não – como agora exige Bolonha – em inglês, esse Esperanto da era actual.
Sim, porque uma língua só tem possibilidades de sobreviver e de se desenvolver se nela se expressar o pensamento inovador. E o pensamento inovador mais parametrizado é o que consta dos estudos científicos, das teses académicas, da literatura.
Também por isso se torna imprescindível que desçam à rua os estudos dos pensadores e artistas portugueses e que isso se faça na nossa língua e não noutra.
Nacionalismo? Sim, pois claro, com toda a certeza! Mas um nacionalismo de base linguística e não propriamente em função de cada Estado. Mais do que a actual lusofonia, imaginemos o mundo lusíada no qual venham a caber todos aqueles cujos antepassados se exprimiam em português mas que a História conduziu a outros idiomas; relançando um mundo lusíada cosmopolita, não nos quedemos pelo folclórico «galo de Barcelos», enveredemos pelas tecnologias de ponta, levemos a Ciência por diante, publicitemos novos escritores, poetas, pintores, músicos e cantores mas sobretudo façamo-lo em português!
Por tudo isto, faço votos para que o exemplo da professora Berta Brás frutifique de modo a que os escaparates sejam pequenos para cada vez mais obras originais em língua portuguesa de cada vez mais autores.
É que será com o pensamento e não com porta-aviões que havemos de exercer o poder inteligente, o tal smart power que há pouco referi. Essa será a diferença entre uma Nação que se debate num estertor de pessimismo induzido pelos trágicos telejornais que se saciam na má governança como piranha em boi passante e aquela Nação pensadora que tem muito mais que fazer do que dar crédito a quem a pretende arrastar pelas ruas da amargura.
Ler o Eça de Queiroz crítico social é certamente muito mais agradável e útil do que ouvir as diatribes parlamentares dos jogos do «tira-te tu para me pôr eu»; ler o Eça artista das LENDAS DE SANTOS é um acto de cultura de grande sentido estético, literário e, quase diria, histórico; ler as LENDAS DE SANTOS explicadas pela Professora Berta Brás é tudo isso e muito mais pois fica-se a saber o que Eça não escreveu e apenas deixou nas entrelinhas. É como termos alguém a contar-nos uma história mas não ao estilo das avós a tricotar e sim uma história explicada, com a arte do autor exuberantemente exposta de um modo que nunca pensáramos ser possível. E dando por nós a pensar: - Ah, pois é! Como é que eu nunca tinha reparado nisso?
O S. Julião Hospitaleiro de Flaubert comparado com o nosso gigantesco «routier» S. Cristóvão de Eça de Queiroz…
… e por aqui estaria eu a seguir com muitos dos exemplos que a Professora Berta Brás apresenta neste seu belo trabalho. Mas não o faço pois isso seria cortar o prazer da leitura recatada, descrever o paladar do molho, aspergir o aroma que vos espera…
O que vos espera é uma peça de arte descrevendo outra peça de arte; o que vos espera é uma leitura de prazer, sem militância, sem outro objectivo que não isso mesmo: o prazer.
E de tudo isto me fui lembrando ao longo da leitura deste tão interessante livro. Desejo que enxerguem outras perspectivas – quiçá mais interessantes – durante a leitura que certamente vão iniciar ainda hoje.
Mas, praticamente no final, não resisto a uma transcrição que me parece inultrapassável: «à simplicidade e linearidade da lenda flaubertiana, opõe-se a prolixidade, a repetição, o emaranhado de uma intriga fantástica da lenda queirosiana, que tão depressa remete para o maravilhoso cristão e popular, como para a ficção cavaleiresca, para a narrativa histórica, como ainda para os tratados de ideologias humanitárias, deixando entrever a sensibilidade e a subjectividade do narrador».
Ou seja, a escrita enxuta de Flaubert em contraste com a teia narrativa do nosso revolucionário de pena em riste aqui auto-transposto para a sua mais sublime missão, aquela que a todos delicia, a de inquestionável artista.
Antes de concluir, uma pequena informação para os ungidos, os que já leram o livro: que pena eu não conseguir identificar algum Mendes natural de Mortágua. A bon entendeur…
Finalmente – e agora, sim, estou a chegar ao fim – proponho que encerremos esta dissertação queirosiana orando a Santo Onofre, patrono do que tanto nos falta:
Ó meu glorioso Santo Onofre,
Que ao monte Tabor subiste,
De hera verde te vestiste,
Pela Santíssima Trindade bradaste
E Jesus Cristo vos apareceu e vos disse:
- Que quereis, amado servo meu?
-Peço-Vos pão para comer,
Casa para habitar
E dinheiro para dar
A todo o infeliz
Que de mim se lembrar…
(200 dias de indulgências por cada vez que se recite esta oração seguida de um Padre Nosso e de uma Avé Maria).
E com este rebuçado a todos deixo por certo de apetite aguçado.
Obrigado pela atenção e boa leitura! »
Henrique Salles da Fonseca
…………………………..

A minha filha Paula Lacerda expôs a seguir:

Apresentação de Paula Lacerda:

«Apeteceu-me fazer um plano do meu texto, tal como tento ensiná-lo aos meus alunos, sobretudo no Secundário, para que vão interiorizando regras e algum rigor na estruturação do pensamento e do discurso, até que toda esta organização lhes saia espontânea e naturalmente.
Foi o próprio subtítulo do livro aqui em causa que me inspirou (“ficção, intertextualidade, imagística”), para além do trabalho nele apresentado de divisão em partes, com planificação em tópicos da lenda de S. Cristóvão, e do “esboço de um plano” não só desta como da Lenda de S. Frei Gil, elaborados pelo próprio Eça de Queirós.
Começarei então por indicar a matéria de que vou falar e o tom escolhido para o fazer:
a) como a autora é a “Mã” (abreviatura vulgarmente usada entre o bando dos cinco), a casa de que nascemos, e a minha experiência familiar me vai, seguramente, condicionar, pareceu-me lógico deixar-me ir por esse caminho;
b) como, no entanto, também a vida profissional nos conduz (e a minha se prende com a tentativa diária de motivação para a leitura literária), é natural seguir alguns outros;
c) e porque é de um livro que se trata e as histórias se enredam como teias de Penélope (imagem contida no Prefácio da autora, citada de um outro estudioso da literatura), sinto-me no direito de entrelaçar, “ao sabor das cerejas”, memórias, comentários ao quotidiano e considerações mais objectivas de análise ao livro sobre este “Maravilhoso Mundo…”.
Finda a Introdução, vamos então ao Desenvolvimento, centrando-nos, sobretudo, como disse no início, no subtítulo da obra.
Anuncia o Prefácio ser natural, em qualquer obra literária, que se misturem vozes de outros autores, criando um espaço onde confluem ideias, países e épocas, ao qual os leitores não permanecem insensíveis. Na evolução literária reconhece-se, constante, este processo de osmose: nas regras mais ou menos definidas pelos movimentos, nos mitos e temas inspiradores, nas preocupações que se repetem, sempre ditos, contudo, de outra maneira.
Imitar não constitui descrédito; apenas a literatura satírica aproveita para se rir, mais uma vez, sobretudo dos exageros e artificialismos. Mesmo as escolas literárias que preconizavam a liberdade e a originalidade foram criando modelos e estereótipos. O leitor, ao absorver cada real literário, obriga-se, necessariamente, a descodificar-lhe os respectivos referentes culturais e influências. A título de exemplo, é, então, feito, no Prefácio, todo um percurso por autores vários, pelos temas, sentidos e objectivos dos seus textos, pela relação entre a palavra escrita e outras formas de arte, pela possibilidade de construção de outras artes, a partir da palavra literária, pelas múltiplas funções da literatura.
Assim se chega a Eça, às suas tendências literárias e à influência francesa que sofreu. O facto de a sua obra reflectir algo da de Flaubert não lhe retira, no entanto, o valor, como o prova este prefácio.
Depois, mergulhamos no “Mundo Maravilhoso”… É analisada com minúcia e rigor cada lenda, nos seus aspectos estruturais narrativos e estilísticos: dá-se a conhecer acção, personagens, espaços, simbologias; recolhem-se e interpretam-se os inúmeros recursos expressivos que constroem a teia do discurso de Eça; somos ainda presenteados com outros textos – fontes que lhes ecoam na voz, com figuras que para sempre registam a imagem de cada protagonista, quadros, vitrais, e, até, a tradução da lenda de S. Julião Hospitaleiro, de Flaubert.
No “Fecho” do “Mundo…”, retoma-se a questão da imitação em Eça e, mesmo nos três últimos parágrafos, é lançado, ao leitor-criador, um repto verdadeiramente original (não conto).
Saiamos agora deste “Mundo Maravilhoso” e de lenda, deixemos o livro e o seu autor, voltando-nos para a “mã” do nosso quotidiano.
Sempre a conhecemos a trabalhar, em casa e fora. Teve sorte, no seu tempo a mulher ficava, normalmente, só em casa.
Do que estudou fez a profissão que adorava e a que se entregou dedicadamente.
Quando se reformou (ainda jovem, nos bons velhos tempos em que tal era possível!), nós pensámos: “E agora? Se nem sequer quer fazer ginástica?” Mas não tínhamos razão – a sua ginástica continuou a ser intelectual, para além de que a “Mã” assegurava que o trabalho doméstico constituía ginástica mais do que suficiente.
E, afinal, foram bons tempos! De manhã, compras, café com leitura e escrita… À tarde, “Questions pour un Champion”, acompanhamento escolar das netas e tudo o mais que lhe apetecesse. Deu explicações em casa, mas nunca a ouvimos confessar ter saudades da profissão, apesar de guardar inesquecíveis recordações dos seus tempos de docência e de alunos ou formandos que a marcaram.
Mais tarde, iniciou-se no computador – o Word apenas interrompido por telefonemas de SOS para lhe recuperarmos documentos perdidos ao tentar gravar. Normalmente estavam lá, ou então, recomeçava, maldizendo a máquina. Depois do Word, e mais tarde ainda, viajou pelo mundo maravilhoso da Net: pesquisa (já vai menos directamente aos livros e dicionários ou enciclopédias, usa o Google, seu motor de busca preferido); criou um blogue que mantém com devoção, seguindo os seus interesses e ficcionando a figura das duas amigas e das suas tertúlias constantes, na meia hora do café da manhã (o Por AmaisB que, com a sua ironia e humor, já faz parte das nossas leituras e também de algumas das nossas polémicas); intervém e publica em Fóruns e Clubes de comentários e textos sobre a actualidade; aprendeu os mecanismos do e-mail, construiu uma relação dinâmica e interactiva com outros cibernautas, os seus “amigos virtuais”, que passaram a fazer parte também dos motivos das nossas conversas em família; enfim, aceitou todo um mundo desconhecido, com novas gentes e possibilidades que nos fazem às vezes esquecer as limitações e os perigos nele existentes.
Desta forma foi escrito, corrigido e publicado este “Mundo Maravilhoso das Lendas de Santos “, ainda por cima por uma editora on-line (para mim, novidade absoluta).
Partilhemos, então, estes santos antigos, cujo estudo recente nos transportará, com certeza, a um real menos deprimente do que o nosso, hoje em dia.
Através de um discurso claro e rico, dotado de uma capacidade de análise superior, capacidade que se afirmou com estilo, um dia, nos anos cinquenta, sobre o estilo de Cesário Verde (poeta realista, maravilhoso observador e pintor do real breve que viveu), este livro segue a viagem que outros seus iniciaram.
Convido todos a esta desafiante leitura que estuda uma obra de Eça, revelando os dons de ambos – do autor antigo e da autora actual (um bocadinho antiga também). A sua acção (a dos dois), que terras longínquas jamais desviaram do conhecimento, revela-nos vidas preenchidas por múltiplas facetas. E sem nunca desistir!
Acabo, agradecendo:
a) à “Mã” que publicou este livro e me sugeriu que escrevesse um texto para o dia da apresentação;
b) a todos os que vieram e a todos os que o lerem, pelo orgulho que sinto desta mãe criadora, alternativa e persistente, e pelo orgulho em o partilhar;
c) ao meu fiel amigo, o Dicionário de Sinónimos da Porto Editora, que me acompanha nestas lides;
d) ao Sr. Armindo, com o seu café e restaurante “Caipirinha” (o meu preferido na minha terra), às suas mesas, onde escrevi, dentro, ou no passeio, indiferente ao tráfego e saboreando, ao mesmo tempo, o Elixir irónico da minha vida…
(não posso descodificar esta metáfora, pois é expressamente proibido fazer publicidade comercial a ambrósias).
E agora, mesmo finalmente, porque somos pouco “cotas” de espírito, quero dedicar a todos, este excerto da canção “Marcha dos Desalinhados”, interpretada pelo Delfim Miguel Ângelo, o seu autor:
“Eu não quero estar parado,
fico velho…
Vou marchar até ao fim,
isolado…
Esta marcha solitária,
com o corpo a avançar
neste campo aberto
ao Céu…
Ninguém sabe p’ra onde eu vou,
ninguém manda em quem eu sou.
Sem cor, nem Deus, nem Fado,
Eu estou desalinhado…
Por tudo o que eu lutei:
ser sincero;
por tanto que arrisquei
ainda espero…
Esta marcha imaginária
quantas baixas vai deixar
neste sonho desperto?

Ninguém sabe... »
………………
Finalmente o meu texto, antes das palavras finais da representante da Chiado Editora:

Apresentação das “Lendas de Santos” :

«Sempre estranhei, nas consultas que fiz sobre Eça de Queirós, as poucas referências literárias às suas “Lendas de Santos”.
Já aposentada, resolvi ler essas lendas – de S. Cristóvão, de S. Frei Gil, de Santo Onofre - leitura preterida até então, na necessidade de explorar antes as tendências naturalistas, em outras obras dos programas de Literatura Portuguesa, para mais apta integração no ideário realista de intenção interventiva modernizadora, e assim cumprir as exigências da leccionação no Ensino Secundário.
Aproximava-se o centenário da morte de Eça, ocorrida em 16 de Agosto de 1900, lembrei-me de traduzir o encantamento que vivi com a sua leitura, num estudo que abarcasse facetas várias desse deslumbramento: o narrado, os referentes culturais, o estilo como invólucro de distinção.
E assim fui vibrando, com a aventura ímpar de um extraordinário gigante – São Cristóvão – no longo percurso acidentado da sua vida, fixada numa época medieval, de plebeus e nobres, de bruxedos e aspirações a santidades, de violências guerreiras e de revoltas dos pobres, de pestes e sofrimentos, que o bom gigante acompanharia na sua humildade, na sua bondade e na sua abertura gradual para Deus; com a aventura parcial de S. Frei Gil, mancebo fidalgo e esclarecido; com a vida ascética de Santo Onofre, e o seu reconhecimento final de que o seu ascetismo de tão extraordinária dimensão no capítulo da autoflagelação, se tratava antes de uma marca de profunda vaidade, pela ambição de com ele alcançar a santidade – que, aliás, lhe seria reconhecida por Deus, com o milagre de salvação de uma criança, que ele se recusava a realizar, por escrúpulo de arrependimento e penitência.
E o estudo foi-se fazendo, à tentativa de simplificação da ficção, como meio apelativo da leitura integral, sucedendo-se o pasmo dos levantamentos formais a revelarem a magia e a criatividade de um trabalhado surpreendente, traduzindo igualmente uma ampla capacidade cultural queirosiana, em que cada dado relançaria outros dados de consulta, para uma investigação arrastada, que me levaria a tantos escritores e escritas dos tempos passados, com saliência para Flaubert e as suas lendas – a de “S. Julião Hospitaleiro” e “As tentações de Santo Antão”. Levar-me-ia igualmente à ficção de animação dos tempos presentes, sobretudo a de Walt Disney, que em idênticas fontes terá colhido tanto do seu mundo de magia.
Datei o estudo do ano 2000, mas na realidade eu tinha-o acabado antes, iniciando uma nova etapa de envio a editoras que o publicassem, como homenagem ao escritor, no centenário da sua morte, e, dentro da sugestão de criação cinematográfica, as Lendas de Santos queirosianas merecendo, em meu entender, o interesse dos realizadores dos nossos estúdios cinematográficos, dos filmes de animação.
Não teve êxito a tentativa de publicação, e a obra foi mantida na gaveta do esquecimento. A Internet proporcionou-me outros meios de envolvimento, pela escrita, na marcha dos acontecimentos que vão marcando os novos tempos.
E um dia encontrei o anúncio da Chiado Editora como editora de obras, dentro de certas condições. Três obras enviei à Chiado Editora, foi esta a escolhida para uma possível edição, cujo aturado trabalho de revisão, em equipa com a pessoa que mais dele se ocupou - Susanne Engel - juntamente com as outras figuras intervenientes - Vanda, Rosa, Camila – todas elas eficientes e despidas de formalidades no formulário comunicativo - a quem manifesto a minha gratidão - seria feito pelos meios mediáticos - uma inovação para mim, que nunca conhecera outros meios correctores senão o papel e a caneta.
Eis a razão desta publicação, dez anos após o centenário da morte de Eça de Queirós, que a minha admiração pelo escritor desejaria tivesse sido feita então.
Nas contingências económicas que o nosso País atravessa, não é provável que a proposta do filme de animação surta qualquer efeito, mas do seu túmulo Eça de Queirós saberá quanta ânsia desse milagre me vai na alma, que um dos seus santos poderia favorecer – talvez S. Cristóvão, mais de acordo com ingenuidades que ele próprio protagonizou, ser disforme em tamanho e compreensão que gradualmente ganharia em beleza humana e espiritual, ou mesmo o asceta Santo Onofre, mais adaptável a registos de sátira, na sua ambição de santidade feita de renúncia aos implacáveis prazeres da carne, na esteira de Santo Antão.
S. Frei Gil, futuro grande sábio, de facto, ficaria uma obra inacabada. Como afirmou Eça, espirituosamente, em carta a Silva Pinto, “o moço D. Gil, indo a caminho de Toledo, ficou parado, estendido na relva, a conversar com o senhor de Astorga, que (aqui entre nós) é o Diabo… E dois anos vão passados e ainda o iludido cavaleiro se não levantou da relva…”
Agradeço ao Dr Salles da Fonseca a sua disponibilidade em aceder a apresentar uma obra de alguém de que os meios informáticos apenas tinham possibilitado o conhecimento e a respectiva afinidade de conceito.
Agradeço igualmente à minha filha Paula Lacerda, que veio aqui trazer uma notícia sobre o seu próprio pensamento, de entusiasta inveterada das coisas literárias, numa sensibilidade agudizada pela sua própria vivência, de um espírito de luta aberto e generoso.
O meu obrigada a todos os que interromperam os seus afazeres para virem assistir ao lançamento de uma obra que, se tiverem gosto em ler, poderão pensar que, contrariamente ao moço D. Gil, ela não se ficou na relva e partiu mesmo para Toledo, algumas achegas propondo para o aprofundamento da literatura queirosiana.
Pelo menos, era o que pensava o escritor João Reis, autor, entre várias obras, do expressivo romance “Kufemba”, escrito em África e que sempre afirmou, não só a sua paixão por Eça, como a sua crença na validade dos meus escritos, apoiando este com o empréstimo precioso da sua obra em seis volumes -“Polémicas de Eça de Queirós”. O meu reconhecimento e homenagem, pois, prestados em sua memória, na incompreensão do inesperado fim.
Memória saudosa também a de meu pai, na viagem fisicamente interrompida. Aqui presente.»

……………..………..
P.S.: Enviou-me o Dr. Salles da Fonseca, hoje, dia 20, ao meu agradecimento e pedido para que me remetesse o seu texto, para efeitos “logísticos” ou mais propriamente bloguísticos, o seguinte email, que transcrevo, como remate apreciativo do momento vivido:
«Muito Prezada Senhora Professora:
Foi com o maior gosto que finalmente a conheci pessoalmente. Apreciei muitissimo o ambiente de carinho familiar em seu redor e gostei de ver a sala cheia. As palavras da sua Filha foram enternecedoras e achei-as mesmo comoventes. Resultado: gostei!
Assim como gostei mesmo de ler o seu livro. Achei graça ao facto de o pai de S. Frei Gil ser Senhor de Mortágua, terra da naturalidade dos meus avós paternos e do meu tio escritor; só o meu Pai é que foi nascer a Viseu. Daí aquela referência jocosa de ser uma pena eu não conhecer ninguém em Mortágua que dê pelo nome de Mendes, descendente de D. Mendo, padrinho de baptismo de S. Frei Gil.
Junto a versão final do texto que li.
À saída da reunião fui muito simpaticamente abordado por uma Neta sua já crescidinha com quem troquei breves palavras mas não percebi o nome dela nem o do blog que me referiu "Contos...". Gostaria de visitar o blog dela pelo que peço o favor de me dar os nomes tanto do blog como da simpática Neta.
Será com o maior prazer que colaborarei no lançamento dos seus próximos livros.
Grato por todas as gentilezas que tiverem para comigo, continuemos...
Atenciosamente,
Henrique Salles da Fonseca

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E com o meu agradecimento pelas suas gentis palavras, o blogue da minha neta mais velhinha - Ana Margarida Aleixo de Lacerda – que com a sua graça leve e espírito sensível e crítico, já merecedor de um recente prémio literário, me parece encaminhar-se para um futuro saliente no campo da escrita: novelasdelisboa.blogspot.com/


Foi assim o dia 19/2/11, diferente dia, na minha vida de rotina e amor e com cóleras pelo meio, nos gulags comuns à humanidade, no meu gulag.

4 comentários:

Anônimo disse...

Gostei muito do teu texto de apreciação sobre ontem, o do blog.
Estou muito feliz por termos conseguido estar juntos por um motivo tão alegre.
Paula

Isa disse...

Des mots, des pages, des livres et des moments aussi… Précieux et fragiles moments que nous voulons sauvegarder en nous, dans notre mémoire… Merci pour ce bonheur immense… Merci pour ce souvenir…
Isabelle

Isa disse...

Des mots, des pages, des livres et des moments aussi… Précieux et fragiles moments que nous voulons sauvegarder en nous, dans notre mémoire… Merci pour ce bonheur immense… Merci pour ce souvenir…
Isabelle

Anônimo disse...

Oui, le souvenir des heureux moments d'échange de compétences, la reconnaissance des valeurs respectives, le bonheur d'un réel engagement au travail... merci de tout ce partage, qui maintient toute sa beauté, vingt ans après.
Berta