Comecei por
lamentar a morte de Miguel Portas e a minha amiga logo afirmou, na ancestral
consciência da nossa menoridade mental, que tanto nos inferioriza, mau grado as
loas patrióticas tão literárias de Fernando Pessoa ou as de Cavaco Silva que
até a Via Verde de inventiva nacional tomou como exemplo laudatório, no seu
discurso abrilino de exaltação patriótica, esquecendo-se injustamente dos Magalhães
socráticos:
-
Coitado! Nem na Bélgica se safou! Um fulano com tudo à disposição! Mas eu
estava convencida de que ele superara a
doença…
Lembrei que
ele fumava muito:
- Parecia-me
uma pessoa séria e bem formada, mas não sei se o seria de facto, se estivesse
no Governo, sujeito aos condicionalismos desse posicionamento.
A minha
amiga não se comoveu:
- Eu, como
já não sei quem é sério, é melhor não dizer nada. Então hoje, que estão a
festejar o 25 de Abril por aí… Se os sacanas pensassem o que nos fizeram a nós…
E ei-la
disparando sobre as suas evocações da altura, 38 anos atrás, em Quelimane:
- Eu
estava a provar um vestido numa sobrinha da Tatão que era modista, quando me
disseram: Houve uma revolução em Lisboa.
Consegui
lembrar o meu caso, em Lourenço Marques:
- A mim,
foi um telefonema da Flávia, logo pela manhãzinha. Mas a vida continuou, não
ligámos muito, inicialmente. Só que comecei a escrever com mais afinco, o meu “Pedras
de Sal” do contra.
- Passados
dias, o inspector escolar Alves Pereira, disse-nos: “Estou a ver aquilo muito
vermelho!”. Eu, a partir daí, perdi completamente a esperança naquilo. Tínhamos
programadas as primeiras férias da nossa vida. Íamos por três meses. Mas eu
tratei logo dos papéis dos meus filhos. Ficámos em casa dos donos da fábrica
das camisas na Matola que estavam cá de férias. Estávamos a fazer uma vida de
africanistas, frequentávamos um café onde se juntavam muitos de África, para os
lados da praça de Alvalade, quando chegou a notícia de uma revolta na Matola, avisando
que tinham destruído tudo na Matola. Ficou tudo aterrado. Eu e os meus filhos
já não partimos para lá. Mas o Sud tinha uma empresa, teve que ir. Nós ficámos.
Ele partiu com o dono da fábrica. Mas tiveram que se vir embora. Foi a 7 de Setembro.
- Bem
sei, nesse dia nós fomos juntar-nos à multidão que defendia as tropas afectas
ao governo português, que assaltaram o Rádio Clube de Moçambique. No dia 8, a
Paula fez anos e levámos-lhes dos bolos da festa. Há um livrinho que me
ofereceram “Aqui, Moçambique Livre” onde descobrimos a fotografia do meu filho
Artur, de cerca de quatro anos, encostado a um Volkswagen. Na primeira página, puseram
a foto de um idoso a esconder as lágrimas envergonhadas atrás da bandeira, na
página seguinte colocaram o retrato da criança. Foram dois dias de entusiasmo e
esperança ingénua de recuperação que vivemos, mas no dia 9 já não deixei os
meus filhos brincar na rua, o medo instalara-se entre as gentes, e a partir
daí, pedi férias e comecei a tratar dos papéis para trazer. Chegámos em 23 de Setembro.
- O meu
marido tinha dinheiro no Banco Nacional Ultramarino, que o reteve. Com
o dinheiro que guardava em casa e na empresa, foi ter com um comerciante de
camarão: - Vende-me um contentor de camarão? O negócio fez-se, mas o meu marido
não veio para cá sem ver o contentor embarcado. Todos os dias ia ao cais. Aguentou
dias. Mas as supra-renais pararam, com a tensão nervosa. Foi a um bom
especialista quando cá chegou, que lhe receitou hidrocortone para o resto da
vida. Só que o hidrocortone acabou agora em Portugal. É preciso importar de
Espanha. O meu marido teve essa safa do camarão, foi um dos primeiros e
iniciar-se na Doca Pesca. Fora estimado em África, como agente da Volvo. Já se
estava a expandir quando veio o 25 de Abril. Era amigo do Monteiro e Giro e do
Pio Cabral. Ficou lá tudo. Quem era só funcionário público era uma coisa, quem
fez obra ao longo da vida era outra. Mas deixaram lá tudo.
- Também
houve os Almeidas Santos que não deixaram lá nada. Trouxeram tudo.
- Ah!
Sim! Mas alguns não aguentaram, com ataques cardíacos. Como agora, aliás. Há
muitos que não resistem, com AVCs, pela falta de emprego. E a perda de bens do
tempo das vacas gordas de empréstimo com que lhes acenaram antes.
- Mas a
Brigada do Reumático está aí prestes a escarrar as suas teorias do costume. Até
faltou às comemorações do costume. Talvez para preparar novos truques para não
deixar recompor o que todos eles ajudaram a destruir.
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