quarta-feira, 25 de abril de 2012

Ficou lá tudo


Comecei por lamentar a morte de Miguel Portas e a minha amiga logo afirmou, na ancestral consciência da nossa menoridade mental, que tanto nos inferioriza, mau grado as loas patrióticas tão literárias de Fernando Pessoa ou as de Cavaco Silva que até a Via Verde de inventiva nacional tomou como exemplo laudatório, no seu discurso abrilino de exaltação patriótica, esquecendo-se injustamente dos Magalhães socráticos:

- Coitado! Nem na Bélgica se safou! Um fulano com tudo à disposição! Mas eu estava convencida  de que ele superara a doença…

Lembrei que ele fumava muito:

- Parecia-me uma pessoa séria e bem formada, mas não sei se o seria de facto, se estivesse no Governo, sujeito aos condicionalismos desse posicionamento.

A minha amiga  não se comoveu:

- Eu, como já não sei quem é sério, é melhor não dizer nada. Então hoje, que estão a festejar o 25 de Abril por aí… Se os sacanas pensassem o que nos fizeram a nós…

E ei-la disparando sobre as suas evocações da altura, 38 anos atrás, em Quelimane:

- Eu estava a provar um vestido numa sobrinha da Tatão que era modista, quando me disseram: Houve uma revolução em Lisboa.

Consegui lembrar o meu caso, em Lourenço Marques:

- A mim, foi um telefonema da Flávia, logo pela manhãzinha. Mas a vida continuou, não ligámos muito, inicialmente. Só que comecei a escrever com mais afinco, o meu “Pedras de Sal” do contra.

- Passados dias, o inspector escolar Alves Pereira, disse-nos: “Estou a ver aquilo muito vermelho!”. Eu, a partir daí, perdi completamente a esperança naquilo. Tínhamos programadas as primeiras férias da nossa vida. Íamos por três meses. Mas eu tratei logo dos papéis dos meus filhos. Ficámos em casa dos donos da fábrica das camisas na Matola que estavam cá de férias. Estávamos a fazer uma vida de africanistas, frequentávamos um café onde se juntavam muitos de África, para os lados da praça de Alvalade, quando chegou a notícia de uma revolta na Matola, avisando que tinham destruído tudo na Matola. Ficou tudo aterrado. Eu e os meus filhos já não partimos para lá. Mas o Sud tinha uma empresa, teve que ir. Nós ficámos. Ele partiu com o dono da fábrica. Mas tiveram que se vir embora. Foi a 7 de Setembro.

- Bem sei, nesse dia nós fomos juntar-nos à multidão que defendia as tropas afectas ao governo português, que assaltaram o Rádio Clube de Moçambique. No dia 8, a Paula fez anos e levámos-lhes dos bolos da festa. Há um livrinho que me ofereceram “Aqui, Moçambique Livre” onde descobrimos a fotografia do meu filho Artur, de cerca de quatro anos, encostado a um Volkswagen. Na primeira página, puseram a foto de um idoso a esconder as lágrimas envergonhadas atrás da bandeira, na página seguinte colocaram o retrato da criança. Foram dois dias de entusiasmo e esperança ingénua de recuperação que vivemos, mas no dia 9 já não deixei os meus filhos brincar na rua, o medo instalara-se entre as gentes, e a partir daí, pedi férias e comecei a tratar dos papéis para trazer.  Chegámos em 23 de Setembro.

- O meu marido tinha dinheiro no Banco Nacional Ultramarino, que o reteve. Com o dinheiro que guardava em casa e na empresa, foi ter com um comerciante de camarão: - Vende-me um contentor de camarão? O negócio fez-se, mas o meu marido não veio para cá sem ver o contentor embarcado. Todos os dias ia ao cais. Aguentou dias. Mas as supra-renais pararam, com a tensão nervosa. Foi a um bom especialista quando cá chegou, que lhe receitou hidrocortone para o resto da vida. Só que o hidrocortone acabou agora em Portugal. É preciso importar de Espanha. O meu marido teve essa safa do camarão, foi um dos primeiros e iniciar-se na Doca Pesca. Fora estimado em África, como agente da Volvo. Já se estava a expandir quando veio o 25 de Abril. Era amigo do Monteiro e Giro e do Pio Cabral. Ficou lá tudo. Quem era só funcionário público era uma coisa, quem fez obra ao longo da vida era outra. Mas deixaram lá tudo.

- Também houve os Almeidas Santos que não deixaram lá nada. Trouxeram tudo.

- Ah! Sim! Mas alguns não aguentaram, com ataques cardíacos. Como agora, aliás. Há muitos que não resistem, com AVCs, pela falta de emprego. E a perda de bens do tempo das vacas gordas de empréstimo com que lhes acenaram antes.

- Mas a Brigada do Reumático está aí prestes a escarrar as suas teorias do costume. Até faltou às comemorações do costume. Talvez para preparar novos truques para não deixar recompor o que todos eles ajudaram a destruir.


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