Falou-se, uma vez mais, na ditadura do
patronato, na dificuldade de os casais poderem ter filhos, explorados como são
nos seus trabalhos com excesso de horas impostas pelos patrões e de gratidão dos
que os têm, por os terem.
- Ninguém quer uma grávida, confirmou a minha amiga. Quando uma mulher vai a uma entrevista
para o emprego, uma das perguntas é: Pensa engravidar?
Também se falou em Marinho Pinto, mas eu não
sei até que ponto se pode acreditar no seu discurso acusatório de cravo
vermelho ao peito. Ele fala na justiça para pobres e na justiça para ricos,
banalidades do nosso quotidiano, os pobres quando são condenados apanhando
cadeia, os ricos obtendo recurso e um processo arrastando-se até prescrever,
por vezes também uma prisão domiciliária, no aconchego familiar.
E assim nos vamos envolvendo nas temáticas do
costume acerca deste país “pequenino de uma assoalhada”, como lhe chama
a minha amiga, abismadas com as fraudes monumentais de que o BPN actualmente se
revela como exemplo edificante no nosso reduto desde sempre fechado.
Lembrei a peça de Sartre que reli há pouco,
“Huis Clos” - “Entre quatro paredes”, na
tradução brasileira, mais ao sabor da caninha verde da nossa canção, a lembrar o samba deles, Natália Correia, tendo-a
traduzido, antes da democracia dos cravos, por “À porta Fechada” nas
contingências das nossas realidades pidescas de então, que tanto carisma
proporcionavam aos que lhes sofriam os efeitos ou que apenas delas troçavam em
revista ou anedota popularuchas dos nossos prazeres espirituais.
Trata o seu enredo de uma chegada ao inferno,
sucessivamente de três condenados – Garcin, Inês e Estelle – inferno não
semelhante ao que é descrito em tantas
obras do passado, como os círculos do Inferno de Dante, onde vão girando os condenados
pelas suas fraquezas várias em vida, perdida a esperança, segundo inscrição à
entrada da passagem para o Aqueronte: “LASCIATE OGNI SPERANZA, VOI CH’ENTRATE” –
mas em que a tortura é resultante, não só de um espaço requintado, de
imutabilidade e claridade sem fuga possível, mas do próprio carácter
argumentador de cada interveniente, obrigado ao convívio e ao julgamento dos
outros e de si próprio, sem ilusão sobre si nem sobre os outros, capazes da mistificação
nas histórias que cada um de si conta, apelativas do amor ou da admiração do
outro, num universo sem Deus e sem esperança, o homem sendo o fautor do seu
próprio destino, neste mundo ou em qualquer outro, onde a conclusão é a de
continuar. Na imutabilidade de cada inferno: “Continuons”.
Os diálogos dos mortos, desde Luciano,
constituem, por vezes, sátiras, de que os Autos das Barcas de Gil Vicente são
igualmente exemplo, julgados os mortos pelos arrais das Barcas, em tom mais severo
ou jocoso, segundo o barqueiro do Paraíso ou do Inferno. Não têm, pois, a dimensão
humanista que se detecta na peça existencialista de Sartre, sobre a condição trágica
do homem entregue ao seu ser responsável pelos seus actos, embora pretendendo esquivar-se
– em vão - ao inferno do olhar alheio, ou do seu próprio, também condenatório
dos seus truques de ambiguidade.
Sem grande dimensão, pois, vivemos neste
nosso reduto de farsa, criticando-nos continuamente, em círculo vicioso, dada a
inutilidade da crítica, numa nação que não se toma a sério.
- Continuemos pois, solta a minha
amiga, certa de que este universo de “huis clos” não vai parar. Sequer em vida.
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