Vejo o filme “Tróia” na RTP e revivo,
sob nova perspectiva, que inclui as figuras das personagens como não imaginara
– por exemplo, um Aquiles/ Brad Pitt humano e doce e de uma beleza divina
– andanças que a leitura dos livros homéricos colocara num plano de
irrealidade, no encantamento que faz da leitura o meio por excelência do
mistério e do visionamento pessoal, que a representação teatral ou fílmica tantas
vezes destrói ou abastarda – caso dos livros de Eça adaptados ao cinema
português, destruindo todo o impacto da sedução que é colhida através do
descritivo humorístico do narrador ou que os actores/personagens dificilmente
igualam. Ressalvo a mini-série brasileira
em que Marília Pêra fez uma criada Juliana de "O Primo Basílio" perfeitamente concebida, o que prova
que, quando os actores são excepcionais, até as obras literárias conseguem
brilhar.
Ora
enquanto eu me entretinha com o filme, suprimidos os momentos em que tinha que
atender a minha mãe, actualmente de braço partido, ouço esta frase dela: “A
menina e a abelha quer-se com sol na cortelha” que logo copiei e cuja
explicação se apressou a dar, mesmo sem lhe ter sido perguntada, que felizmente
a nossa massa cinzenta ainda demonstra capacidade suficiente de interpretação,
só estranhando o feminino cortelha. Pelos vistos, era o seu irmão Manuel, que
ela distingue como o mais inteligente dos irmãos, que costumava utilizar a
frase moralista, de expressão machista, que não sei por que carga de água ela
se lembrou de soltar, a menos que tenha sido pela constatação da presença
constante das filhas em seu redor, segundo o modelo de educação a que nos
habituaram os nossos pais: “A menina e a abelha quer-se com sol na cortelha”.
Achei,
todavia, que este revivalismo da minha mãe não seria descabido nos tempos de
hoje, caso desejássemos obstar a uma certa licenciosidade de costumes, o que
não acontecerá numa democracia que se pretende amistosa e acolhedora dos
desvios desde tenras idades.
Na mesma
linha de provérbios populares, após os vários sobre meses – “Em Abril
queima-se carro e carril, Em Abril, águas mil, Em Abril vai aonde hás-de ir e à
tua casa vem dormir (por via das águas mil), Em Abril, sai a bicha do
covil, Em Maio enche-se o palaio "(que é o estômago), sai-se com o seguinte:
“Boa casa, boa brasa; bom ferrolho,
bom trambolho”.
Entretanto,
a minha mãe continua nas suas evocações revivalistas, falando de uma mulher que
roubava cachos das terras limítrofes das dela, comentando: “Há gente que vem
ao mundo sem sorte nenhuma. Quem é pobre é uma merda.” Mas a seguir vai entoando
ou apenas recitando expressivos versos através dos quais vai falando com os
seus botões, na presença das filhas ou estendida na cama:
“O meu craveiro
dá um cravo / Só eu o soube escolher. / O craveiro não dá outro / Só se eu
voltar a nascer.”
“Pastorinhos
do deserto / Correi todos, vamos ver / A pobreza da lapinha / Onde Cristo foi
nascer.”
“ Pelo
céu vai uma nuvem / Todos dizem: Bem na vi. /Todos falam e murmuram / Ninguém,
olha para si.”
No domingo
à noite, vejo o programa do 2º canal – Câmara Clara – apresentado por Paula
Moura Pinheiro, com os convidados José Eduardo Agualusa, escritor nascido em
Angola e o cantor António Zambujo. Um programa com o interesse que nos
acostumámos a colher em Moura Pinheiro, mas que revelou a faceta intencional de
menosprezar levianamente, porque simplisticamente, os atacantes do Acordo
Ortográfico.
O meu
revivalismo anti-A.O., impregnado do costumeiro sentimento de desprezo pelos pseudoprogressistas
que se permitem lançar bujardas não convenientemente esclarecidas sobre algo
que nos toca com emoção – a língua portuguesa – em nada altera o que foi
definido por gente que não se quis esclarecer e que bastou para a destruir, gente
descendente desses poucos capitães cujos ziguezagues sem preparação cultural e
sem brio, conduziram paulatinamente ao “incêndio de Tróia” que vamos revendo. E
vivendo.
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