sábado, 11 de setembro de 2010

Os crimes já tão iguaizinhos…

A minha amiga está possessa:
-Viu aquele crime horroroso em Coimbra? E aquilo tudo organizado pelo filho? Um estudante de medicina quase médico? O que é aquilo?! Um filho adoptado! Cá em Portugal que até é um país de brandos costumes, como se diz…
Eu não digo, acho uma expressão banal e falsa, sinto que não corresponde. Porque uma nação que só respeita os que são julgados superiores – e a gente sabe quantas das superioridades escondem má formação moral, não é um país de brandos costumes, é uma nação de pobres diabos, sem interesses culturais que ultrapassem o ressabiado “rumor das saias de Elvira” do descritivo de Fradique Mendes. Já vem, pois, de longa data, o tal atraso espiritual que impõe timidez, traduzida por “brandos costumes”, contrabalançada pela enérgica actuação dos totalitaristas finórios que nos governam e se governam, no desprezo das reivindicações dos que sofrem tais aberrações governativas. Mas a minha amiga não quis ouvir protestos:
- Isto é gente de um certo nível, continuou. Ela diz-se que era querida de todos, médica dum centro de saúde, em Coimbra, toda a gente gostava dela. Mas ele foi apanhado muito rápido. Estava de férias na Figueira da Foz. Fez de maneira a parecer assalto, mas a polícia depressa desvendou o crime e o seu responsável. O tipo a fingir que estava de férias na Figueira da Foz! Foi informado de que a mãe estava morta. Mas deixou pistas.
- Os crimes de faca e alguidar… Olhe que no tempo do Camilo também as filhas matavam as mães, evoluímos pouco nos sentimentos, devia ler o “Maria não me mates, que sou tua mãe!”, com que Camilo mais ou menos se estreou na notoriedade e na arte folhetinesca de partir o coração, embora aquela mãe do caso camiliano fosse uma mãe real e não de empréstimo, pois nas adopções dos filhos progredimos mesmo.
Esta colherada literária mandei-a eu, sentida por a minha amiga a cada passo frisar o meu desconhecimento das coisas neste país, embora eu a tivesse esclarecido de que o meu marido me falara no caso, ontem à noite. Mas a minha amiga, quando está lançada numa narrativa de sentimento, avança impante, indiferente a protestos:
- Gente que vivia bem, ela era separada do marido. E só tinha 58 anos a senhora. Agora, perante isto, o que é que se pode pensar? Isto é a coisa mais degradante do ser humano. Uns, porque dizem que é bêbado, outros, drogado… Este, não tinha nada, não sei o que este tinha, era quase médico… Horroroso, uma pessoa não quer acreditar. Então os portugueses não se comparam com os países grandes, como os Estados Unidos, o Brasil, e os crimes já são tão iguaizinhos?
Oh! Este crime que tanto feriu a sensibilidade da minha amiga – que a minha creio que está mais embotada, devido aos atentados que sofremos, nos corpos e nas almas, sem descanso, ao nível mundial, nacional, mediático, literário – este crime merece que repasse um pouco do tal texto de Camilo, que talvez nos inspire um sorriso de distância, dado o tom empolado e melodramático de que só o Parlamento se inspira hoje, embora se não dirija aos pais de família. Vejamos o texto:
«Maria! Não me mates, que sou tua mãe!»
«Pais de Famílias!
Atendei, e vereis o maior de quantos crimes se tem visto no mundo! Vereis uma filha matar sua mãe, porque esta lhe não deixava fazer o quanto desejava. Vereis como essa filha corta a cabeça de sua mãe, e os braços, e as pernas, e vai pôr cada pedaço de corpo da sua mãe em diferentes lugares, para que ninguém conhecesse o cadáver da morta, nem a mão que a matara e despedaçara. Vereis como a matadora de sua mãe, de sua mãe, ó pais de famílias, de sua mãe que a trouxera nas entranhas, que lhe dera o alimento dos seus peitos, que a criara ao seu lado com beijos e afagos, que tirara o pão da sua boca para o dar à sua filha, que fora talvez pedir uma esmola para que a sua filha não tivesse fome, e não desse o seu corpo em troca de um bocado de pão! Vereis como esta filha sem alma, sem medo de Deus, sem temor das penas do Inferno, é descoberta como matadora de sua mãe, por um milagre, pela providência de Deus! Vereis aquela mulher com alma de tigre comer com toda a vontade e contentamento, ao pé da cabeça ensanguentada de sua mãe, e responder quando lhe perguntam se é aquela a cabeça de sua mãe.
-Sim! – disse ela – essa é a cabeça de minha mãe!
E continuou a comer.
Pais de famílias! Eu vou contar-vos o mais triste e espantoso acontecimento que viu o mundo, e que talvez não torne a ver. Chamai vossos filhos para junto de vós. Lede-lhe esta história, e fazei que eles a decorem, que a tragam consigo, e que a repitam uns aos outros.
Pais de famílias! O que escreveu estas linhas com o seu pouco saber talvez vos terá ido à porta mendigar as migalhas da vossa mesa. Deus Nosso Senhor Jesus Cristo permita que eu possa levar a compaixão ao coração dos que me lerem, que eu, desgraçado pecador, fico pedindo a Deus pela alma daquelas infelizes mãe e filha.»
Eis o intróito desta peça, que ocupa as páginas 305/317 de “As novelas de Camilo”, da “Portugália Editora”, por Alexandre Cabral. Segue-se a história da Maria José e da sua paixão pelo falso José Maria, que a induz a estraçalhar a sua mãe que, honesta, se opunha ao concubinato da filha enganada, dissimulando os pedaços do corpo em vários sítios, e que termina assim:
«Estes atentados contra Deus, esta guerra de irmãos com irmãos, estes acontecimentos de filhos matarem pais, e esses sinais que nos aparecem no céu tudo indica que o fim do mundo está chegado”.
É claro que Camilo se enganava nas previsões, e, ao contrário do efeito moralizador, textos destes, tais como as violências modernas tão visíveis, têm apenas como consequência imediata, a proliferação do crime.
Mas só a minha amiga reage assim apaixonadamente, embora não à maneira de Camilo, moderna que é, que não precisou nunca de partilhar a sua sardinha, nem com a mãe nem com os filhos, como gostam de sublinhar as pessoas criadas com sobriedade ou penúria, restos das prosas camilianas do nosso miserabilismo.
Quanto aos sinais no céu… será que já havia OVNIS naqueles tempos de 1848? Mas hoje os sinais do Apocalipse têm a ver antes com os efeitos de estufa, a desertificação… Podemos ter esperança ainda, já que o Camilo se enganou, e dentro de dois séculos outros serão os motivos para a destruição do nosso tão belo planeta azul.
E quanto aos crimes... são mesmo muito parecidos, mesmo os de faca e alguidar, agora, todavia, com a vantagem do frigorífico.

Um comentário:

David Gomes disse...

Olá tia! Estive a ler este texto e o anterior que a tia aqui escreveu e é curiosa a ironia de eu ter interrompido a minha leitura sobre uma sociedade utópica (News from nowhere, de William Morris) para vir aqui relembrar a infelizmente real realidade portuguesa!
De resto está tudo bem, tudo vai bem no melhor dos mundos! Estou a gostar imenso de estar em Copenhaga e nunca tive tanto trabalho...
Beijinhos para a tia e para a vó Pureza!

David