quinta-feira, 12 de maio de 2011

A “Quarta dimensão” no amor

Todos os dias a minha mãe quer saber o dia da semana, o mês, a hora, sempre interessada em participar, não tanto na evolução dos acontecimentos actuais, mas nos acontecimentos temporais do seu passado que as datas do presente lhe recordam. Depressa se esquece do que se lhe disse e por isso repete os comentários que o regresso a esse passado possibilita, numa profusão nossa de espanto, dada a idade centenária. De vez em quando fornece exemplos novos.
Ontem saiu-se com uns versos que exprimem o chamado tempo psicológico, o tempo que, no caso da sentença com que explicitou - rindo - a situação que narrou - uma rapariga da minha infância, não da dela, por isso mais recente, - a Hermê - que costumava passar tempos esquecidos ao pé da fonte, em Pinheiro de Lafões, com o cântaro à cabeça, conversando com o namorado, de arado ao ombro, esquecidos ambos dos pesos, em posição que poderiam tornar mais confortável, pondo os utensílios no chão – é um tempo que se revelava absurdamente ligeiro nos momentos de bem-estar: “Dias de Maio / Dias de amargura / Mal é de manhã / Já é noite escura”, o que não correspondia, de modo algum, ao tempo real, dado que em Maio os dias de sol atingem quase a sua extensão máxima. Mas os namorados assim o não sentiam, felizes do encontro, resguardados, supunham, dos olhares críticos de quem passava, com os protectores instrumentos do seu trabalho a derreá-los, como disfarce, enquanto trocavam doces requebros.
E o singelo ditame que o quadro de amor popular mereceu à minha mãe - “Dias de Maio / Dias de amargura / Mal é de manhã / Já é noite escura” - ao exprimir um tempo psicológico de extensão diferente da do cronológico, fez-me regressar a uma Idade Média onde esse conceito está já contido, por exemplo, na seguinte cantiga de amigo, de Juião Bolseiro, de uma menina que sofre de insónias nas longas noites passadas sem o seu amigo, invectivando um Deus impiedoso, porque o tempo se ia num ápice quando com ele as passara, ao passo que no tempo presente, de solidão e tristeza, se alonga indefinidamente sem ela poder dormir, contrariamente ao estipulado para as noites:
Aquestas noytes tão longas
Que Deus fez em grave dia
Por mi, porque as non dórmio,
E por que as non fazia
No tempo que meu amigo
Soya falar comigo?

Por que as fez Deus tan grandes,
Non poss’eu dormir, coitada!
E de como son sobejas,
Quisera-m’outra vegada (= vez)
No tempo que meu amigo
Soía falar comigo.

Por que as fez Deus tan grandes
Sem mesura e desiguais
E as eu dormir non posso?
Por que as non fez ataes,
No tempo que meu amigo
Soía falar comigo?
Nada, pois, mudou na questão dos sentimentos e dos comportamentos, de então para os meus tempos infantis, pelo menos, embora no caso da Hermê e do seu companheiro, o namoro se processasse às claras, e com sobrecarga de pesos, a servir de capa, e a assinalar incompetência.
Mas outras lembranças me trouxe a evocação da minha mãe: um cantar de amigo designado por “alba”, de origem provençal, em que, aí também por vezes era indicada a brevidade da noite, passada com o namorado, prova de que o que se diz dos costumes libertinos dos namorados de agora e dos da minha infância, tem antecedentes de qualidade, numa Idade Média devota e matriarcal.
E esta ideia da “alba” ou “cantiga do amanhecer”, fez-me debruçar também sobre uma cantiga paralelística, uma alba de expressiva riqueza simbólica e humana, num descritivo quadro humanizado. Pertence ao trovador Nuno Fernandes Torneol, e expõe uma situação em que contrastam o mundo de alegria, das aves humanizadas que cantam o amor, e da menina que quer com elas compartilhar a sua alegria antiga, repetindo-o monocordicamente no refrão, e o seu mundo real de tristeza, pelo abandono do namorado, que fica a dormir, nas frias manhãs solitárias da menina. E a menina apela - trata-se de uma cantiga de amigo, ou seja, de namorada – apela ao namorado para que se levante e venha compartilhar a alegria festiva das aves do mundo inteiro que cantam os amores deles.
A segunda parte deste nada banal poema, revela, simbolicamente, a corrosão do amor masculino, através do quadro de tragédia descrito – o amigo quebrou-lhes os ramos das árvores onde as aves pousavam e cantavam os amores do par, o amigo secou-lhes as fontes em que elas bebiam e se banhavam.

Mas ela quer ainda crer na alegria passada, no seu apelo, na sua repetição: "Levantai-vos amigo", "Alegre ando eu":

Levad’, amigo que dormides as manhanas frias
tôdalas aves do mundo d’amor diziam
lêda m’and’eu!
Levad’, amigo, que dormide’las frias manhanas;
tôdalas aves do mundo d’amor cantavam:
lêda m’and’eu!
Tôdalas aves do mundo d’amor dizian;
do meu amor e do voss’en ment’avian:
lêda m’and’eu!
Tôdalas aves do mundo d’amor cantavam;
do meu amor e dos voss’i enmentavan
lêda m’and’eu!
Do meu amor e do voss’en ment’avian;
vós lhis tolhestes os ramos en que siian:
lêda m’and’eu!
Do meu amor e do voss’i enmentavan;
vós lhis tolhestes os ramos en que pousavam:
lêda m’and’eu!
Vós lhis tolhestes os ramos en que siian
e lhis secastes as fontes en que bevian:
lêda m’and’eu!
Vós lhis tolhestes os ramos en que pousavam
e lhis secastes as fontes u se banhavan:
lêda m’and’eu!
E aqui está como as memórias de uma mãe centenária, me proporcionaram um prazer de revivescência, a respeito de uma dimensão – o tempo - que Einstein acrescentou às três coordenadas que definem a dimensão do espaço – comprimento, largura e altura.
Julgo que Einstein não pensou no tempo psicológico, é certo, o qual tem uma dimensão demasiado atabalhoada, mas que, com a boa vontade da nossa ignorância, talvez possa caber também na sua teoria da relatividade.


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