quarta-feira, 4 de maio de 2011

A Lisboa de Cesário

A Lisboa de Cesário identifica-se com a Lisboa de Eça, já que ambos os escritores pertencem à Geração de Setenta, caracterizada pelos melhoramentos urbanísticos e tecnológicos trazidos pela política de modernização de Fontes Pereira de Meloconstrução de estradas, de vias-férreas, de infra-estruturas, de jardins, parques, hotéis…
Mas, se é fácil seguir as pistas deixadas pela ficção queirosiana segundo as evoluções dos enredos, quer na referência à toponímia – Benfica, Pedrouços, Olivais, Avenida (da Liberdade), Chiado, Rossio, Largo da Graça, Penha, Santa Apolónia, quer a espaços específicos: de lazer ou prazer cultural - o Grémio Literário, a Livraria Bertrand - os Teatros - S. Carlos, Trindade - os monumentos - a estátua de Camões, o Obelisco, o Castelo - as igrejas - a Sé, Igreja da Encarnação, do Loreto, do Sacramento… - os Hotéis – Central, Aliança… - os Cafés – Baltreschi, Havanesa… (sendo a zona do Chiado o espaço de centralidade n’ Os Maias) - na poesia cesariana, que se pretende de rigor e sem banalidades líricas, tais espaços são referidos nos designativos genéricos de ruas, igrejas, hotéis da moda, cafés, teatros, lojas, tabernas, fachadas das casas… já que as designações toponímicas que nele se encontram se limitam ao café Martinho (da Arcada) - “Às mesas espelhentas do Martinho”, no poema “Arrojos”, e, no poema “Esplêndida” “a rua do Alecrim”, o Jock Club, o restaurante “Mata”, ambos os poemas publicados no Diário de Notícias em 1874.
Em ambos os escritores não podemos deixar de atentar, também, para além dos espaços temporais e psicológicos - em Cesário o egotismo vs. a alteridade (os outros), os espaços sociais, sendo, em Cesário, fortes os contrastes entre os comportamentos de uns e de outros - espaços de miséria, de doença, de exploração, de trabalho árduo, do povo que ri e que chora, versus os pedantismos, as luxúrias, as devassidões, os despotismos, da sociedade mundana, que a sua sensibilidade, atenta ao pormenor e rebelde aos convencionalismos, conduz a um modernismo inovador, quer ao nível da forma quer das temáticas, que pressupõem idênticas fontes de conhecimento – positivismo, socialismo, materialismo agnóstico… - que orientaram a Geração de Setenta, nas suas intenções de modernização de um país e de uma cultura desde sempre atrofiados, em dissonâncias gritantes relativamente aos outros países europeus..
É com iguais perspectivas, pois, que percorrendo os espaços urbanos citados por Eça, poderemos pensar que os percorreu Cesário, que em Lisboa nasceu, em 25 de Fevereiro de 1855 e ali viveu, empregado de uma loja de ferragens do pai, tendo frequentado o Curso Superior de Letras, trabalhando no campo, em Linda-a-Pastora, onde seu pai tinha uma quinta, com pomares, que descreve, com os respectivos trabalhos de dinamismo rude, na II parte da poesia “Nós” (A I e III respeitando a cidade – Lisboa – espaço de doença e de prisão).
De uma tese feita em 1960 – “Alguns aspectos estilísticos no “Livro de Cesário Verde”- transcrevo a Conclusão, como forma de rever – e homenagear - um poeta desde sempre amado, que em 18 de Julho, passará os 125 anos da sua morte.
« CONCLUSÃO»
«0 primeiro facto que se nos depara, quando estudamos as imagens do "Livro de Cesário Verde", é a sua beleza e harmonia. Pudemos verificá-lo através das comparações mais estranhas ou das metáforas mais originais, reveladoras de uma imaginação fecunda que, através do “real e da análise”, dentro de uma configuração estética anti-romântica, de temática naturalista e de influência baudelairiana, surpreenderam pela novidade, quer imagística quer rítmica. Raras são, com efeito, as imagens obtidas do mundo das abstracções. Vimos como para Cesário o concreto, o real, é fonte de quase todas as imagens, e se muitas vezes se utiliza do abstracto, é para o concretizar, para lhe dar mais vida.
Outro ponto em que atentámos foi na ausência de tom declamatório da sua poesia, manifesta através das comparações ou metáforas que raramente aparecem em série, quando referidas ao mesmo plano real.
Diz-nos José Régio em "A Moderna Poesia Portuguesa": "0 Livro de Cesário Verde" representa o naturalismo na nossa poesia. Isto é: a introdução, na poesia portuguesa, da natureza e da vida - despidas tanto quanto possível dos devaneios metafísicos, das deformações da imaginação, do preciosismo ou da simbólica; bem como do preconceito (e este tão vulgar quanto insuportável) de fazer poético."
Tal característica de rigor e precisão de traço, avesso aos convencionalismos líricos da época, ele o afirma, a cada passo, como no poema “De Verão”:
Não pinto a velha ermida com seu adro;
Sei só desenho de compasso e esquadro,
Respiro indústria, paz, salubridade.
Vimos ainda o calor de simpatia com que o Poeta envolve todos os seres - desde o homem de vida penosa e triste até aos mais obscuros objectos. E deste modo assistimos à personificação que sofrem os animais, as plantas, as coisas inanimadas, que resulta certamente de um sentimento de fraternidade e carinho por todos os seres.
Ao estudarmos os temas das imagens atentámos na variedade de termos cromáticos e de luz. Com efeito, é a vista o sentido predominante em Cesário. A ela, como verificámos no quadro das sinestesias, se dirige a maior parte das transferências.
Poeta acima de tudo visual, ele próprio se irmana muitas vezes com os pintores, pois frequentemente afirma que "pinta quadros". Simplesmente os quadros que "pinta" possuem algo mais do que o colorido dos próprios painéis. Possuem o som, e os aromas que se evolam dos ares, e as próprias sensações gustativas ou tácteis, todos os seus sentidos vibrando em coesão perfeita. Repetimos a transcrição, de “Cristalizações”:
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos,
E tangem-me, excitados, sacudidos,
0 tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!
Todos estes sentidos colaboram na formação de uma poesia cheia de descritivo, em que abundam as anotações de toda a ordem, que surgem ao sabor dos seus pensamentos e, sobretudo, ao sabor do seu vaguear pelas ruas ou pelos campos. Factor impressionista este, em que os mais variados assuntos e quadros se nos deparam, numa poesia de carácter deambulatório. E, na verdade, observámos que Cesário Verde se equipara, pelo seu estilo, aos escritores impressionistas:
Série de substantivos sem verbo a ligá-los à frase antecedente, abundância de construções nominais, formas durativas dos verbos que melhor exprimem uma acção prolongada no tempo, fundas pausas no interior dos versos são, juntamente com outros factos que anotámos, factores expressivos do estilo impressionista.
Reparámos na adjectivação variadíssima do “LIVRO”, com alianças, cheias de sabor e imprevisto, de um adjectivo de ordem moral com um adjectivo de ordem física, formando aquilo a que Carlos Bousoño chama "ruptura do sistema" e que transmitem uma realidade mais complexa, numa concisão vocabular enriquecida em ambiguidade, e onde, igualmente, se encaixam a hipálage, a sinestesia e outros processos.
Estudámos ainda outros aspectos, como por exemplo a colocação dos adjectivos na frase e a sua função como factor rítmico e musical. Descobrimos assim que Cesário não é só o artista de imaginação poderosa, capaz de formar as imagens mais expressivas, tiradas do mundo real. É também artista pela harmonia com que dispõe as palavras no verso, obedecendo a um sentido rítmico em consonância com a mensagem expressa.. Melhor o verificámos ainda quando estudámos a versificação, de uma musicalidade específica, revelada no jogo das vogais tónicas ou no paralelismo acentual dos hemistíquios, no caso dos alexandrinos, e no processo onomatopaico tão actual, em jogos de sons sugestivos de estados de alma ou de ruídos físicos.
Enfim, ao longo deste estudo pudemos ir focando as várias facetas do humorismo de Cesário, que se manifestam ora por exageros hiperbólicos, ora por requintes de expressão, que levam sempre o tom irónico, ou, pelo contrário, o "pingo de sebo" lançado sobre uma superfície sem mancha, isto é, um termo grosseiro atirado para junto de uma descrição cheia de elegância. Outros aspectos do seu estilo revelaram-nos ainda como o sentido da ironia ou do sarcasmo é um poderoso agente dos seus versos.
Vejamos mais uma vez o que nos diz José Régio ao analisar Cesário Verde de forma tão penetrante:
"Se outros poetas encontrámos já em que admirámos a multiplicidade dos dons, nenhum ainda encontráramos que em obra tão curta revelasse tanto... e tão magistralmente. Dir-se-ia que em cada poemeto vinca o poeta um novo aspecto da sua personalidade..."
"Assim, as imagens são ousadas e raras, o relevo cru, sóbrio, as linhas rectas ou quebradas, o termo ora rebuscado a ponto de o não parecer, ora atirado ao acaso a ponto de parecer rebuscado. Sente-se aqui o artista caprichoso e poderoso; o mestre; o esteta sugando gostosamente o seu mel. E sente-se um aristocrata na melancolia irónica, distante e superior que lhe penetra vários poemetos. A máscara fria dos seus versos diz o pudor das expansões fáceis e das efusões sentimentais, o que nos proporciona um novo encanto: o particular encanto de uma que outra vez o sentirmos vencido (embora talvez, consciente e voluntariamente vencido) humanizando até às lágrimas a sua altivez de dandy".
Fala-se bastante no modernismo da poesia de Cesário e por várias vezes encontrámos nele traços estilísticos que o aproximam dos poetas contemporâneos: complexidade das imagens, variedade de ritmos, com cesuras profundas, encavalgamentos que transpõem o sentido dos termos ao verso seguinte, prolongando o efeito semântico das mensagens, gosto pela aliteração e pelas formas onomatopaicas, alternância dos planos do mundo exterior e do mundo psicológico.
Mas Cesário Verde está presente, pensamos, não só pelo estilo como pelo conteúdo da sua obra, cujos motivos são explorados pelos escritores portugueses neo-realistas. Lembremos, v.g. a poesia "Provincianas" que tão bem foca o trabalho brutal e mal pago dos que vão trabalhar por conta de patrões ricos e insensíveis à miséria, e as violências a que estão sujeitas as raparigas trabalhadoras, por parte desses mesmos patrões, tema que "A Fanga" de Alves Redol, p. ex., desenvolverá igualmente - o trabalhador miserável sugado e explorado pelo patrão sem escrúpulos a quem o dinheiro deu um poder ilimitado.
Igualmente são figuras sempre vivas os calceteiros vergados sob um trabalho duro, a pequena vendedeira, enfezada mas cheia de vivacidade para conseguir vender as suas hortaliças, mais pesadas do que ela, as peixeiras descalças sobre lugares imundos e infectos, as elegantes que o entristecem, apesar do luxo que as cobre ... E os marçanos, e os carpinteiros, e a velha de bandós, e o professor pedinte, e os magros soldados, e os pálidos barbeiros ... E os seus irmãos doentes... Todo um mundo de figuras sempre actuais nos é revelado através de quadros cheios de interesse pictórico e humano. É extraordinariamente sugestiva a galeria de pobres que povoam a poesia "Em petiz" e que tanta influência tiveram sobre a psique do rapazinho "destro e bravo", mas que deles fugia com terror, "agourando o crime, as facas, a enxovia".
Sentimos o pulsar de vida da cidade ou do campo através desses quadros que o Poeta tão bem consegue captar, um movimento contínuo através das referências a factos banais - um parafuso que cai, tilintando, na rua, as caleches que passam, na noite, os rebanhos que regressam dos pastos, a ondulação das plantas sob a aragem...
E esses descritivos sobre a realidade exterior, vai-os alternando com a anotação do seu próprio eu que a ela reage, em auto-análise psicológica - processo de alternância dos planos exterior e interior que tanto irá influenciar os poetas sensacionistas e futuristas do ORPHEU.
Outros traços se lhes equiparam: o prosaísmo lírico, a natureza anti-literária, dentro de uma conceito anti-aristotélico da arte, que repele lirismos bucólicos, com imagens de doçura e romanticismos luarentos de rouxinóis trinando, pondo em evidência, antes, elementos de carácter utilitário ou sons menos musicais, ou de temas baudelairianos repulsivos e de doença, um sem-número de dados, em que se inclui o Jack, marujo inglês, da poesia “Nós”, que serviria de modelo aos marujos brutais da “Ode Marítima” de Álvaro de Campos:
Jack, marujo inglês, tu tens razão
Quando, ancorando em portos como os nossos,
As laranjas com cascas e caroços
Comes com bestial sofreguidão”...
Também já sugestões surrealistas nos são veiculadas por versos extraídos de “O Sentimento dum Ocidental” como “Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras”;Os olhos dum caleche espantam-me sangrentos” ; “Enleva-me a quimera azul de transmigrar”; “A Dor humana busca os amplos horizontes / E tem marés de fel como um sinistro mar”.
A própria transfiguração sofrida pelos vegetais de “Num Bairro Moderno”, formará longa alegoria, a que não falta o sentido crítico que resulta do contraste entre a brutalidade do peso das hortaliças e a figura humana que as carrega.
Variedade rítmica, sábia configuração dos poemas, são igualmente factores da arte poética de Cesário, que nada deixa ao acaso, criando beleza na expressão das suas emoções, as quais resultam da observação atenta do mundo polifacetado, na sua beleza e fealdade, nos seus dinamismos e nas suas cores, e sons e odores, que se lhe vão deparando, na perspectiva da sua focalização expectante, ou à medida do seu deambular, sozinho ou acompanhado de figura feminina, propícia a mordacidade, como também a apreço e estima.
Cesário, um poeta rebelde, um poeta não convencional, um poeta atento, um poeta original. Que morreu cedo, apenas com trinta e um anos. Em 18 de Julho de 1886.»

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