A minha amiga lembrou o facto do Sr. Director do Banco de Portugal estar com cara de casa funerária, o que me levou a protestar, pois sempre conheci agentes funerários bem-dispostos, falando dos preços e do material das urnas, e a minha amiga nisso deu-me razão, até acrescentou que há urnas com duas assoalhadas e duas portas, mas como se riu, vi logo que estava a gozar comigo e confesso que não gostei nada, porque o meu lema baseia-se sempre na verdade, sem precisar para isso de jurar por nenhuma Bíblia, nem pela minha honra, nem estou em idade de aceitar troças, quaisquer que elas sejam, e muito menos a respeito de urnas.
Mas mudámos de assunto, porque lhe levei um texto da minha neta Ana, do seu blogue “Crónicas de Lisboa”, e li-lho, rindo, sobretudo eu, da graça de um texto que consegue apresentar uma situação dramática, de pânico, como todos nós já sofremos na vida, e, sem manto diáfano de fantasia a recobri-lo, todo ele manifestando um poderoso efeito de visualização dinâmica, moça e despretensiosa, com uma sensibilidade a visar o caricato para desmistificar tal pânico, e a estendê-lo a um sentido crítico e auto-crítico a que a ternura pelo outro não é alheia.
Mas a minha amiga que me acompanhou no riso, foi, em todo o caso mais atenta à realidade cruel que detectou no texto e que ela conhece por confissão das vizinhas:
- A nora da minha vizinha sai-me de casa cada vez mais cedo, para estar no serviço às 8h e chega a casa cada vez mais tarde. Também a filha dela anda esgotada. Pagam-lhe bem, mas exigem cada vez mais dela, sem qualquer respeito pela pessoa humana.
Eu também conheço casos, já várias vezes focámos este assunto da exploração a que os novos tempos conduziram a sociedade.
- É uma ditadura das piores, concluiu a minha amiga, pois não respeita o ser humano, escravo da ameaça de despedimento sempre possível…
Mas eu achei que as outras ditaduras que milhões de outros seres humanos sofreram, na Europa como na Rússia, e agora em tantas partes do globo, eram bem mais cruéis, pois tinham o direito de eliminar os seres humanos e de os submeter a tratos de um horror indescritível.
Mas mudámos de assunto, porque lhe levei um texto da minha neta Ana, do seu blogue “Crónicas de Lisboa”, e li-lho, rindo, sobretudo eu, da graça de um texto que consegue apresentar uma situação dramática, de pânico, como todos nós já sofremos na vida, e, sem manto diáfano de fantasia a recobri-lo, todo ele manifestando um poderoso efeito de visualização dinâmica, moça e despretensiosa, com uma sensibilidade a visar o caricato para desmistificar tal pânico, e a estendê-lo a um sentido crítico e auto-crítico a que a ternura pelo outro não é alheia.
Mas a minha amiga que me acompanhou no riso, foi, em todo o caso mais atenta à realidade cruel que detectou no texto e que ela conhece por confissão das vizinhas:
- A nora da minha vizinha sai-me de casa cada vez mais cedo, para estar no serviço às 8h e chega a casa cada vez mais tarde. Também a filha dela anda esgotada. Pagam-lhe bem, mas exigem cada vez mais dela, sem qualquer respeito pela pessoa humana.
Eu também conheço casos, já várias vezes focámos este assunto da exploração a que os novos tempos conduziram a sociedade.
- É uma ditadura das piores, concluiu a minha amiga, pois não respeita o ser humano, escravo da ameaça de despedimento sempre possível…
Mas eu achei que as outras ditaduras que milhões de outros seres humanos sofreram, na Europa como na Rússia, e agora em tantas partes do globo, eram bem mais cruéis, pois tinham o direito de eliminar os seres humanos e de os submeter a tratos de um horror indescritível.
A minha amiga ironizou:
- Pois, agora tudo se faz dentro das normas, com a conivência dos governos, a comando do capital. Os governos estão a salvo, e os seus amigos também estão bem defendidos, ocupando os bons cargos...
- Mas veja como se ri a minha neta, fazendo humor da desgraça. No tempo do Hitler ou do Staline, não creio que fosse tão desanuviada a escrita:
«Retiro »
"Hoje encho o teclado de sopinha enquanto faço uma proposta de remuneração e um cronograma e cuspo mais umas migalhas de sandes de ovo enquanto revejo uns textos antes de os enviar e falo uma horinha ao telefone, mas não saio daqui depois das 19h". Este é o pensamento das 13h. E às 19, dá-se o chamado renascer do sol. O renascer das 19. E o meu dia recomeça, sem pequeno-almoço, sem lavagem de dentes, cara, cremes, perfumes, sem escolha de roupa adequada, sem as 8 horas de sono ou os Laços de Sangue antes de ir para a cama.
E assim o meu local de trabalho se tornou mais acolhedor. As minhas gavetas foram-se esvaziando de papéis (por vezes importantes), que deram lugar a pacotes de leite, bolachas, nutella, pastilhas elásticas, rebuçados, bens essenciais, de subsistência. E assim me encontrei com uma outra colega altruísta nas masmorras da agência, naquele assustador -3, dentro dos contentores do lixo à procura de papelada importantíssima, vinda de países longínquos onde parece que se fazem bons negócios. As duas a correr atrás do camião do lixo, com as mãos e os braços e a roupa inteira a cheirar a podre, camião que infelizmente "acabou de sair!" e engoliu os meus papéis e a minha reputação de pessoa organizada.
E assim dei por mim no fim-de-semana aos gritos com a senhora dos pastéis de Belém que, com 90 anos e um ar esfomeado, tentou passar à minha frente na fila para comer um pastel sentada à mesa porque já não aguentava as pernas. E depois com o empregado dos pastéis que se enganou a dar-me o troco. E com o meu namorado que observou que não era com esta pessoa que tinha começado a namorar. Um drama.
E assim perdi uns quilos e me tornei enfezada apesar das bolachas e do cancelamento da natação. E assim este blog foi perdendo vida, tal como eu, que fui inclusive abordada no comboio para frequentar aulas de apoio pessoal. Estava eu e uma carruagem inteira de deprimidos, sentados e de pé, mas apenas eu tive direito a uma festa nas costas, uma palavrinha e um panfleto sobre "como melhorar a minha aura". Estava a incomodar.
Mas estou confiante. Adoptei os saltos altos, a maquilhagem matinal, da hora de almoço e da hora de jantar e os soutiens com enchimento e acho que as coisas estão a voltar a pouco e pouco aos seus lugares.»
Camus escreveu no “Mito de Sisifo” sobre o absurdo das contingências humanas, submetidas à lei do efémero da vida e do massacre das rotinas diárias. Usou a gravidade da reflexão, ele pertenceu à elite de pensadores brilhantes que filosofaram sobre os comos e os porquês da existência e os aplicaram nas suas obras de ficção.
Este breve texto da Ana é um mimo de graça e de sensibilidade crítica, revelador dos novos tempos, de uma juventude que, tendo sido beneficiada pelo progresso material, enfrenta com desportivismo e alegria as dificuldades do seu dia-a-dia.
E assim, cada um vai conquistando o seu espaço – na submissão às normas do imperialismo capitalista ameaçador, ou na liberdade de brincar com isso.
Mas é necessário mudar.
- Pois, agora tudo se faz dentro das normas, com a conivência dos governos, a comando do capital. Os governos estão a salvo, e os seus amigos também estão bem defendidos, ocupando os bons cargos...
- Mas veja como se ri a minha neta, fazendo humor da desgraça. No tempo do Hitler ou do Staline, não creio que fosse tão desanuviada a escrita:
«Retiro »
"Hoje encho o teclado de sopinha enquanto faço uma proposta de remuneração e um cronograma e cuspo mais umas migalhas de sandes de ovo enquanto revejo uns textos antes de os enviar e falo uma horinha ao telefone, mas não saio daqui depois das 19h". Este é o pensamento das 13h. E às 19, dá-se o chamado renascer do sol. O renascer das 19. E o meu dia recomeça, sem pequeno-almoço, sem lavagem de dentes, cara, cremes, perfumes, sem escolha de roupa adequada, sem as 8 horas de sono ou os Laços de Sangue antes de ir para a cama.
E assim o meu local de trabalho se tornou mais acolhedor. As minhas gavetas foram-se esvaziando de papéis (por vezes importantes), que deram lugar a pacotes de leite, bolachas, nutella, pastilhas elásticas, rebuçados, bens essenciais, de subsistência. E assim me encontrei com uma outra colega altruísta nas masmorras da agência, naquele assustador -3, dentro dos contentores do lixo à procura de papelada importantíssima, vinda de países longínquos onde parece que se fazem bons negócios. As duas a correr atrás do camião do lixo, com as mãos e os braços e a roupa inteira a cheirar a podre, camião que infelizmente "acabou de sair!" e engoliu os meus papéis e a minha reputação de pessoa organizada.
E assim dei por mim no fim-de-semana aos gritos com a senhora dos pastéis de Belém que, com 90 anos e um ar esfomeado, tentou passar à minha frente na fila para comer um pastel sentada à mesa porque já não aguentava as pernas. E depois com o empregado dos pastéis que se enganou a dar-me o troco. E com o meu namorado que observou que não era com esta pessoa que tinha começado a namorar. Um drama.
E assim perdi uns quilos e me tornei enfezada apesar das bolachas e do cancelamento da natação. E assim este blog foi perdendo vida, tal como eu, que fui inclusive abordada no comboio para frequentar aulas de apoio pessoal. Estava eu e uma carruagem inteira de deprimidos, sentados e de pé, mas apenas eu tive direito a uma festa nas costas, uma palavrinha e um panfleto sobre "como melhorar a minha aura". Estava a incomodar.
Mas estou confiante. Adoptei os saltos altos, a maquilhagem matinal, da hora de almoço e da hora de jantar e os soutiens com enchimento e acho que as coisas estão a voltar a pouco e pouco aos seus lugares.»
Camus escreveu no “Mito de Sisifo” sobre o absurdo das contingências humanas, submetidas à lei do efémero da vida e do massacre das rotinas diárias. Usou a gravidade da reflexão, ele pertenceu à elite de pensadores brilhantes que filosofaram sobre os comos e os porquês da existência e os aplicaram nas suas obras de ficção.
Este breve texto da Ana é um mimo de graça e de sensibilidade crítica, revelador dos novos tempos, de uma juventude que, tendo sido beneficiada pelo progresso material, enfrenta com desportivismo e alegria as dificuldades do seu dia-a-dia.
E assim, cada um vai conquistando o seu espaço – na submissão às normas do imperialismo capitalista ameaçador, ou na liberdade de brincar com isso.
Mas é necessário mudar.
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