terça-feira, 3 de maio de 2011

Vai Neptuno decidir

Cheguei primeira ao nosso ponto habitual de encontro – o virar da esquina, onde os três contentores dos recicláveis se enfileiram para neles repartirmos civilizadamente os produtos do despejo diário. A minha amiga chegou depois, sem lixo para despejar, entrando no carro, a falar ao telemóvel. A bomba, guardou-a religiosamente para a mesa do café, largando-a num suspense triunfalista, embora em surdina, por estarmos num espaço público:
- Olha, o dia um de Maio de 2011 fica feriado em quadruplicado – dia do Trabalhador, dia da Mãe, do Papa e do Bin Laden…
- Do Bin Laden? –
estranhei.
- Mas isto é tão incrível que eu preciso de confirmar. Se eu não tivesse ouvido o Obama, ainda estava à espera de saber se era verdade.
- Mas qual verdade?
– insisto, em frustrada curiosidade.
- Estava um português a dizer que o terrorismo ainda não acabou e eu, que acabei de ouvir o Obama dizer isso, disse cá comigo: “Não dizes isso em primeira mão, já o Obama o disse…” Mas tenho que confirmar…
- Mas afinal o quê?
– quase berrei, mas discretamente, não gosto de erguer a voz no café.
- Até se dizia p’r’aí que ele estava mais que morto, só que não havia provas…
- Mas o Bin Laden morreu?
– exclamo, já meio impaciente.
- O atentado contra o Kadafi quase que ia sendo também neste dia, foi por um triz. Mas ele não morreu, morreu o filho e três netos. Mas já viu o que era ser o Kadafi em vez do filho e dos netos? Era incrível! Foi por pouco. Nas casas deles têm bunkers. Ele devia estar no bunker e o filho e os netos cá em cima. Só quando a casa está toda rebentada é que entram nos bunkers, onde não falta nada de conforto. Ele agora rende-se, deve estar desfeito.
A dona do café trouxe os cafés e os copos de água e confirmou o mistério sobre o Ossama, dando pormenores, com a televisão sempre acesa, favorecendo o conhecimento:
- Então lá se foi o Bin Laden? Parece que foram os americanos… Mas o terrorismo não acaba.
Passou uma nossa amiga, ao largo, muito despachada, a caminho do cabeleireiro, bati no vidro, interrompendo-lhe o percurso. Veio vindo, a certificar-se de que o toque era para ela, entrou no café a bradar, num à-vontade descuidado:
- Então mataram o Bin Laden?
- Só vendo! –
ponderou a minha amiga cautelosa - precisamos de saber melhor.
A nossa amiga deu informações:
- Apareceu uma imagem dele com o olho vazado…
- Está com muita sorte de ter só um olho vazado
– disse a minha amiga, com uma ferocidade que achei de mau gosto.
E a senhora que todos os dias faz palavras cruzadas e toma o seu pequeno almoço lá no café, e ajuda os que ali entram a pedir comida, mandando a dona do café servir-lhes o que eles pedem, ponderou sobre a crueldade dessas imagens chocantes, do Saddam encurralado, do Savimbi coberto de moscas, agora do Bin Laden de olho vazado…
A nossa amiga, sempre carinhosa, lamentou os netos e o filho do Kadafi, sacrificados sem culpa:
- Coitadinhos!
Cada uma voltou aos seus afazeres, ao cabeleireiro, às palavras cruzadas, às compras no Pingo Doce, aos trabalhos de casa...
E foi um fartote de Ossama, o dia inteiro. A “ameaça terrorista que vai durar”, a “operação cirúrgica relâmpago dos dois helicópteros norte-americanos”, o discurso do Obama, o falso retrato do Ossama de olho vazado, o enterro aquático de Ossama, que eu estranhei, por nos deixar na incerteza, propiciando o mito, tal como nós também cá temos, meio enevoado o nosso, embora, ao contrário do D. Sebastião, ele venha a funcionar antes como monstruoso drácula, vampiro de raízes eternas, bebendo sangue a procriar…
E a minha irmã explicando à curiosidade da minha mãe, em jogo de rimas despreocupado:
- O criminoso é o Obama, que matou Ossama…

Nenhum comentário: