terça-feira, 27 de março de 2012

“É pecado mijar no adro porque na igreja quem quer “meija”


Tem estado constipada, a minha mãe, mas o médico acorreu a tempo e a tosse vai passando, embora deixe marcas com a falta de retenção urinária, felizmente protegida graças ao progresso facilitador, que fornece slips para todos os tamanhos. Estávamos na hora do almoço, a minha irmã assistia ao almoço da minha mãe, no escritório transformado em quarto, quando aparece junto de nós, que almoçávamos na cozinha. Perdida de riso. Quisemos saber porquê e logo que pôde contou da saída da minha mãe, a quem um acesso de tosse lembrou a sentença que faz o título do texto: “É pecado mijar no adro porque na igreja quem quer “meija”. O riso logo se comunicou a nós e fui fazê-la repetir o dito, ao que ela se prontificou, rindo, encantada com a sua graça, pela primeira vez citada.

Além de mais uma vez admirar a extraordinária memória da minha mãe, prestes a apagar o bolo dos seus 105 anos, admirei a sabedoria do nosso povo, feita de malícia, aplicando o conhecimento humanista aos seus costumes ancestrais, de gente pouco habituada aos resguardos inferiores. Realmente, a imagem das mulheres na igreja descaindo-se, a coberto do escuro, é bem significativa do desconhecimento de regras de higiene dos tempos em que nas cidades as lavagens eram lançadas à rua pelas janelas, precedidas do aviso “Água vai!” . Mas é igualmente expressiva de avaliação chocarreira da alma humana, no seu significado de “fazer pela calada, praticar vilezas a coberto, ou do anonimato ou de conluios com os da mesma seita”: «É pecado mijar no adro, que na igreja quem quer “meija”». Profundamente actual.

Mas é sobre a minha mãe tão ágil mentalmente, nas suas saídas inesperadas, ora alegre, ora chorosa, ora evocando os seus, ora perguntando se estão vivos, ora baralhando as suas lembranças, ora cantando, um pouco estropeadamente, as canções da sua vida, que quero recordar nestes dias de março, com a surpresa nunca esmorecida pela pessoa enérgica que foi e que é ainda, dando ordens, o imperativo sendo a forma verbal que mais utiliza no seu relacionamento diário, rainha no seu mundo mimado, como o foi na sua vivência de tão longa data.

Há dias, ouvi-lhe esta:

“Viva a Santa Madalena / Quando é nossa advogada. / Bendita e louvada seja/

Toda a Família Sagrada.”

“Bendito e louvado seja / S. Domingos de Gusmão. / Veio acudir ao mundo / Com seu rosário na mão.”

- Quem te ensinou isso?

- Foi a minha mãe. A gente cantava ao serão, a fiar maçarocas.

Mas também recorda uma canção que o seu irmão Américo levara de África, juntamente com muitos outros discos que escutavam na grafonola, comprada pelos três irmãos idos de África de férias, Carlos, Belmiro e Américo, em época de muita felicidade para a família, como sublinha em evocações várias. Mas a canção  foi incompleta e adulterada:

«… Ai, ceguinha, / Só tu és o meu pensar / Vem comigo, pobrezinha, / Ai que lá por seres ceguinha  / Tens aqui com quem brincar!»

«Desde então, todos os dias, / Ao chegar pela tardinha / Eu brincava com a ceguinha / Que mostrava timidez. / Fui logo para o pé dela / E no leito branco e frio / Nós brincávamos os três.»

E assim vai cantando e conversando com os seus, de sempre, que inclui os santos: Por exemplo esta canção, que trouxe lá dos recônditos das suas memórias religiosas:

«Prometi no dia do meu baptismo / A Jesus sempre, sempre adorar. / Meus padrinhos em meu nome falaram, / Hoje as promessas venho renovar! – Fiel, Sincero / Eu mesmo quero / A Jesus sempre, sempre adorar / Fiel, sincero, / Eu mesmo quero / A, a Jesus sempre, sempre adorar.»

Há dias falou em alguém a quem a família foi deixar num “curral”, para ali morrer. A minha mãe tem uma predilecção pelos termos fortes, mas notei que, sem o transmitir verbalmente, estava grata pelo facto de tão ruim destino não ter sido reservado a ela.

E lembro o dia em que a minha neta Ana veio visitá-la, com a mãe, e esta comentou que hoje já não se justificam os centros geriátricos, pois há a possibilidade de arranjar enfermeiras disponíveis para tomar conta dos idosos, na sua própria casa. Tinham visto a vivacidade da minha mãe, acharam que, se estivesse num lar nunca poderia sobreviver, nem com visitas diárias. A minha mãe é um produto, não só da sua força interior, mas do mimo de que é rodeada, com uma filha mais velha impecável e uma mais nova nem sempre paciente, mas que a faz reagir e reviver, feliz quando “pica”.

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Duas datas aniversariantes: 25 de fevereiro, a dos 26 anos da minha neta Ana, em que ela nos veio ver e falámos em centros para idosos, incompatíveis, a maior parte das vezes, com o ambiente familiar donde aqueles partiram, o que os torna extremamente infelizes, apesar das boas vontades de alguns empregados nesses lares e da inteligente organização de alguns. 10 de março, a data dos 26 anos da minha neta Catarina, um sábado em que, às seis e meia da manhã venho encontrar a minha mãe estatelada no chão junto à cama, mas coberta com mantas, que teve o cuidado de puxar para si. Com muita dificuldade, conseguimos deitá-la, apesar de se queixar do braço direito.  Ainda tomou o seu banho, quando a minha irmã chegou, almoçou, achámos que devia ter só magoado o braço. À tarde, chegaram a Catarina e o Luís, e este entendeu que o ombro estava inchado e chamou-se o 112. Vieram os bombeiros com a ambulância e no hospital de Cascais descobriram que tinha o colo do úmero partido.

 Pobrezita, há dois anos o fémur, agora o úmero. Não parou de falar, na sua maca, de repetir as perguntas, incansável, enquanto recebia o soro com a medicação para as dores. Tinha sede, tinha fome, a minha mãe nunca se habituou à resignação. “Porquê eu, na minha idade?” – protesta. E não valia a pena lembrar as pessoas mais novas que sofriam na mesma enfermaria dos cuidados de urgência. A minha mãe nasceu rainha, chegou a uma idade de privilégios que faz questão de reivindicar, surda a protestos.  

Duas noites depois: A minha irmã conseguira encontrar o invólucro receitado para imobilizar o braço, cabestrilho segundo aprendo, porque na noite do hospital só obtivera um mais flácido, que  não o prendia convenientemente. Noite para esquecer, com chamadas constantes, queixando-se de dores. Acabei por soçobrar, no sofá. Quando acordei, com nova chamada, dei com a minha mãe de cabestrilho desfeito, e um ar mais repousado. Como rato roendo paulatinamente o seu queijo, fora despregando as fitas presas por velcro adesivo, até que soltou o braço da manga onde fora enfiado.   De nada valeu a minha zanga. Todas as noites e dias se desprende e assume o mesmo ar de menina bem comportada que desconhece a maldade que fez.

Não sei se terá razão o médico que a veio ver e que acha que o braço já não vai colar. Numa  das recentes noites foi tal a força do seu desespero que não deixou ninguém dormir. Deitei-me ao seu lado, mas continuava a gritar por mim e por todos, em protestos de nenhuma mansidão. Várias vezes tapada, e reposto o velcro, acabei por desistir, deixando-a sozinha e voltando para o meu sofá, depois de a ter tapado e colocado móveis do lado esquerdo da cama. Mas ouvindo o reboliço de móveis a serem empurrados, corri ao quarto mas não fui a tempo. Ainda a vi cair, sobre o lado esquerdo. Chamado o meu filho João, conseguimos subi-la para a cama. Entretanto o João e o meu marido trouxeram a cama de grades que fora há muito arrumada, reconstituíram-na e a minha mãe voltou para as grades que tanto a enfureciam. Felizmente não ficou afectado o braço esquerdo.

Agora deu em variar, uma conversa repetitiva e sem lógica, parecendo não saber onde está, se já passou a Ponte e a Sobreira e o pinhal e se está na sua casa do Carregal. De princípio, eu negava e esclarecia onde estava. Decidi depois, ante a insistência das perguntas, concordar que estava no Carregal. Ficou encantada. Voltara a casa. Mas tanto a minha irmã como eu achamos que existe muito de farsa nesta conversa propositadamente tola da minha mãe. Porque ainda hoje, domingo, como tínhamos levado a cama de rodas para junto da televisão para ouvir a missa, como fazia aos domingos, adormeceu e, ao acordar ordenou que apagassem a televisão porque ninguém estava a ouvir. Uma frase perfeitamente lúcida e correcta. Veremos se o fim, de que ela constantemente fala, no terror dele, estará mesmo próximo. A verdade é que vai comendo bem.

Gradualmente, a minha mãe se vem adaptando à nova enfermidade, com a força que põe no seu direito à vida. Queixando-se de dores, os remédios mal a ajudando a ultrapassá-las, achando que nunca roubara nem fizera mal a ninguém, obrigando-me a lembrar-lhe, inutilmente, de resto, de que os outros milhões de sofredores também provavelmente, não teriam feito. E a nossa equipa de filhas e genro e às vezes netos,  funciona bem. Quando foi da perna, também se dizia que era o começo do fim. O problema da ida à cadeira fazer as necessidades, que inicialmente exigia várias presenças, já é efectuado a duas. Também voltou a cantar. Neste momento, com a visita da neta mais velha, a Anita, canta, sempre amiga de se exibir, mas com lágrimas na voz:

A primavera vai e volta sempre, / A mocidade vai não volta mais.

E fala do meu pai e dos prémios que este recebeu em Macau, nos estudos que ali fez. Primeiro, falara nos seus pais, nos seus trabalhos de moçoila. E a esperança renasce, com as suas conversas de sempre, embora acrescentadas, por vezes, dos novos queixumes.

Não quer morrer, mas regressa constantemente às suas origens. Acabo de a ouvir dizer à neta: “O meu cemitério é muito longe. É em Destriz.”

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27/ 3/2012: 105 anos. Parabéns para ti, Mamã! Que os anos que tiveres pela frente sejam, pelo menos, mais brandos em dores. E que a graça da tua frase que fez este título de homenagem, não seja ainda a última que pronunciarás. Desejamos-te assim viva, apesar das borrascas, que em ti resultam de te julgares com a mesma força com que ceifavas os campos da casa onde nasceste, nesse teu Carregal para sempre.


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