Tem
estado constipada, a minha mãe, mas o médico acorreu a tempo e a tosse vai
passando, embora deixe marcas com a falta de retenção urinária, felizmente
protegida graças ao progresso facilitador, que fornece slips para todos os
tamanhos. Estávamos na hora do almoço, a minha irmã assistia ao almoço da minha
mãe, no escritório transformado em quarto, quando aparece junto de nós, que
almoçávamos na cozinha. Perdida de riso. Quisemos saber porquê e logo que pôde
contou da saída da minha mãe, a quem um acesso de tosse lembrou a sentença que
faz o título do texto: “É pecado mijar no adro porque na igreja quem quer
“meija”. O riso logo se comunicou a
nós e fui fazê-la repetir o dito, ao que ela se prontificou, rindo, encantada
com a sua graça, pela primeira vez citada.
Além de mais uma vez admirar a extraordinária memória
da minha mãe, prestes a apagar o bolo dos seus 105 anos, admirei a sabedoria do
nosso povo, feita de malícia, aplicando o conhecimento humanista aos seus
costumes ancestrais, de gente pouco habituada aos resguardos inferiores.
Realmente, a imagem das mulheres na igreja descaindo-se, a coberto do escuro, é
bem significativa do desconhecimento de regras de higiene dos tempos em que nas
cidades as lavagens eram lançadas à rua pelas janelas, precedidas do aviso “Água
vai!” . Mas é igualmente expressiva de avaliação chocarreira da alma
humana, no seu significado de “fazer pela calada, praticar vilezas a
coberto, ou do anonimato ou de conluios com os da mesma seita”: «É
pecado mijar no adro, que na igreja quem quer “meija”». Profundamente
actual.
Mas é sobre a minha mãe tão ágil mentalmente, nas suas
saídas inesperadas, ora alegre, ora chorosa, ora evocando os seus, ora
perguntando se estão vivos, ora baralhando as suas lembranças, ora cantando, um
pouco estropeadamente, as canções da sua vida, que quero recordar nestes dias
de março, com a surpresa nunca esmorecida pela pessoa enérgica que foi e que é
ainda, dando ordens, o imperativo sendo a forma verbal que mais utiliza no seu
relacionamento diário, rainha no seu mundo mimado, como o foi na sua vivência
de tão longa data.
Há dias, ouvi-lhe esta:
“Viva a Santa Madalena / Quando é nossa advogada. / Bendita
e louvada seja/
Toda a Família Sagrada.”
“Bendito e louvado seja / S. Domingos de Gusmão. / Veio
acudir ao mundo / Com seu rosário na mão.”
- Quem te ensinou isso?
- Foi a minha mãe. A gente cantava ao serão, a fiar
maçarocas.
Mas também recorda uma canção que o seu irmão Américo
levara de África, juntamente com muitos outros discos que escutavam na
grafonola, comprada pelos três irmãos idos de África de férias, Carlos, Belmiro
e Américo, em época de muita felicidade para a família, como sublinha em
evocações várias. Mas a canção foi
incompleta e adulterada:
«… Ai, ceguinha, / Só tu és o meu pensar / Vem comigo,
pobrezinha, / Ai que lá por seres ceguinha
/ Tens aqui com quem brincar!»
«Desde então, todos os dias, / Ao chegar pela tardinha
/ Eu brincava com a ceguinha / Que mostrava timidez. / Fui logo para o pé dela
/ E no leito branco e frio / Nós brincávamos os três.»
E assim vai cantando e conversando com os seus, de
sempre, que inclui os santos: Por exemplo esta canção, que trouxe lá dos
recônditos das suas memórias religiosas:
«Prometi no dia do meu baptismo / A Jesus sempre,
sempre adorar. / Meus padrinhos em meu nome falaram, / Hoje as promessas venho
renovar! – Fiel, Sincero / Eu mesmo quero / A Jesus sempre, sempre adorar /
Fiel, sincero, / Eu mesmo quero / A, a Jesus sempre, sempre adorar.»
Há dias falou em alguém a quem a família foi deixar
num “curral”, para ali morrer. A minha mãe tem uma predilecção pelos termos
fortes, mas notei que, sem o transmitir verbalmente, estava grata pelo facto de
tão ruim destino não ter sido reservado a ela.
E lembro o dia em que a minha neta Ana veio visitá-la,
com a mãe, e esta comentou que hoje já não se justificam os centros
geriátricos, pois há a possibilidade de arranjar enfermeiras disponíveis para
tomar conta dos idosos, na sua própria casa. Tinham visto a vivacidade da minha
mãe, acharam que, se estivesse num lar nunca poderia sobreviver, nem com
visitas diárias. A minha mãe é um produto, não só da sua força interior, mas do
mimo de que é rodeada, com uma filha mais velha impecável e uma mais nova nem
sempre paciente, mas que a faz reagir e reviver, feliz quando “pica”.
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Duas datas aniversariantes: 25 de fevereiro, a dos 26
anos da minha neta Ana, em que ela nos veio ver e falámos em centros para
idosos, incompatíveis, a maior parte das vezes, com o ambiente familiar donde aqueles
partiram, o que os torna extremamente infelizes, apesar das boas vontades de
alguns empregados nesses lares e da inteligente organização de alguns. 10 de
março, a data dos 26 anos da minha neta Catarina, um sábado em que, às seis e
meia da manhã venho encontrar a minha mãe estatelada no chão junto à cama, mas
coberta com mantas, que teve o cuidado de puxar para si. Com muita dificuldade,
conseguimos deitá-la, apesar de se queixar do braço direito. Ainda tomou o seu banho, quando a minha irmã
chegou, almoçou, achámos que devia ter só magoado o braço. À tarde, chegaram a
Catarina e o Luís, e este entendeu que o ombro estava inchado e chamou-se o
112. Vieram os bombeiros com a ambulância e no hospital de Cascais descobriram
que tinha o colo do úmero partido.
Pobrezita, há
dois anos o fémur, agora o úmero. Não parou de falar, na sua maca, de repetir
as perguntas, incansável, enquanto recebia o soro com a medicação para as
dores. Tinha sede, tinha fome, a minha mãe nunca se habituou à resignação. “Porquê
eu, na minha idade?” – protesta. E não valia a pena lembrar as pessoas mais
novas que sofriam na mesma enfermaria dos cuidados de urgência. A minha mãe
nasceu rainha, chegou a uma idade de privilégios que faz questão de reivindicar,
surda a protestos.
Duas noites depois: A minha irmã conseguira encontrar
o invólucro receitado para imobilizar o braço, cabestrilho segundo aprendo, porque
na noite do hospital só obtivera um mais flácido, que não o prendia convenientemente. Noite para
esquecer, com chamadas constantes, queixando-se de dores. Acabei por soçobrar,
no sofá. Quando acordei, com nova chamada, dei com a minha mãe de cabestrilho
desfeito, e um ar mais repousado. Como rato roendo paulatinamente o seu queijo,
fora despregando as fitas presas por velcro adesivo, até que soltou o braço da
manga onde fora enfiado. De nada valeu
a minha zanga. Todas as noites e dias se desprende e assume o mesmo ar de
menina bem comportada que desconhece a maldade que fez.
Não sei se terá razão o médico que a veio ver e que
acha que o braço já não vai colar. Numa
das recentes noites foi tal a força do seu desespero que não deixou
ninguém dormir. Deitei-me ao seu lado, mas continuava a gritar por mim e por
todos, em protestos de nenhuma mansidão. Várias vezes tapada, e reposto o
velcro, acabei por desistir, deixando-a sozinha e voltando para o meu sofá,
depois de a ter tapado e colocado móveis do lado esquerdo da cama. Mas ouvindo
o reboliço de móveis a serem empurrados, corri ao quarto mas não fui a tempo.
Ainda a vi cair, sobre o lado esquerdo. Chamado o meu filho João, conseguimos
subi-la para a cama. Entretanto o João e o meu marido trouxeram a cama de
grades que fora há muito arrumada, reconstituíram-na e a minha mãe voltou para
as grades que tanto a enfureciam. Felizmente não ficou afectado o braço
esquerdo.
Agora deu em variar, uma conversa repetitiva e sem
lógica, parecendo não saber onde está, se já passou a Ponte e a Sobreira e o
pinhal e se está na sua casa do Carregal. De princípio, eu negava e esclarecia
onde estava. Decidi depois, ante a insistência das perguntas, concordar que
estava no Carregal. Ficou encantada. Voltara a casa. Mas tanto a minha irmã
como eu achamos que existe muito de farsa nesta conversa propositadamente tola
da minha mãe. Porque ainda hoje, domingo, como tínhamos levado a cama de rodas
para junto da televisão para ouvir a missa, como fazia aos domingos, adormeceu
e, ao acordar ordenou que apagassem a televisão porque ninguém estava a ouvir.
Uma frase perfeitamente lúcida e correcta. Veremos se o fim, de que ela
constantemente fala, no terror dele, estará mesmo próximo. A verdade é que vai
comendo bem.
Gradualmente, a minha mãe se vem adaptando à nova
enfermidade, com a força que põe no seu direito à vida. Queixando-se de dores,
os remédios mal a ajudando a ultrapassá-las, achando que nunca roubara nem
fizera mal a ninguém, obrigando-me a lembrar-lhe, inutilmente, de resto, de que
os outros milhões de sofredores também provavelmente, não teriam feito. E a
nossa equipa de filhas e genro e às vezes netos, funciona bem. Quando foi da perna, também se
dizia que era o começo do fim. O problema da ida à cadeira fazer as
necessidades, que inicialmente exigia várias presenças, já é efectuado a duas.
Também voltou a cantar. Neste momento, com a visita da neta mais velha, a
Anita, canta, sempre amiga de se exibir, mas com lágrimas na voz:
A primavera vai e volta sempre, / A
mocidade vai não volta mais.
E fala do meu pai e dos prémios que este recebeu em
Macau, nos estudos que ali fez. Primeiro, falara nos seus pais, nos seus
trabalhos de moçoila. E a esperança renasce, com as suas conversas de sempre,
embora acrescentadas, por vezes, dos novos queixumes.
Não quer morrer, mas regressa constantemente às suas origens.
Acabo de a ouvir dizer à neta: “O meu cemitério é muito longe. É em
Destriz.”
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27/ 3/2012: 105 anos. Parabéns para ti, Mamã! Que os
anos que tiveres pela frente sejam, pelo menos, mais brandos em dores. E que a
graça da tua frase que fez este título de homenagem, não seja ainda a última
que pronunciarás. Desejamos-te assim viva, apesar das borrascas, que em ti
resultam de te julgares com a mesma força com que ceifavas os campos da casa
onde nasceste, nesse teu Carregal para sempre.
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