sábado, 3 de março de 2012

“Aquilo foi arrumado pelo Tribunal”


A minha amiga hoje apareceu cansada, a falar em números: os das mortes nestas duas últimas semanas, indignada por ninguém justificar tão espantosa mortandade que uma gripe colectiva tem originado, sobretudo na população mais idosa. A minha amiga acha que tais números de catástrofe são já consequência da crise, da má nutrição, da falta de dinheiro para debelar o frio, de todos os condicionalismos a que o governo do “custe o que custar” reduziu uma população desde sempre considerada na base da velha pirâmide, cujo vértice cimeiro não é já Deus, nem o rei, mas o grupo dos capitalistas corruptos, que se capitalizaram por artimanhas que os fizeram alcandorar-se no topo, por deficiente aliança entre governo e justiça.

E falou-se no crime, na violência no país dos brandos costumes que há muito deixou de o ser. Aliás, eu nunca achara que o fosse. Porque um país onde reina uma desigualdade social gritante, o que tem é costumes de subserviência, por não ter crescido mentalmente a população iletrada, cujos números assustadores nos envergonharão creio que por longo tempo ainda.

Mas aquilo a que temos ultimamente assistido é algo de estranho, que víamos nos filmes ou conhecemos nas notícias do estrangeiro. Uma agressividade inusitada, assaltos a lojas, com mortes, roubos, saques, assassínios até entre familiares, raptos, crimes de estarrecer.

E a minha amiga conta, a voz alterada pela indignação:

- Agora é matar, matar, matar. Histórias de fazer eco. Sabe o que fez um marido ciumento? Foi atrás do carro da mulher, espatifou-lhe o carro, fê-la sair dele e esfaqueou-a. Foi contado no programa da Júlia Pinheiro, a mulher falou do hospital, onde está internada. Porque aqui dá-se este caso: o fulano não foi preso. Como é que um gajo daqueles vem cá para fora? Que raio de justiça é a nossa que permite que ande um criminoso à solta, a aguardar julgamento?

Citou ainda o caso do rapazinho de dezassete anos que apareceu morto, as pernas queimadas, um crime de violência extrema.

- A violência é tão grande que deixa a polícia espantada. Não, aqui já não é diferente do que se passa lá fora.

E referiu o caso do Paco Bandeira, inicialmente defendido pela última namorada, que agora veio desmentir em Tribunal as suas afirmações anteriores sobre a inocência dele. Afinal, ela própria teve medo dele e separou-se. E o irmão da primeira mulher, que veio reabrir o processo, por não se tratar de suicídio mas de homicídio cometido por Paco. Nada pudera fazer antes em defesa da irmã, dado o prestígio daquele, numa justiça afável com o criminoso ilustre, sobre o qual, cada vez mais, aparecem testemunhas acusadoras.

- Aquilo foi arrumado pelo Tribunal, concluiu. Como é que o Tribunal arruma este assunto? O Tribunal não quer saber de nada?

Respondi que o Tribunal, tal como nós, só atendia à “A ternura dos quarenta”, um excelente meio de autodefesa. E lembrei ainda o tempo em que, em África, nós escutávamos constantemente a canção  que nos seduzia os ouvidos confiantes e que desde o 25 de Abril fora silenciada:
“Lá longe, onde o sol castiga mais, não há suspiros nem ais, há coragem e valor…”

Achámos que talvez a sua cabeça tivesse ficado, de facto, mais castigada do que ele cantara, na sua voz saudosa, de entoações perfeitamente originais. E considerámos ainda quanto o lirismo tem de enganador.

Referimos, a propósito, o provérbio que, tal como a nós, motivou a injustiça da Justiça: “Bem prega frei Tomás. Olha para o que ele diz, não olhes para o que ele faz.”
A Justiça limitou-se a olhar o que ele diz.

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