domingo, 19 de agosto de 2012

Jean Girodon - Ofélia Paiva Monteiro


«Stendhal em Portugal – Ensino e Recepção» uma palestra de Ofélia Paiva Monteiro, publicada, como muitos outros estudos seus, na Internet, proporcionando aos curiosos ou mesmo apaixonados pelos meandros literários, uma continuidade de estudo pela revivescência de factos, figuras e valores, alguns dos quais por nós também passaram, juntamente com outros que formam o cadinho das vivências de cada um.

Neste trabalho, feito para projecção do intercâmbio cultural entre Portugal e a França, como homenagem ao professor da Faculdade de Letras do Porto Dr. Ferreira de Brito, apresenta Ofélia Paiva Monteiro, antes de se lançar sobre o tema da sua palestra – Stendhal … - uma evocação de um comum professor nosso, leitor de francês na Faculdade de Letras de Coimbra, que para mim também constituiu, nesses tempos, deslumbramento pela presença francesa de alguém com o humor, a sensibilidade e o espírito que lhe vinha do seu país de larga tradição cultural. Para mim também M. Jean Girodon foi alguém que marcou o meu percurso na língua e literatura francesas que a biblioteca do Instituto Francês, dirigido pelo Sr. França Amado, personagem de bon-vivant também marcante no apoio cultural da Faculdade de Letras de Coimbra, possibilitava, com a requisição de livros de maravilha, num percurso iniciado na biblioteca do Liceu Salazar em Lourenço Marques razoavelmente preenchida e frequentada pelos alunos interessados.

Não posso deixar de transcrever as palavras de Ofélia Paiva Monteiro, que eu conheci em Coimbra, era segundanista de Filologia Românica, quando eu iniciava a minha vida universitária, de caloira no mesmo curso. Da mesma idade – a Ofélia, aliás, um ou dois meses mais nova do que eu e mais adiantada, como estudante precoce, considerada como uma presença que se impunha, não só pela delicadeza e suavidade dos seus gestos e falas, como pelo seu saber que ela vastamente difundiu ao longo da vida, quer nas suas aulas de professora catedrática, quer em palestras e nos seus escritos bastamente divulgados, como os de outros professores sob a sua orientação, em que estes lhe admiram a competência e a sedução da presença, do discurso e do modo:

«Andava eu pelos dezoito anos – estava-se em 1953 ou 54 – e frequentava Filologia Românica em Coimbra quando li pela primeira vez Stendhal, mais concretamente Le Rouge et le Noir, não porque os programas de Literatura Francesa mo pedissem, mas porque a curiosidade me movera a seleccionar este romance, que constantemente encontrava referido, para preparação de um dos exames finais – três ao longo da licenciatura – da disciplina então chamada “Curso Prático de Língua Francesa”.
Um só leitor se encarregava dela para a totalidade dos alunos que seguiam Filologia Românica (uns 90); era um leitor colocado na Faculdade de Letras pelo Governo francês, a cujos quadros de ensino pertencia, um leitor a quem oficialmente cabia, pois, o papel de se tornar um agente dinâmico do ensino e da difusão da língua e da cultura francesas, que gozavam ainda entre nós de muito prestígio; no cumprimento desta missão, esse leitor – Jean Girodon 1 – era uma figura nuclear da vida do então e ainda hoje  chamado Instituto de Estudos Franceses (que Eugénio de Castro havia criado na década de 30), órgão que a Embaixada Francesa e os seus Serviços Culturais entendiam – saudosos tempos! – como um verdadeiro centro representativo e fomentador da cultura do seu País no lato domínio das ciências humanas. Daí o apoio notável que lhe davam: através da Embaixada, a biblioteca do Instituto recebia regularmente contingentes de livros que a mantinham actualizada, beneficiava da assinatura de numerosas revistas, enriquecia-se de material audiovisual, acolhia, para conferências ou concertos, personalidades francesas de vulto e premiava com algumas bolsas de estudo jovens investigadores ou alunos que se tivessem distinguido. Por tudo isto, o Instituto de Estudos Franceses era um espaço que toda a Faculdade de Letras, professores e estudantes (mas também os havia de outras Faculdades), frequentava para ler e conversar um pouco, um espaço onde se respirava com algum desafogo no meio do fechamento que então pesava no País e tanto se reflectia na Universidade: onde mais se encontrariam, por exemplo, a Nouvelle Revue Française, Esprit ou Les Temps Modernes? Poderoso agente do intercâmbio entre a França e Portugal foi assim este núcleo de cultura francesa que dava apoio a investigadores e professores do ensino superior e do ensino secundário e que ajudava a despertar para a aventura intelectual e estética os jovens com alguma sensibilidade e capacidade interrogante. Homem de cultura abrangente e bom conhecedor das nossas coisas, o Leitor que recordei era exigente, como, aliás, o sistema escolar enquadrante. Preparar o exame final da disciplina que regia representava um esforço apreciável, já que implicava, para além do domínio das matérias e dos textos estudados nas aulas, o conhecimento de assuntos que não tinham sido leccionados, mas tão-só combinados entre o professor e cada aluno para serem alvo de prova oral: um naipe de assuntos de geografia e história de França, a tradução para francês de um texto de autor português razoavelmente longo (um conto de Eça, por exemplo) e, finalmente, o estudo de três obras literárias francesas seleccionadas pelo candidato – uma obra poética (lembro-me de ter escolhido num ano as Cinq Prières de Péguy), uma obra dramática (lembro-me de ter estudado, por exemplo, Antigone de Anouilh), uma obra narrativa (e foi assim que preparei Le Rouge et le Noir); o aluno devia ser capaz de realizar uma exposição de um quarto de hora a partir de um tema proposto pelo professor sobre qualquer das obras que tivesse eleito. Como se poderá concluir, este sistema que me compraz evocar, tão grande é o contraste que oferece ao que hoje se passa, impunha beneficamente aos estudantes um trabalho pessoal árduo mas compensador, que não só lhes desenvolvia a capacidade de pesquisa, a elaboração do pensamento e do discurso e o domínio do Francês, mas também lhes alargava o âmbito do que aprendiam nas duas disciplinas anuais de Literatura Francesa que o curriculum comportava, uma fundamentalmente consagrada ao século XVI – os poetas da “Pléiade” constituíam o seu núcleo forte –, a segunda centrada nas Luzes e no dealbar do Romantismo, tendo por protagonistas Voltaire e Chateaubriand. A França mais moderna chegava-nos assim através do Curso Prático de Francês, quer pelos assuntos e textos trabalhados sistematizadamente nas aulas, quer pela matéria que preparávamos sozinhos; mas as disciplinas de Literatura, a cargo de professores portugueses que, não sendo especialistas da área francesa, procuravam aproximar os conteúdos programáticos de campos da sua pesquisa e do seu interesse, não deixavam de ser motivadoras e formativas, quer pelos temas que propunham, quer pelas perspectivas comparatistas que frequentemente insinuavam, convocando, por exemplo, paralelismos com a nossa história cultural e literária.
(1 A Jean Girodon se devem trabalhos sobre o ensino do francês e ecos de autores franceses em escritores portugueses, particularmente Eça de Queirós, de quem traduziu O Crime do Padre Amaro (Le Crime du Padre Amaro, Paris, Éditions de la Différence,72 1985). Citem-se entre os seus estudos: “Eça de Queirós, Flaubert et Anatole France”, in Bulletin des Études Portugaises, 20, 1957, pp. 152-207; “O Egypto et Le Nil de Maxime du Camp”, ibid., 22, 1959-1960, pp.129-186; “Fiches queirosiennes”, ibid., 27, 1966, pp. 189-219.)


            A esta introdução, destacando o papel marcante de um professor responsável pela orientação intelectual de alunos fascinados por um país a que tinham acesso não só graças à competência desse mesmo professor, mas também à inteligência da divulgação de livros feita pela Embaixada Francesa de então, desenvolve Ofélia P. M. o tema escolhido, na forma elegante e sagaz que sempre lhe conhecemos, através de estudos seus que nos acompanharam no nosso percurso docente, e que tanto clarificaram as análises literárias de alguns autores, com relevo para Garrett.

          Um estudo precioso sobre Stendhal e o beylismo, e a posição pessoal relativamente à obra, de análise não separada das vivências pessoais do seu autor, justificativas do universo de complexidades psicológicas das personagens stendhalianas, ao contrário do que exigia a Nouvelle Critique ou mesmo o estruturalismo ou o formalismo, refractários a ponderações de maior subjectividade, para além de apontar influências nos escritores que se lhe seguiram e, entre nós, a perspectiva narrativa, do ponto de vista da focalização interna, de que Eça se beneficiou.

          Um trabalho rico de pormenores vários, resultantes do cuidado extremo posto na informação dos detalhes mais inesperados – por exemplo, a referência ao número de alunos frequentadores dos cursos de M. Jean Girodon - a elegância da exposição e da expressão, a clareza argumentativa, a inteligência da descoberta…

          Uma mulher discreta. Superior.

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