A minha mãe de vez em quando
prega-nos sustos em termos de saúde. Como se acha rigorosamente idosa, o número
dos anos gradualmente desvanecendo-se na sua memória, apenas se lembrando agora
de que nasceu em 1907, pensa que o rigor do comando dos destinos humanos não
tardará a exigir-lhe o óbolo final, em linguagem de futilidade pedante, já que
a crise nos faz desviar do euro, em marcha atrás. E o seu pensamento vai-se
libertando do cada vez mais embrulhado presente, envolto em exigência e mimo e,
por vezes, baralhação das ideias, estacionadas com verdadeiro apego nos céus da
sua infância e mocidade, para onde a cada passo se volta em apelos repassados
de ternura.
E nos intervalos dos
esmorecimentos, vai rezando e pedindo por todos, com uma convicção que não
deixará de ser atendida, vistas as qualidades de que não prescindimos para esse
efeito fatal, embora arredado ainda dos nossos objectivos de partida:
Bendita
seja a luz do dia
Bendito
seja quem a cria
Santa ou santo
neste dia
Padre Nosso e Avé Maria.
E vai
cantando, às vezes a tarde inteira, incansavelmente repetindo as mesmas
canções, mas continuando a desenterrar outras, ao acaso das suas lembranças ou
emoções, em que a saudade e a ternura - quando não a gaiatice - são elementos
ponderosos nas variações temáticas retiradas dos ensinamentos dos irmãos, dos
pais ou das amigas dos cantares nos campos ou ao serão à lareira:
Eu venho
de longos tempos
Numa
saudosa alegria,
Venho
cantando, venho rindo
Trago as
saudades em dia.
Ai que
saudade,
Ai que
paixão!
Que eu
inda tenho desses tempos que lá vão!
Ai, meu
amor minha paixão, meu querido bem,
Não basta
a dor de um coração sem ter ninguém
Bendito
Deus que nos criou assim tão querida
Tudo é
possível nas passagens desta vida.
Ó coração
retraído,
Ó cara
cheia de enganos,
Olha a
paga que me deste
De te eu
amar tantos anos.
Um ai,
meu amor, um ai,
Um ai
também alivia.
Em certas
ocasiões,
Se não
desse um ai morria.
Ó minha
guitarra d’oiro
Com perna
toda de prata
Só tu és
o meu tesoiro,
A alma da
serenata.
A seguinte
quadra mergulha na barcarola primitiva, nas “Ondas do mar de Vigo / se
vistes meu amigo ?/ e ai Deus se verrá cedo?”, embora tenha sofrido
evolução em termos de execução amorosa, “o por que eu suspiro”,
convertido, licenciosamente, em “quem no meu leito dormia”:
Já lá vai
pelo mar fora
Quem no
meu leito dormia.
Deus o
leve, Deus o traga,
Para a
minha companhia.
Os versos
seguintes, mau grado a singeleza expressiva, talvez tenham inspirado a
sensibilidade contestatária de Cesário, caso pertençam ao cancioneiro popular
ancestral. (Não me esqueço de que, na adolescência, aprendi com a minha mãe a
melodia do “Noivado do Sepulcro” de Soares de Passos, ensinada por um
dos seus irmãos que estudou no Porto, o que significa que por longo tempo se
manteve, entre o próprio povo, a mórbida canção dos salões de meados do século
XIX):
As ondas
do mar lá fora
De bravas
são amarelas;
E uma mãe
tem um filho
Para
andar por cima delas.
(Cf. Cesário), (as varinas )“Vêm sacudindo as ancas
opulentas!/ Seus troncos varonis recordam-me pilastras; /E
algumas, à cabeça, embalam nas canastras / Os filhos que depois naufragam nas
tormentas.” (“O Sentimento dum Ocidental, I”)
O tema do
amor de mãe também mergulha fundo, na cumplicidade entre mãe e filha dos
cancioneiros primitivos, mas creio que a minha mãe deseja deixar-nos uma mensagem
do seu amor, do seu terror de nos perder, porque se sente bem, e por isso
canta, embora por vezes pareça querer desistir, na sua recusa de comer, ou na
constatação admirada da sua muita idade que exige obediência às leis da vida…
Nome de
mãe é bonito,
Nome que
a gente estremece.
Por muito
que eu me agite,
Sua alma
não me esquece.
Quem
tiver mãe que o adore,
Porque
mãe uma só há,
Se a
perder, por mais que chore,
Nunca
mais a terá.
São recados
de sentimento para nós. É por isso que a não queremos perder, presença indelével
do nosso espanto permanente, da nossa zanga ocasional, do nosso cansaço
frequente, do nosso amor protector. Indestrutível.
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