Não, a
“engrenagem” que a minha mãe há dias aplicou, nas suas saídas de emergência, de
uma prontidão de raciocínio que me põem boquiaberta, nada tem a ver com a que
utilizamos, a minha amiga e eu, para condenar aquilo a que muitas outras vezes
apelidamos de rede, graças aos muitos nós da sua coesão de intimidade, outras
vezes teia, ambas úteis para pesca ou para caça, com maior ou menor viscosidade
ou lubrificação. Ou as engrenagens sociais de uniões e separações entre os
sexos ou do mesmo sexo, os sentimentos na sua base, a corrupção como directriz,
ou a pura libertinagem… E outras muitas formas de engrenagens ao acaso dos
noticiários.
Também não tem a ver com a de Sartre, de “mãos sujas” que
entram em manigâncias de governação cuja engrenagem, com revoluções como pano
de fundo, ou com motivos económicos de dependência estrangeira – no caso de “L’Engrenage”,
a exploração petrolífera estrangeira num qualquer país da América latina,
impedindo a nacionalização dos poços de petróleo, qualquer que seja o
governante que obteve o seu posto graças a promessas de libertação que se
revelarão falaciosas e conduzirão o novo chefe pelos caminhos do anterior, com
as mesmas consequências de fuzilamento, do anterior…
O
que a minha mãe me disse num dos meus responsos de irritação provocados por um
mimo seu que excede toda a paciência, creio mesmo que das mais angélicas - o
que não é decididamente o meu caso – foi taxativamente “Olha que isto é uma
engrenagem que não parte um dente.”
Uma
frase empolgante, que admirei nobremente, preparando-me para assumir as
consequências futuras da minha zanga presente. Rainha airosa e recalcitrante, a
minha mãe conhece do mundo e da vida, nos seus aspectos de rodagem temporal
que, ao que lhe parece, não perdoa desmandos. “Quem as faz, paga-as”, diria
eu sem preconceito artístico. A minha mãe escolheu a engrenagem para metáfora,
de roda dentada para melhor actuação.
Não quero
ficar atrás de tanta elegância literária. Cito, assim, o “Lasciate
ogni speranza, voi ch’entrate” da minha contrição.
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