quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Está seco


- Acha que teremos tranche? – pergunto eu, na inquietação que me aniquila a alma, sempre que as figuras sinistras dos troikos de maleta se desenham no nosso horizonte nacional.

Mas a minha amiga é muito prática nas questões da alma e das tranches e despachou-me deste modo:

- Isso temos, não se vive de outra maneira. Então, se eles não dessem mais dinheiro, Portugal vivia de quê? Da agricultura? Ou do mar?

Torci-me toda, no sentimento de humilhação em que a nulidade das nossas perspectivas nos coloca, apesar do amparo momentâneo das promessas propaladas a espaços, relativas à existência de petróleo ou ouro, que logo esmorecem e tombam, apenas surgem na imprensa, vindas não se sabe de que ponto da rosa-dos-ventos. A minha amiga diz que essas atoardas estão na mesma linha de pensamento que veicula os dados optimistas sobre as exportações e que são imediatamente desmentidos ou minimizados às vezes pelos do próprio governo que as propalou umas horas antes.

A propósito, lembrei os comentários do ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, que ouvi ontem sobre as visitas trimestrais da Troika para conferir os nossos gastos, condenando tais visitas significativas de perda da nossa soberania, o que me caiu muito mal no pensamento - para não dizer no goto, que é menos fino, para não dizer subtil - não só porque vi nesses dizeres quanto ele se estava a desligar da política de honestidade, pelo cumprimento dos compromissos, do seu Primeiro Ministro, provavelmente já na perspectiva do salto para qualquer outro cargo da oposição quando a oposição for governo, mas também porque discordei radicalmente da teoria, achando que, muito pelo contrário, todos os emprestadores anteriores e presentes da CEE, U.E. etc., nunca nos deveriam ter entregado as suas tranches sem cá virem verificar periodicamente como estavam a ser aplicadas. Não teríamos chegado certamente a este estado de desertificação económica, e de proliferação corruptiva.

Mas a minha amiga achou que não valia a pena lamentarmo-nos sobre o leite derramado e mergulhou nos seus referentes de fresca data – os cem jovens de Lisboa e do Porto que foram enganados pelo vigarista que lhes prometeu trabalho na Holanda a troco de 25 euros e faltou ao compromisso, (mas eu condenei os rapazes que já deviam saber pelos filmes - nossos, reais, e estrangeiros, ficcionais - que nunca se deve crer nos angariadores de trabalhadores),  os homens que apanharam berbigão e tiveram que o despejar no mar porque é proibido apanhar berbigão…

- Já viu aquilo que eles sofrem? Primeiro, para apanhar berbigão e depois para não serem apanhados. Agora porque é proibido, não percebo bem. Se a gente tem mar e berbigões, porque não deixar viver quem vive disso? O país está seco.

Foi então que eu comparei este caso com o do sr. João da Esquina, que não queria tomar o arsénico recomendado  pelo Doutor Daniel, o apaixonado final da Margarida, mas, antes, da Clara e agora, da menina Francisquinha, por conveniência da mãe desta, a srª Teresa, que, insinuantemente,  insistia com o marido para ele o tomar, o que o levava ao rubro na sua cólera, ao ouvi-la dizer: "Toma arsénico, menino, toma. E porque não hás-de tomar arsénico?"

Um país seco, tal como o sr. João da Esquina, desconfiado contra Daniel por motivos que não vêm ao caso, repelindo o arsénico da receita e respondendo com violência à exortação da esposa. Um país que não quer tomar arsénico para viver e deixar viver - do mar, da terra, do ar…
 

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