A
Paula passou cá por casa, de passagem para a manif. Iria buscar a Binha para
virem apanhar o comboio em S. Pedro. Lembrei a única manif. da minha vida, em
que fui com a minha colega Alice, de ideais políticos opostos mas de idêntico
equilíbrio e humor nos conceitos existenciais, apanhar o comboio em S. Pedro, para
o Ministério da Educação, numa expressão do nosso repúdio pelas políticas
educativas, mas desandámos antes em direcção à Baixa,acabando na pastelaria
Central a comer marinos, uns bolinhos fofos da Central que o meu amigo Dr. Juiz
Brites Ribas me levara a conhecer, anos antes, nas longas passeatas que demos
na Lisboa dos seus velhos amores, tendo-nos conhecido numa bicha em volta da
Fil, naquele ano de 75, onde íamos receber o vencimento moçambicano da altura, e
onde trocáramos evocações, ficando ele agradado por ter encontrado em mim a
faceciosa Regina de Sousa da Página da Mulher do Jornal Notícias de Lourenço
Marques.
Também
a minha filha e colegas, embora inicialmente aliadas ao grupo recalcitrante, acabariam
no Corte Inglês a admirar as montras, deixando aos novos o trabalho da
reclamação que o ideal democrático estabeleceu por cá e de que todos colhemos o
usufruto, com os aumentos que tivemos nos nossos vencimentos, que os
governantes ordenavam para nos calar as bocas ambiciosas, encobrindo os seus
próprios jogos económicos, à custa de empréstimos sucessivos que a banca
europeia fornecia e de que agora exige o pagamento que, naturalmente, não nos
convém fazer, habituados que estamos à sedução de uma falsa abastança de que
somos obrigados a prescindir.
E
a Paula foi armada de uma rede de caçar borboletas, aonde juntou os textos e
frases da sua reclamação. Estivera com o Ricardo, que escolhera a praia do seu
comodismo, mas que em vinte minutos compusera um texto de protesto para a rede
da irmã, que intitulara os seus textos de “O VAZIO”. Eis os textos, na sua sequência
temporal:
“Muito maior açougue é o
de cá, muito mais se comem os brancos.”
(Padre António Vieira, séc. XVII, “Sermão
de Santo António aos Peixes”, cap. IV)
“Se me lembro,
Élia, tiveste
De belos
dentes a posse:
Numa tosse
dois se foram,
Foram-se dois
noutra tosse.
Segura, noites
e dias,
Podes tossir a
fartar;
Podes, que
tosse terceira
Já não tem que
te levar. “
Bocage (séc. XVIII)
“A única ocupação mesmo
dos ministérios era esta - «cobrar o imposto» e «fazer o empréstimo». E assim
havia de continuar…
(…) desse modo o país ia
alegremente e lindamente para a bancarrota.
- Num galopezinho muito
seguro e muito a direito… Ah, sobre isso ninguém tem ilusões… Nem os próprios
ministros da fazenda! A bancarrota é inevitável; é como quem faz uma soma…”
(Eça, séc. XIX, “Os Maias, cap. VI)
“Eles comem tudo e não
deixam nada…”
(Zeca, séc. XX)
“A morte saiu à rua num dia assim …só olho por
olho e dente por dente vale… dente por dente assim, que um dia rirá melhor quem
rirá por fim…”
(Zeca, séc. XX)
“E enquanto eles andam para
trás e para a frente, para a esquerda e para a direita, nós não passamos do
mesmo sítio.”
(Manuel, in Felizmente há
Luar, de Luís de Sttau Monteiro, séc XX)
“Era uma vez um rei que fez promessa…
Era uma vez uma gente que construiu…
Era uma vez…”
(José Saramago, Memorial do convento, séc. XX)
Por um franguinho sem
penas
Tive muito que penar.
Arranquei-as uma a uma
Vejam onde fui parar!
Veio o tipo da finança,
Queria o meu lucro cobrar,
Não se pode encher a pança
Sem outros alimentar.
A seguir veio o primeiro,
Que se diz ser rato velho.
As penas colou por
inteiro,
Tornou-se o frango em
coelho.
Proibiu-me que o
trincasse,
Como se de sacro bicho se
tratasse.
Roubei uma perna, fugi,
E vim comê-la p’r'aqui.
Ricardo Lacerda (em dia de
Manif, século XXI)
Quanto
ao meu filho João, foi com um amigo no cortejo das reclamações, com a compostura
do seu descontentamento.
Pobres
destes nossos filhos e pobres dos filhos deles!
Estamos no século XXI, mas
não independentes, como o fomos, aparentemente, por bula papal a partir de 1143,
com um interregno de sessenta anos pelo meio, que homens patriotas desfizeram.
Vivemos hoje e viveremos na dependura , vae victis!, condenados às marchas dos
nossos contentamentos e também dos nossos descontentamentos. As marchas dão
vazão às nossas alegrias e às nossas raivas. Os caminhos dos media fazem o
resto. Mais na sombra, sensíveis unicamente ao eu e ao tu, insensíveis à
palavra pátria e à ordem para a respeitar, em qualquer nação que se preze. Vae
victis!
Um comentário:
As borboletas unidas, compradas no chinês e tão multicoloridas, jamais serão vencidas.
Paula
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