Foi o
cronista Froissart (XIV-XV) que contou do cerco vitorioso a Calais, pelo rei da
Inglaterra Eduardo III, durante a guerra dos Cem Anos, e da imposição daquele
ao governador de Calais, Jean de Vianes, de lhe serem levadas as chaves da
cidade pelos seis mais ricos burgueses de Calais – em camisa e de corda ao
pescoço - deixando prever a condenação destes à morte. Perdoados por súplica da
rainha, compatriota e amiga de Froissart, Filipa de Hainaut, a seu esposo,
Eduardo III, Rodin os imortalizaria, quatro séculos mais tarde em monumento da
admiração universal.
Eis alguns
passos do episódio “Os seis burgueses de Calais” das “Crónicas” de
Froissart:
«Então
sire Jean de Vianes abandonou as ameias, chegou à praça do mercado e mandou
tocar os sinos para aí reunir as pessoas de todas as condições sociais. Ao som
do sino, vieram todos, homens e mulheres, porque desejavam vivamente saber as
notícias, como pessoas afectadas pela fome e com as forças esgotadas. Quando estavam
todos reunidos na praça, sire Jean de Vianes comunicou-lhes, o menos
brutalmente possível, as condições, nos próprios termos em que tinham sido
expressas, e disse-lhes que era a única saída, e que deliberassem para darem
pronta resposta sobre isso. Quando ouviram este relato, puseram-se todos a
gritar e a chorar, tão forte e amargamente, que não haveria coração no mundo
que se não apiedasse. E o próprio sire João de Vianes chorava com igual aflição.
«Um
momento depois, o mais rico burguês da cidade, sire Eustache de Saint-Pierre,
ergueu-se e falou assim diante de todos: “Senhores, seria grande pena e
desgraça deixar perecer uma tão numerosa população, à fome ou doutra forma,
quando se pode encontrar remédio contra isso. E, pelo contrário, seria grande
caridade e mérito diante de Nosso Senhor, se se pudesse preservá-la de uma tal
calamidade. Pela minha parte, tenho tanta esperança de obter graça e perdão
junto de Nosso Senhor, se eu morrer para salvar esta população, que sou o
primeiro a oferecer-me. E entregar-me-ei de bom grado, vestido apenas com a
minha camisa, sem chapéu, descalço e com a corda ao pescoço, à mercê do nobre
rei de Inglaterra.” Quando sire Eustache de Saint-Pierre pronunciou estas
palavras, todos o rodearam com uma veneração enternecida, e vários homens e
mulheres se lhe lançaram aos pés, chorando amargas lágrimas; era uma tristeza
presenciar a cena, ouvi-los e vê-los.
«Em
segundo lugar, um outro muito honrado burguês, ilustre personagem, que tinha
duas belas moças por filhas, ergueu-se e falou de igual forma, dizendo que
acompanharia o seu compadre Eustache de Saint-Pierre; chamava-se sire Jean d’Aire.
Depois dele ergueu-se o terceiro, sire Jacques de Wissant, personagem rica em
móveis e domínios, dizendo que acompanharia os seus dois primos. Assim fizeram
Pierre de Wissant seu irmão, depois o quinto e o sexto. E estes seis burgueses
ali se despiram, na praça de Calais, não conservando senão o calção e a camisa,
e puseram a corda ao pescoço, segundo as condições impunham; depois tomaram as
chaves da cidade de Calais e do castelo; cada um dos seis levava um punhado.
«Quando estavam
assim prontos, sire Jean de Vianes, montado numa pequena hacaneia, porque mal
podia deslocar-se a pé, pôs-se à cabeça do grupo e dirigiu-se aos portões. Vendo
os homens e as suas mulheres e os seus filhos a chorar, e a torcer as mãos e a
soltar gritos de angústia, não houve coração que não se apiedasse. Avançaram assim
até à porta, escoltados por lamentos, gritos e lágrimas…
«…………………….
«A isto -
(pedido do perdão do
rei Carlos para os burgueses de Calais feito por sire Gautier de Mauni) – o rei
encheu-se de cólera e disse: “Sire Gautier, não insistais; não será de forma
diferente: mandem chamar o carrasco. O povo de Calais fez morrer tantos dos
meus homens que é justo que estes morram.
«Então a
rainha de Inglaterra interveio com muita humildade; e chorava com tanta dor que
ninguém podia ficar insensível. Lançou-se de joelhos diante do rei seu senhor e
disse: “Ah! Nobre senhor, desde que fiz a travessia, com grande perigo,
sabei-lo, não vos pedi nenhum favor. Mas agora peço-vos humildemente, como
favor pessoal, pelo amor do Filho de Santa Maria e pelo amor de mim, que
tenhais piedade destes homens.”
«O rei
esperou um instante antes de falar e olhou para a dama, sua esposa, que, sempre
de joelhos, chorava lágrimas escaldantes. O seu coração comoveu-se, porque lhe
custaria desgostá-la. Disse então: “Ah! Senhora, preferia que estivésseis
noutro lugar. Rogais-me com tanta emoção, que não ouso recusar-vos, e embora
muito me custe, tomai, entrego-vo-los: fazei deles o que quiserdes.” A boa dama
disse: “Monsenhor, um grande obrigada”.
«Então a
rainha ergueu-se, fez erguer os seis burgueses, mandou retirar-lhes a corda do pescoço
e levou-os para os seus aposentos; mandou dar-lhes fatos e serviu-lhes lauto
jantar; seguidamente deu-lhes seis moedas de ouro a cada um e mandou-os retirar
sãos e salvos.»
Talvez uma
história mal contada, tal como a do milagre de Ourique ou o das rosas, mas que
denuncia o amor de gente zelosa e independente pelo seu cantinho pátrio que
assim, inventando - ou imitando factos por outros já descritos – ajudou a construir.
Olhando lá
de trás, desses defensores de antanho, para os defensores de agora que lutam,
não como o nobre Afonso em Guimarães com as suas armas e a sua coragem contra o
primo que ele considerava estrangeiro, mas com palavras de muita ênfase e ressabiamento
contra os seus próprios irmãos que dirigem, melhor ou pior, os destinos da
nação, sentimos quão desviados estão hoje os povos dos impulsos de amor e
defesa pátrios, mais interessados em se esgadanharem com ódio e vileza, todos
esquecidos das nobres palavras de Jesus contra os autoconsiderados impolutos que
poderão atirar pedras contra os impuros.
Mas
verificamos também que o poder dominador que se impõe hoje, perante quem são
necessárias cordas ao pescoço resgatadoras, nada tem já a ver com as imposições
de cercos vimaranenses castigadores ou de crueldades de reis britânicos
vitoriosos, a ricos burgueses a liquidar. Porque esse de hoje é mais cruel
ainda e de mais alto gabarito. Resulta de todo um convénio económico de
generosidade prévia aparente de povos mais ricos, mais ambiciosos e mais
trabalhadores, que astutamente fez escorregar os povos mais tolos e ingénuos para
o poço da dívida financeira, não só com o baraço ao pescoço mas com o azorrague
do flagelo a despedaçá-los.
Destruídos
e ajudados na sua destruição por todos os coveiros nacionais, quais sejam
igualmente os sem brio profissional como aqueles que, em tradução do filme “A
Bíblia”, passado na SIC, deixam passar mimos desta natureza: -“Se os
romanos intervirem, imaginas o massacre?”, “Tirem essas
mãos de cima de mim, ou mando cortar-vas”, não há toque a
rebate que nos valha, não há burgueses ou vassalos que precisem de se oferecer
para um resgate a sério. Todos, burgueses ou não, vassalos ou não,
profissionais de brio ou sem ele, somos forçados a colaborar no resgate, porque
todos chafurdámos antes na falsa generosidade exterior e chafurdamos ainda na
ignomínia de uma língua que aceitámos destruir, não só por ignorância e
servilismo próprios, propiciadores de um Acordo Ortográfico despudorado, mas por
incompetência de profissionais que aceitámos, nos malabarismos da nossa
desatenção pela competência.
Não,
nenhuma rainha sensível, nenhum rei magnânimo nos valerão no enforcamento,
bastardos que somos, na torpeza dos nossos dislates.
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