sexta-feira, 5 de abril de 2013

Camisa e baraço


Foi o cronista Froissart (XIV-XV) que contou do cerco vitorioso a Calais, pelo rei da Inglaterra Eduardo III, durante a guerra dos Cem Anos, e da imposição daquele ao governador de Calais, Jean de Vianes, de lhe serem levadas as chaves da cidade pelos seis mais ricos burgueses de Calais – em camisa e de corda ao pescoço - deixando prever a condenação destes à morte. Perdoados por súplica da rainha, compatriota e amiga de Froissart, Filipa de Hainaut, a seu esposo, Eduardo III, Rodin os imortalizaria, quatro séculos mais tarde em monumento da admiração universal.

Eis alguns passos do episódio “Os seis burgueses de Calais” das “Crónicas” de Froissart:

            «Então sire Jean de Vianes abandonou as ameias, chegou à praça do mercado e mandou tocar os sinos para aí reunir as pessoas de todas as condições sociais. Ao som do sino, vieram todos, homens e mulheres, porque desejavam vivamente saber as notícias, como pessoas afectadas pela fome e com as forças esgotadas. Quando estavam todos reunidos na praça, sire Jean de Vianes comunicou-lhes, o menos brutalmente possível, as condições, nos próprios termos em que tinham sido expressas, e disse-lhes que era a única saída, e que deliberassem para darem pronta resposta sobre isso. Quando ouviram este relato, puseram-se todos a gritar e a chorar, tão forte e amargamente, que não haveria coração no mundo que se não apiedasse. E o próprio sire João de Vianes chorava com igual aflição.
            «Um momento depois, o mais rico burguês da cidade, sire Eustache de Saint-Pierre, ergueu-se e falou assim diante de todos: “Senhores, seria grande pena e desgraça deixar perecer uma tão numerosa população, à fome ou doutra forma, quando se pode encontrar remédio contra isso. E, pelo contrário, seria grande caridade e mérito diante de Nosso Senhor, se se pudesse preservá-la de uma tal calamidade. Pela minha parte, tenho tanta esperança de obter graça e perdão junto de Nosso Senhor, se eu morrer para salvar esta população, que sou o primeiro a oferecer-me. E entregar-me-ei de bom grado, vestido apenas com a minha camisa, sem chapéu, descalço e com a corda ao pescoço, à mercê do nobre rei de Inglaterra.” Quando sire Eustache de Saint-Pierre pronunciou estas palavras, todos o rodearam com uma veneração enternecida, e vários homens e mulheres se lhe lançaram aos pés, chorando amargas lágrimas; era uma tristeza presenciar a cena, ouvi-los e vê-los.
«Em segundo lugar, um outro muito honrado burguês, ilustre personagem, que tinha duas belas moças por filhas, ergueu-se e falou de igual forma, dizendo que acompanharia o seu compadre Eustache de Saint-Pierre; chamava-se sire Jean d’Aire. Depois dele ergueu-se o terceiro, sire Jacques de Wissant, personagem rica em móveis e domínios, dizendo que acompanharia os seus dois primos. Assim fizeram Pierre de Wissant seu irmão, depois o quinto e o sexto. E estes seis burgueses ali se despiram, na praça de Calais, não conservando senão o calção e a camisa, e puseram a corda ao pescoço, segundo as condições impunham; depois tomaram as chaves da cidade de Calais e do castelo; cada um dos seis levava um punhado.
«Quando estavam assim prontos, sire Jean de Vianes, montado numa pequena hacaneia, porque mal podia deslocar-se a pé, pôs-se à cabeça do grupo e dirigiu-se aos portões. Vendo os homens e as suas mulheres e os seus filhos a chorar, e a torcer as mãos e a soltar gritos de angústia, não houve coração que não se apiedasse. Avançaram assim até à porta, escoltados por lamentos, gritos e lágrimas…
«…………………….

«A isto - (pedido do perdão do rei Carlos para os burgueses de Calais feito por sire Gautier de Mauni) – o rei encheu-se de cólera e disse: “Sire Gautier, não insistais; não será de forma diferente: mandem chamar o carrasco. O povo de Calais fez morrer tantos dos meus homens que é justo que estes morram.
«Então a rainha de Inglaterra interveio com muita humildade; e chorava com tanta dor que ninguém podia ficar insensível. Lançou-se de joelhos diante do rei seu senhor e disse: “Ah! Nobre senhor, desde que fiz a travessia, com grande perigo, sabei-lo, não vos pedi nenhum favor. Mas agora peço-vos humildemente, como favor pessoal, pelo amor do Filho de Santa Maria e pelo amor de mim, que tenhais piedade destes homens.”
«O rei esperou um instante antes de falar e olhou para a dama, sua esposa, que, sempre de joelhos, chorava lágrimas escaldantes. O seu coração comoveu-se, porque lhe custaria desgostá-la. Disse então: “Ah! Senhora, preferia que estivésseis noutro lugar. Rogais-me com tanta emoção, que não ouso recusar-vos, e embora muito me custe, tomai, entrego-vo-los: fazei deles o que quiserdes.” A boa dama disse: “Monsenhor, um grande obrigada”.
«Então a rainha ergueu-se, fez erguer os seis burgueses, mandou retirar-lhes a corda do pescoço e levou-os para os seus aposentos; mandou dar-lhes fatos e serviu-lhes lauto jantar; seguidamente deu-lhes seis moedas de ouro a cada um e mandou-os retirar sãos e salvos.»

  Gestos desses, de nobreza e de coragem, também já tivemos, na nossa história ou na nossa lenda. Foi no tempo em que se preparava a concretização das aspirações a uma nação independente. Egas Moniz teria levado, dois séculos antes dos burgueses de Calais, a família, com os mesmos aprestos de vestimenta e corda ao pescoço que aqueles, para resgatar, junto de Afonso VII de Leão, a promessa de vassalagem feita por ele em nome de Afonso Henriques, aquando do cerco de Guimarães. Gesto de nobreza devidamente apreciado pelo rei leonês, que lhe perdoou e o mandou em paz.
Talvez uma história mal contada, tal como a do milagre de Ourique ou o das rosas, mas que denuncia o amor de gente zelosa e independente pelo seu cantinho pátrio que assim, inventando - ou imitando factos por outros já descritos – ajudou a construir.
Olhando lá de trás, desses defensores de antanho, para os defensores de agora que lutam, não como o nobre Afonso em Guimarães com as suas armas e a sua coragem contra o primo que ele considerava estrangeiro, mas com palavras de muita ênfase e ressabiamento contra os seus próprios irmãos que dirigem, melhor ou pior, os destinos da nação, sentimos quão desviados estão hoje os povos dos impulsos de amor e defesa pátrios, mais interessados em se esgadanharem com ódio e vileza, todos esquecidos das nobres palavras de Jesus contra os autoconsiderados impolutos que poderão atirar pedras contra os impuros.
Mas verificamos também que o poder dominador que se impõe hoje, perante quem são necessárias cordas ao pescoço resgatadoras, nada tem já a ver com as imposições de cercos vimaranenses castigadores ou de crueldades de reis britânicos vitoriosos, a ricos burgueses a liquidar. Porque esse de hoje é mais cruel ainda e de mais alto gabarito. Resulta de todo um convénio económico de generosidade prévia aparente de povos mais ricos, mais ambiciosos e mais trabalhadores, que astutamente fez escorregar os povos mais tolos e ingénuos para o poço da dívida financeira, não só com o baraço ao pescoço mas com o azorrague do flagelo a despedaçá-los.
Destruídos e ajudados na sua destruição por todos os coveiros nacionais, quais sejam igualmente os sem brio profissional como aqueles que, em tradução do filme “A Bíblia”, passado na SIC, deixam passar mimos desta natureza: -“Se os romanos intervirem, imaginas o massacre?”, “Tirem essas mãos de cima de mim, ou mando cortar-vas, não há toque a rebate que nos valha, não há burgueses ou vassalos que precisem de se oferecer para um resgate a sério. Todos, burgueses ou não, vassalos ou não, profissionais de brio ou sem ele, somos forçados a colaborar no resgate, porque todos chafurdámos antes na falsa generosidade exterior e chafurdamos ainda na ignomínia de uma língua que aceitámos destruir, não só por ignorância e servilismo próprios, propiciadores de um Acordo Ortográfico despudorado, mas por incompetência de profissionais que aceitámos, nos malabarismos da nossa desatenção pela competência.
Não, nenhuma rainha sensível, nenhum rei magnânimo nos valerão no enforcamento, bastardos que somos, na torpeza dos nossos dislates.

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