Não resisto
à tentação de incluir no meu blog os três textos de António da Cunha Duarte
Justo, publicados no blog “A bem da Nação” sobre os quais fiz um sintético
comentário que mal traduz o prazer da sua leitura e o reconhecimento pela
clareza, isenção e seriedade do seu autor:
“Verdadeiros textos de antologia
histórico-literária, como imagem de um país abocanhado pelas hienas que
continuam rindo sem pejo, enquanto lambem os beiços fartos, do sangue da pátria
que destruíram ao som da farândola e dos gritos esfuziantes do povo que
credulamente caiu na esparrela das suas manobras interesseiras, e continua
inocentemente a cair, pois que é feita de slogans, gritos e musiquinhas a sua
"democracia" da liberdade sem educação. Um bravo à lucidez da análise
e à coragem do arrojo, que infelizmente não colherá grandes louros nem fará
escola.”
25 DE
ABRIL – O DESPERTAR DUMA ILUSÃO - 1
Geração 68 – Revolução
Política e Religiosa
A revolução começa no
espírito para só depois ganhar expressão política. Já antes do 25 de Abril
andávamos todos à procura de bilhetes para a liberdade.
Em 1959, João XXIII
responde à ânsia do mundo por inovação e emancipação convidando todo o mundo ao
“aggiornamento”, à mudança (1). Dos USA surgiam rajadas de ventos anunciadores
da ânsia de emancipação expressa na música Pop, Rock, Blues, Rolling Stones,
Beatles, etc. no movimento hippie e no desejo de emancipação sexual.
O mapa do tempo e dos
sentimentos públicos era determinado pela baixa pressão soviética e pela alta
pressão americana.
Na altura o mundo
encontrava-se todo em ebulição. Sob o cenário da “guerra-fria”, proliferavam os
cenários das fronteiras ideológicas. As palavras de ordem da altura eram:
“Proibido proibir”, “abaixo o Estado”, “seja realista, peça o impossível”, “não
confie em ninguém com mais de 30 anos”.
Este clima, além de
fomentar ânsias e aspirações, favorecia a constituição de redes
revolucionárias desde Moscovo, Cuba, Ásia, América latina, Argélia até ao MPLA
(Movimento Popular de Libertação de Angola), à Frelimo (Frente de Libertação de
Moçambique) e ao Movimento dos Capitães, depois MFA (Movimento da Forças
Armadas portuguesas).
O movimento
revolucionário servia-se também da arte para conseguir atingir a juventude e a
burguesia pós-guerra. Fermentavam a massa social de então como os WikiLeaks, os
Piratas, o Facebook, mainstream, a Internet e a ofensiva cultural árabe no
Ocidente fermentam a de hoje.
Manifestava-se a reacção
a uma hierarquia repressiva adversa a um novo sentimento de vida. Era o
espírito proletário contrariador do estilo burguês a afirmar-se; os filhos da
segunda grande guerra formam então uma geração contestatária, a geração 68.
Na sua fuga à culpa e aos
ressentimentos provocados pela segunda guerra mundial, a nova geração
manifesta-se extremamente sensível à paz, à liberdade e a tudo o que lhe é
próprio; inicia uma verdadeira revolução de emancipação que envolve todas as
camadas sociais e se manifesta no desenvolvimento tecnológico, na revolução
sexual, pílula, droga, etc. Arrumam também com Deus pois não querem reconhecer
pai nem mãe.
Neste ambiente o mundo
fervia, subindo ao céu, por todo o lado, um grito fumarento de libertação
contra a intolerância dos outros. O Maio quente de 68 em Paris torna-se
o símbolo duma autêntica revolução cultural em marcha (apesar disso, nesse
ano foi assassinado Martim Luther King e falhou também a revolução checa a
favor dum socialismo humano).
Movimentos jovens de
contestação política vão surgindo por todo o lado, enquanto, paralelamente, os
activistas iniciavam uma corrida às instituições instalando-se nelas. A
ideologização do movimento levou também à criação de movimentos subversivos que
viam em Guevara (assassinado em 1967) o símbolo da resistência.
O movimento dos Capitães
de Abril catalisa nele as forças revolucionárias de esquerda, então bem
organizadas por todo o mundo, e também o desejo emancipatório febril da
juventude num tempo de mudança. A nível político, os
espertos da ocasião viam no movimento das forças armadas portuguesas o melhor
instrumento para transpor para a Europa (Portugal) a realidade cubana. Na
altura, a nossa geração queria mudar o mundo, seguindo ingenuamente os “sinais
dos tempos „ propagados e apostando no “efeito borboleta” das pequenas
iniciativas. Nesta atmosfera é de compreender os erros cometidos pelos homens
de Abril na esperança dum lugar ao Sol e o envolvimento do povo desejoso duma
sociedade mais livre e justa.
(continua)
(1) O Concílio Vaticano II foi anunciado pelo
Papa João XXIII a 25.01.1959, iniciado em 1962 e concluído em 1965. Com este
encontro global queria-se renovar as estruturas incrustadas e fazer-se um
aggiornamento de ideias e práticas em todo o mundo. Por todo o mundo se
organizaram iniciativas de mudança que as igrejas nacionais através dos padres
conciliares levariam a Roma. O movimento de 68 foi uma versão de estilo secular
a uma revolução que o Concílio iniciara antes no sentido espiritual da
renovação do Homem todo, no sentido de metanoia de corações e instituições, no
sentido de o “Homem” se tornar Homem.
Ventos frescos nos
Corações e nas Instituições
(Um testemunho pessoal)
Na altura (66-71)
encontrava-me no Seminário de Manique do Estoril onde, Hippies, Beatles,
Concílio Vaticano II e personalidades pacíficas faziam florir, também nos seus
pátios, as melhores rosas e os melhores cravos de esperanças virgens de
liberdade e irmandade com todo o mundo. Era o tempo da teologia da libertação,
das comunidades de vida, de novas ideias e iniciativas, a era duma nova
educação, a germinar por todo o lado. Era um tempo jovem!
Lembro-me de, então,
organizar no seminário de Manique do Estoril cursos de alfabetização para
pessoas adultas da região e, nesses cursos, seguir devotamente o método de
Paulo Freire. No ar havia uma simpatia pela revolução cultural de Mao Tsé-Tung
e por tudo que cheirasse a inovação (Não se imaginava que ele seria um dos
maiores ditadores e aniquiladores de povo). Fiquei com a ideia de que Portugal
não era tão hermético como se cria, quando em 1969 mandei vir da China “O Livro
Vermelho” de Mao, tendo tido a precaução de, ao encomendá-lo, escrever apenas
como remetente: Justo, Instituto, Manique do Estoril. Cerca de um ano depois
recebi da China vários exemplares com o meu nome e o endereço completos. Então,
fiquei estupefacto com o caso.
O processo revolucionário
da geração 68 pensava-o então, numa perspectiva conciliar de religioso, como a
continuação genuína da grande revolução iniciada por Cristo (JC) com a
diferença que o JC não pretendia como o nazismo, o socialismo, o
turbo-capitalismo e o maometanismo impor uma forma de vida à humanidade. O que
observava lá fora via-o como consequência do espírito revolucionário pelo bem e
pelo bem-comum que se encontrava dentro dos muros do seminário. Este espírito,
aliado a um espírito de amor e justiça, impregnava a nossa contestação interna
que se expressava em iniciativas teatrais como o “Bom Humor”, o “Festival da
Canção” e os “Telejornais”. Na altura rebelavamo-nos contra hábitos e
autoridades eclesiásticas legalistas e contra hábitos como a vestidura da
batina em iniciativas e teatros engendrados pelo nosso “Grupo do Bom Humor”. O
grupo actuava em festas da comunidade e noutras ocasiões com teatros, festivais
da canção, telejornais em que a vida do seminário, acontecimentos, atitudes,
superiores e personalidades eram passados a pente fino pela crítica humoral.
A título de exemplo: numa
festa pública de vestidura da batina, em Manique do Estoril, onde estavam
presentes, também, os familiares dos seminaristas que iam receber a batina, o
“Grupo do Bom Humor” actuou e na peça teatral ridicularizou tal acto, o que
provocou o desconsolo e a reacção da ordem estabelecida. Esta tinha confiado no
“bom senso” do “Bom Humor” para abrilhantar a festa. Depois do espectáculo, o
director do Instituto chamou a contas o Padre Conselheiro, que era o ponto de
ligação institucional com o “Grupo do Bom Humor”. O sacerdote lá se desenfiou
como pôde perante o Reitor e tomou a iniciativa de chamar o grupo a contas.
Interessado em descobrir quem era o responsável do grupo e para poder estatuir
um castigo exemplar, chamou a si, um a um, cada membro do grupo.
Mas, como no grupo eram
todos por um e um por todos, cada qual declarou ser o responsável do grupo.
Deste modo foi conseguido, com humor e responsabilidade, estoirar com um
princípio de toda a autoridade institucional que é: castigar um por todo o
rebanho, para que o medo açaime a manada. Assim, o superior não pôde
castigar nem o grupo nem ninguém. A solidariedade dum grupo arrasa
montanhas. Uma instituição que conseguira acordar o sentido da rebeldia bem
canalizada e mantida dentro duma ordem conformista, sente-se agora impotente
perante o espírito da responsabilidade que ela mesma propagava. O espírito de
liberdade e de respeito pela pessoa, transmitido à imagem da pessoa do
protótipo JC era o mesmo que questionava as incrustações de regras, autoridades
e instituições. A liberdade da experiência do JC dava-nos força e legitimidade
para toda a contestação. Era uma contestação vinda de dentro, não de fora.
Perante o JC encontrávamo-nos, superiores e subordinados, na mesma plataforma
do Seu seguimento. Este espírito, ajudado pelos novos ares, dava-nos força
para quebrar com as correntes do hábito e de obediências cegas a que grande
parte dos superiores se encostava regaladamente.
Os mesmos ventos da
mudança eram comuns dentro e fora dos muros, embora com diferentes motivos e
objectivos. Pessoalmente, mais tarde saltei o muro e na procura de mais
liberdade e menos teias de aranha ingressei em partidos diferentes de Portugal
e da Alemanha. Uma coisa constatei, o espírito de rebanho e de manada é
muitíssimo maior nas instituições seculares do que nas religiosas. Dentro dos
muros dos conventos há mais liberdade que fora deles, porque nos conventos,
apesar de tudo a pessoa é rei. Quem liberta o espírito e vive dele não conhece
o medo da autoridade nem o cálculo da oportunidade!
(continua)
DE
ABRIL – O DESPERTAR DUMA ILUSÃO – 3
Veio depois a enxurrada
da “revolução” do 25 de Abril e nela entra a arraia-miúda e a arraia graúda,
numa viagem paradisíaca, não atenta ao destino nem aos motivos da viagem. Era
querida uma orientação monocolor e pretendia-se meter a liberdade em uniformes
ideológicos.
O autocarro de Abril
partiu e o povo continuou na esperança de chegar a melhor. Sentíamo-nos todos
passageiros da liberdade, provindos dos mais diferentes meios, mas querendo
construir uma sociedade com lugar ao Sol para todos. Portugal estava todo
inteiro, a caminho da liberdade, a caminho dum viver por viver. Então, na rua,
nas estações, olhos confidentes se trocavam numa atmosfera que se abria para um
futuro risonho de espaços abertos e na sequela dum chamamento de libertação.
Por alguns momentos fomos
um povo unido e especial que atraía grupos das esquerdas dos mais diversos
países; Portugal era a Roma do turismo político de esquerda tal como era e
continuou Cuba depois.
No horizonte, aqui e
acolá, nuvens de estragos se vão acumulando. O espírito que motivava os actores
da revolução era apenas político sem contemplar o Homem todo nem Portugal no
seu todo. Por isso o que a princípio parecia uma revolução, revelou-se, com
o tempo, ter sido apenas um golpe de Estado com os benefícios das mudanças que
na altura, noutros Estados europeus, acontecia na normalidade. O egoísmo
de grupos e “personalidades” da nossa praça, sem escrúpulos, vai-se servindo da
Nação, deixando para o povo o sacrifício da abnegação; mandam os Santos para o
deserto para se porem a si no nicho da reputação. Os abrilistas ocuparam o céu
português e hoje ainda têm o descaramento de desculparem a crise da Nação na
culpa dos outros. E o mesmo povo continua a ir na fita pensando que a culpa
está neste ou naquele quando ela é bem nossa que continuamos a dar paleio aos
que encurralaram a esperanças para si. Aquela alegria, aquela esperança e
liberdade da rua que se julgava pública, passaram a ser reservadas para os
cínicos do poder que ocuparam o lugar que pertencia ao povo no dia-a-dia, na TV
e noutros meios de comunicação social. Foi um sonho de pouca dura mas que levou
o povo inocente e bom a interiorizar uma superficialidade libertina e a abdicar
da dignidade, da honra e do respeito que provinham duma ética de cunho
responsável.
O povo confiante acorda
agora molhado. Também deixou de ser família universal com o coração no mundo e
nos povos ultramarinos para se tornar num canto europeu, num povo de dançarinos
de alma na rua saltando ao som de interesses anónimos e ao ritmo da mesma cor. Construiu-se
uma liberdade que guarda a oportunidade para o mais forte, uma liberdade
amarrada a ideologias e a interesses alheios e não uma liberdade de visão
integral e responsável do não só mas também!
Organizaram-se então
campanhas revolucionárias de libertação e de reeducação do povo. Tudo
bem-intencionado e preparado para atrair a inocência de crenças nobres. Para se
responder ao desejo de inocência procura destruir-se a vergonha. Organizam-se,
até em recônditas aldeias, sessões de desflorações virginais em grupo; quer-se
o comunismo, tudo maninho, querem-se as meninas, menos as que têm o dono
presente; procede-se à queimada de livros de “fachos”, etc. O que não serve a
ideologia de alguns deve queimar-se ou arrumar-se. À hora da direita segue-se a
da esquerda e vice-versa. Esta é a liberdade confinada aos que agora querem ter
razão, como se também esta não fosse processo e só pertencesse a alguns. Agora
assistimos ao instinto da inocência a vingar-se na resignação. (A geração de
agora tem de reparar os estragos, tem de granjear-se a honra e o respeito que
lhe foi roubado).
A liberdade desencadeada
deixa no ar o som de cadeados caídos numa revolução descontrolada de
libertinagem bárbara que se satisfaz no andar na vida por ver andar os outros.
Não há respeito por si mesmo nem pelos outros. Tudo à própria disposição. Uma
liberdade adolescente, irresponsável, que não conhece nada nem ninguém; toda
ela em nome duma culpa passada. Egoísmo puro que faz do outro cliente do
próprio sentimento. A droga é propagada, desinibe e o sexo ajuda a ideologia.
Quem trabalhava e fazia pela vida era designado de “facho”. Professores
exigentes eram saneados e organizam-se os exames colectivos. Uma das causas
da crise portuguesa de hoje está nesse espírito leviano de então que levou os
estudantes formados, com as notas do grupo, a ocupar os lugares de
responsabilidade das nossas administrações.
Uma revolução que
prometia tanto, com tão boa música e fanfarra que abria as portas ao progresso
desembocou no beco sem saída duma gula de marcha limitada a ritmos de
esquerda-direita; meteu assim a terceira República nos caminhos da bancarrota,
tal como aconteceu na primeira. Heróis da revolução, que o povo ainda canta,
vivem com ordenados mastodônticos e injuriosos, como nunca na História houve,
enquanto muito do povo vegeta com ordenados de miséria que não dão para viver
nem para morrer. Tudo acontece e se legitima à sombra duma democracia que
querem prostituta.
Partidos, sindicatos,
grupos organizados, etc. instalam-se no aparelho do Estado. Numa guerrilha
ímpar de aumentar o próprio lucro e “honra” agregam-se à volta do Estado como
chulos à volta do bordel. Por todo o lado se encontram guardiães da
revolução, cães de guarda duma liberdade oferecida não conquistada mas em
benefício de adeptos e adversários. Privilegiados da revolução agarram-se todos
ao vermelho da ideologia ou da parceria perdendo o sentido pela riqueza das
cores.
A consciência da
liberdade partidária negligencia a liberdade pessoal e a descoberta da força
das próprias possibilidades. Um na ilusão à espera de Godot, outros na
letargia, virados para D. Sebastião; tudo se alinha nas ordens de marcha de
grupos e de organizações secretas enlaçadas em coutadas de compadrio e na
burocracia. Compra-se o indivíduo para se afirmar a hierarquia.
A caminhada para o futuro
viu reduzido o seu horizonte ao 10 de Dezembro de 1910 e aos resquícios
liberais napoleónicos. Um tradicionalismo obediente e a fé nas razões do poder
não conseguiram quebrar o bolor dum liberalismo mafioso e dum republicanismo
ultrapassado, guardado na Nação a sete chaves em gavetas intelectuais
seguidoras dos excessos do Marquês de Pombal. A visão ideológica impede o olhar
pessoal e regional. Nas pistas dum futuro em liberdade esbarramos connosco,
repetindo os erros da primeira República.
No comboio da história,
numa alternância de cor, continuam os mesmos lugares reservados para os da nova
oportunidade; o povo continua em bicha e sempre à chuva, sempre à espera nas
estações, sempre na ânsia dum comboio com carruagens para ele. Esperar na
desesperança é a sua condição independentemente da cor da governação. Para
se entrar no comboio dos donos da razão e do arrazoar, é preciso um
compartimento, um vagão do partido, do sindicato, do compadre, do mação. A
História, sem heróis, deixa-se conduzir pela banalidade do quotidiano e
afasta-se cada vez mais da arraia-miúda. Esta, por sua vez, revela-se massa,
sem consciência, sempre à espera dum revisor que lhe cobre o bilhete. Uma
elite à trela dum Estado dominado pela insuficiência partidária e grupal não
gera civis livres nem sequer heróis. Produz acomodados e mercenários, gera
políticos da capitulação a ideologias e à subserviência boçal, não tolera
heróis nem homens bons. Um povo unido tornou-se num povo humilde sempre
vencido. Povo, sempre ao toque de caixa dos oportunos e que então aplaudia e
agora lamenta.
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