É. “Ninguém se apercebe de nada”. Foi Rui
Knopfli que o escreveu (poema «Winds of change» in
“Reino Submarino”, 1962). Já em tempos o escrevi neste blog e não
resisto a transcrever novamente o texto, de 11/4/2012, em reacção ao artigo
risonho de Rui Tavares, «Coisas da China (que
Trump talvez ignore)», embora admire sempre Rui Knopfli
como poeta de um intimismo desinibido e duro, além de outros dados que o tornam
um poeta a merecer grande destaque nas letras pátrias. Todavia, a vassalagem
aos africanos, por alturas dos ventos descolonizadores, mereceu o meu repúdio,
como fiz sentir nesse texto do blog, que reponho, para responder à leviandade
tosca de Rui Tavares, como é a de todos os que apontam o dedo
acusador aos colonizadores não independentes das metrópoles, não podendo esses
todos pontapear as nações colonialistas que há muito tinham adquirido o
estatuto de independência, e por isso se livraram de idênticos libelos
acusatórios e idênticas expulsões dos seus territórios colonizados com maior
violência do que fora a nossa, de ocupantes dependentes.
«Ninguém se apercebe de nada»:
«Mas Rui Knopfli apercebia-se, ele era dos que
frequentavam os sítios onde havia informação. O resto do povo fazia a sua vida,
a maioria trabalhava, ainda as drogas não frequentavam os espaços de uma África
ampla e saudável, a mocidade brincava em liberdade. E também estudava. O 25 de
Abril colheu quase todos de surpresa, até mesmo os governantes – esses,
sobretudo – e as tropas de cá e de lá, chamadas a defender aquilo lá, para
benefício de cá, até mesmo aqueles que traíam sobretudo lá.
Rui Knopfli foi dos que se apercebeu, dos que
frequentou, dos que traiu por conveniência ficticiamente democrática, embora
sem muita convicção, alma sensível que era e tão bem se revelara nos versos com
que moldou as paisagens da sua tristeza. Mas, europeu que era, não permaneceu,
para cá veio, protegido pelo bloco dos que, atraiçoando a pátria, agora
distribuíam as benesses pelos da Intelligentsia traidora. Veio para cá, esteve
em Inglaterra em trabalho, julgo que viveu na agonia da saudade pela terra que
tão bem descreveu, no arrependimento pelos da “inocência bem – ou antes, mal -
aventurada” que desprezara, burguesia do trabalho, que construíra cidades e
vias e as fábricas que a Metrópole consentia que se construíssem por lá.
Não, ninguém se apercebeu. E nem mesmo Rui Knopfli,
que, se vivesse hoje, se espantaria com o trajecto de um país a saque, um país
que fora amplo e que agora se via condenado a viver dos empréstimos, usados em
reformas e benefícios, sim, do país reduzido, mas a maior parte, talvez, em
benefício dos habituais do saque. Nesses se incluem também os estrondosos
cartões de crédito a governantes, e as mordomias dos mesmos, e os vencimentos
dos trabalhadores da RTP que o povo também paga para ser tratado com muitas
boquinhas pelos apresentadores de sorrisos torcidos e de outros requebros. E inclui-se
igualmente a multa a Mário Soares que em cólera pela desconsideração do polícia
cumpridor, solta um formidável “O país é que vai pagar!”, tão sintomático
daquilo que valemos, como povo da discrepância e da mediocridade. Salvou-se o
polícia cumpridor, contra os do endeusamento dos heróis fictícios da nossa
“epopeia” actual, não mais marítima, mas bastante aérea.
Eis o poema de Rui Knopfli:
«Winds of change»
«Ninguém se apercebe de nada. / Brilha um sol
violento como a loucura / e estalam gargalhadas na brancura / violeta do
passeio. / É África garrida dos postais, / o fato de linho, o calor obsidiante
/ e a cerveja bem gelada. / Passam. Passam / e tornam a passar. / Estridem mais
gargalhadas, / abrindo umas sobre as outras / como círculos concêntricos. / Os
moleques algaraviam, folclóricos, / pelas sombras, nas esquinas / e no escuro
dos portais / adolescentes namoram de mãos dadas. / De facto, como é mansa e
boa / a Polana / nas suas ruas, túneis de verdura / atapetadas de veludo
vermelho. / Tudo joga tão certo, tudo está tão bem / como num filme
tecnicolorido. / Passam. Passam / e tornam a passar. / Ninguém se apercebe de
nada.»
E agora, que percebemos, resta-nos o “tarde piaste”
da nossa inconsciência. Porque os da incontinência souberam piar mais cedo. Sem
parar.»
Mas lembrei-me de Knopfli, também pela referência
pateta – patética – de Rui Tavares ao povo chinês, que
pretende abarcar este mundo e talvez o outro, por conta de um poderio real, que
se baseia, julgo, na exploração do seu próprio povo, por um governo
totalitarista e só aparentemente – e cinicamente – brando. Rui Knopfli,
no mesmo livro “Reino Submarino” descreve esse povo que “construiu
a muralha da China” e “se ri de nós”, que começa, segundo Rui
Tavares, por compor filmes a imitar os de intriga épica americana, e
vai avançando suavemente na ocupação do mundo, num jogo de subserviência face
ao americano, apenas aparente, porque decididamente ambiciosa de domínio
absoluto. Que o digam as lojas e restaurantes chineses alastrantes e pejadas,
por todo o sítio, de gente altiva e séria, não mais idêntica a essa de "O
povo da China visto do Alto-Maé”, que transcrevo:
«Eh pá, a gente pensa na China,
Nos compridos campos de arroz
E nos milhões de pessoas
Como imensos bagos de arroz,
Vivendo lá na China.
É engraçado a gente aqui no Alto-Maé
Que conhece o Kong, magrinho, da hortaliça
Com aquela voz engraçada (Stá plonto patlão),
É engraçado como a gente se engana
Com a China, aquele povo imenso
De Komgs amarelinhos e fala doce
Que construiu a Grande Muralha
E que constrói a vida
E que, se tem tempo, se ri de nós,
Da nossa pele descolorida,
Dos nossos olhos redondos
E dos erres engraçados com que falamos.»
Rui Tavares entende então que os chineses
que se espalham actualmente pela África vão no propósito de ajudar socialmente
e economicamente os africanos? Há sinceridade nisso? Ou antes, puro “racismo”
contra os seus próprios “irmãos de raça”… Retornados lhes chamaria também, se fosse mais
velho…
Faço votos
para que nunca ele tenha que rastejar perante essa China avassaladora da sua
informação de terna e risonha referência. E os seus filhos e netos ...
OPINIÃO
Coisas da China (que Trump talvez ignore)
Trump iniciou uma guerra tarifária contra as importações chinesas. Mas
não sei se já se deu conta de quão parecida com os EUA se tornou a China.
PÚBLICO, 23 de Março de 2018
OPINIÃO
Para entender onde está a China, e para onde vai, podemos ler dezenas de
dissertações. Ou podemos gastar duas horas a ver Lobo Guerreiro 2,
um filme do ano passado que é o maior sucesso de bilheteira de sempre na China
(e segundo maior sucesso de bilheteira num só país, a curta distância
de Guerra das Estrelas VII: o Despertar da Força nos EUA).
Porque não? Há muito que a cultura de massas é tomada como metáfora da
condição norte-americana e da sua hegemonia global. Para potências como a China sobram os
debates académicos. Mas o que os chineses vêem, aos milhões, é Lobo
Guerreiro 2, filme passado em África, onde Leng Feng, agente das forças
especiais chinesas, tenta salvar uma fábrica chinesa e os seus trabalhadores
africanos de uma situação tramada — mistura de guerra civil com epidemia de uma
doença rara e ultra-mortífera ao mesmo tempo — em apenas 18 horas.
O sucesso de bilheteira chinês é, para todos os efeitos, igual aos
filmes equivalentes norte-americanos. Tem as mesmas reviravoltas na intriga, os
mesmos efeitos especiais e o mesmo heroísmo paternalista. A grande diferença é que em vez de serem
os americanos a salvar o mundo são os chineses a salvar o mundo. Até a génese
do filme é igualmente capitalista: ao contrário de outros filmes patrióticos
chineses, produzidos e distribuídos pelo Estado, Lobo Guerreiro 2 é
fruto da iniciativa privada de Wu Jing, que acumula numa só pessoa o papel de
produtor, realizador, argumentista e ator principal. O público adorou: a
mensagem é a mesma que se encontra nos filmes estatais, mas o embrulho é mais
empolgante.
Ver Lobo Guerreiro 2 é como estar do outro lado do espelho em
relação à imagem que os ocidentais têm do papel da China em África. No filme,
os chineses não estão em África para explorar pessoas ou para extrair recursos,
mas para ajudar os africanos a erguerem-se após o colonialismo ocidental. O pai do herói morreu em África e por África —
e corta!, decide o realizador, para a cena em que o herói, em frente ao túmulo
do pai, jura ser fiel à missão paterna de defender os africanos. Há uma
história de amor em que o protagonista irrita-primeiro-e-seduz-depois uma bela
médica exótica (ou seja, ocidental: a Dra. Rachel Smith). Lá se admite que
haja um vilão chinês, mas só um bocadinho, na pessoa do dono da fábrica que diz
que só há espaço para retirar dali os chineses e não os africanos. Após um
brevíssimo momento de incerteza, o herói Leng Feng proclama que jamais seria
capaz de se ir embora sem salvar toda a gente, chineses e africanos juntos.
A cena que se segue, na qual africanos gratos celebram efusivamente a
decisão do seu salvador chinês, é de um tal simplismo racista que não passaria
hoje no teste do politicamente correto ocidental — mas não estaria deslocada
num filme do Rambo de há 30 anos.
Ao largo, numa corveta da marinha de guerra chinesa, militares a quem é
atribuído um coração mais mole do que o dos seus homólogos ficcionais
americanos esperam ansiosos que Leng Feng consiga levar a sua missão até ao
fim. E aqui entra o único pormenor relevante que não apareceria num filme
americano: é que quando finalmente os chineses e os africanos da fábrica são
salvos (raios, contei-vos o fim do filme! — desculpem estragar uma surpresa
tão inesperada)
o helicóptero que os transporta em segurança pertence, não ao Exército
de Libertação Popular chinês, mas... à Organização das Nações Unidas. Por esta
é que não estavam à espera, hein?
A mensagem da China, para si mesma e para quem estiver disposto a ouvir,
é clara: ao contrário dos americanos, os chineses serão uma super-potência sob
— e não sobre — a égide das Nações Unidas. Isto é propaganda, claro, mas é
importante saber para onde vai a propaganda. É que, fora das telas do cinema, isto é, o
mesmo que martelam a televisão oficial e o Presidente Xi Jinping quando
lembram, por exemplo, que a China é o maior fornecedor de capacetes azuis à
ONU.
Trump iniciou ontem uma guerra tarifária contra as importações chinesas.
Mas não sei se já se deu conta de quão parecida com os EUA se tornou a China.
Trata-se do único outro país no mundo que assume claramente a vontade de vir a
ser uma super-potência global. O espírito errático de Trump só convenceu ainda
mais a liderança chinesa de que o seu propósito de atingir o estatuto de
super-potência é necessário, não por interesse da China, mas porque a China
está disposta a sacrificar-se pelo mundo. Ou seja: o discurso é tão simplista e
ridículo como quando eram os americanos a dizê-lo. Mas é aquilo em que os
chineses nos estão a dizer que acreditam. Nos discursos políticos e — um dia
destes — num cinema perto de si.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
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