terça-feira, 27 de março de 2018

A boa disposição de Rui Tavares

É. “Ninguém se apercebe de nada”. Foi Rui Knopfli que o escreveu (poema «Winds of change» in “Reino Submarino”, 1962). Já em tempos o escrevi neste blog e não resisto a transcrever novamente o texto, de 11/4/2012, em reacção ao artigo risonho de Rui Tavares, «Coisas da China (que Trump talvez ignore)»embora admire sempre Rui Knopfli como poeta de um intimismo desinibido e duro, além de outros dados que o tornam um poeta a merecer grande destaque nas letras pátrias. Todavia, a vassalagem aos africanos, por alturas dos ventos descolonizadores, mereceu o meu repúdio, como fiz sentir nesse texto do blog, que reponho, para responder à leviandade tosca de Rui Tavares, como é a de todos os que apontam o dedo acusador aos colonizadores não independentes das metrópoles, não podendo esses todos pontapear as nações colonialistas que há muito tinham adquirido o estatuto de independência, e por isso se livraram de idênticos libelos acusatórios e idênticas expulsões dos seus territórios colonizados com maior violência do que fora a nossa, de ocupantes dependentes.

«Ninguém se apercebe de nada»: 
«Mas Rui Knopfli apercebia-se, ele era dos que frequentavam os sítios onde havia informação. O resto do povo fazia a sua vida, a maioria trabalhava, ainda as drogas não frequentavam os espaços de uma África ampla e saudável, a mocidade brincava em liberdade. E também estudava. O 25 de Abril colheu quase todos de surpresa, até mesmo os governantes – esses, sobretudo – e as tropas de cá e de lá, chamadas a defender aquilo lá, para benefício de cá, até mesmo aqueles que traíam sobretudo lá.
Rui Knopfli foi dos que se apercebeu, dos que frequentou, dos que traiu por conveniência ficticiamente democrática, embora sem muita convicção, alma sensível que era e tão bem se revelara nos versos com que moldou as paisagens da sua tristeza. Mas, europeu que era, não permaneceu, para cá veio, protegido pelo bloco dos que, atraiçoando a pátria, agora distribuíam as benesses pelos da Intelligentsia traidora. Veio para cá, esteve em Inglaterra em trabalho, julgo que viveu na agonia da saudade pela terra que tão bem descreveu, no arrependimento pelos da “inocência bem – ou antes, mal - aventurada” que desprezara, burguesia do trabalho, que construíra cidades e vias e as fábricas que a Metrópole consentia que se construíssem por lá.
Não, ninguém se apercebeu. E nem mesmo Rui Knopfli, que, se vivesse hoje, se espantaria com o trajecto de um país a saque, um país que fora amplo e que agora se via condenado a viver dos empréstimos, usados em reformas e benefícios, sim, do país reduzido, mas a maior parte, talvez, em benefício dos habituais do saque. Nesses se incluem também os estrondosos cartões de crédito a governantes, e as mordomias dos mesmos, e os vencimentos dos trabalhadores da RTP que o povo também paga para ser tratado com muitas boquinhas pelos apresentadores de sorrisos torcidos e de outros requebros. E inclui-se igualmente a multa a Mário Soares que em cólera pela desconsideração do polícia cumpridor, solta um formidável “O país é que vai pagar!”, tão sintomático daquilo que valemos, como povo da discrepância e da mediocridade. Salvou-se o polícia cumpridor, contra os do endeusamento dos heróis fictícios da nossa “epopeia” actual, não mais marítima, mas bastante aérea.
Eis o poema de Rui Knopfli:
«Winds of change»
«Ninguém se apercebe de nada. / Brilha um sol violento como a loucura / e estalam gargalhadas na brancura / violeta do passeio. / É África garrida dos postais, / o fato de linho, o calor obsidiante / e a cerveja bem gelada. / Passam. Passam / e tornam a passar. / Estridem mais gargalhadas, / abrindo umas sobre as outras / como círculos concêntricos. / Os moleques algaraviam, folclóricos, / pelas sombras, nas esquinas / e no escuro dos portais / adolescentes namoram de mãos dadas. / De facto, como é mansa e boa / a Polana / nas suas ruas, túneis de verdura / atapetadas de veludo vermelho. / Tudo joga tão certo, tudo está tão bem /  como num filme tecnicolorido. / Passam. Passam / e tornam a passar. / Ninguém se apercebe de nada.»
E agora, que percebemos, resta-nos o “tarde piaste” da nossa inconsciência. Porque os da incontinência souberam piar mais cedo. Sem parar.»

Mas lembrei-me de Knopfli, também pela referência pateta – patética – de Rui Tavares ao povo chinês, que pretende abarcar este mundo e talvez o outro, por conta de um poderio real, que se baseia, julgo, na exploração do seu próprio povo, por um governo totalitarista e só aparentemente – e cinicamente – brando. Rui Knopfli, no mesmo livro “Reino Submarino” descreve esse povo que “construiu a muralha da China” e “se ri de nós”, que começa, segundo Rui Tavares, por compor filmes a imitar os de intriga épica americana, e vai avançando suavemente na ocupação do mundo, num jogo de subserviência face ao americano, apenas aparente, porque decididamente ambiciosa de domínio absoluto. Que o digam as lojas e restaurantes chineses alastrantes e pejadas, por todo o sítio, de gente altiva e séria, não mais idêntica a essa de "O povo da China visto do Alto-Maé”, que transcrevo:
«Eh pá, a gente pensa na China,
Nos compridos campos de arroz
E nos milhões de pessoas
Como imensos bagos de arroz,
Vivendo lá na China.
É engraçado a gente aqui no Alto-Maé
Que conhece o Kong, magrinho, da hortaliça
Com aquela voz engraçada (Stá plonto patlão),
 É engraçado como a gente se engana
Com a China, aquele povo imenso
De Komgs amarelinhos e fala doce
Que construiu a Grande Muralha
E que constrói a vida
E que, se tem tempo, se ri de nós,
Da nossa pele descolorida,
Dos nossos olhos redondos
E dos erres engraçados com que falamos.»
Rui Tavares entende então que os chineses que se espalham actualmente pela África vão no propósito de ajudar socialmente e economicamente os africanos? Há sinceridade nisso? Ou antes, puro “racismo” contra os seus próprios “irmãos de raça”…  Retornados lhes chamaria também, se fosse mais velho…

 Faço votos para que nunca ele tenha que rastejar perante essa China avassaladora da sua informação de terna e risonha referência. E os seus filhos e netos ...

OPINIÃO
Coisas da China (que Trump talvez ignore)
Trump iniciou uma guerra tarifária contra as importações chinesas. Mas não sei se já se deu conta de quão parecida com os EUA se tornou a China.
PÚBLICO, 23 de Março de 2018
OPINIÃO
Para entender onde está a China, e para onde vai, podemos ler dezenas de dissertações. Ou podemos gastar duas horas a ver Lobo Guerreiro 2, um filme do ano passado que é o maior sucesso de bilheteira de sempre na China (e segundo maior sucesso de bilheteira num só país, a curta distância de Guerra das Estrelas VII: o Despertar da Força nos EUA).
Porque não? Há muito que a cultura de massas é tomada como metáfora da condição norte-americana e da sua hegemonia global. Para potências como a China sobram os debates académicos. Mas o que os chineses vêem, aos milhões, é Lobo Guerreiro 2, filme passado em África, onde Leng Feng, agente das forças especiais chinesas, tenta salvar uma fábrica chinesa e os seus trabalhadores africanos de uma situação tramada — mistura de guerra civil com epidemia de uma doença rara e ultra-mortífera ao mesmo tempo — em apenas 18 horas.
O sucesso de bilheteira chinês é, para todos os efeitos, igual aos filmes equivalentes norte-americanos. Tem as mesmas reviravoltas na intriga, os mesmos efeitos especiais e o mesmo heroísmo paternalista. A grande diferença é que em vez de serem os americanos a salvar o mundo são os chineses a salvar o mundo. Até a génese do filme é igualmente capitalista: ao contrário de outros filmes patrióticos chineses, produzidos e distribuídos pelo Estado, Lobo Guerreiro 2 é fruto da iniciativa privada de Wu Jing, que acumula numa só pessoa o papel de produtor, realizador, argumentista e ator principal. O público adorou: a mensagem é a mesma que se encontra nos filmes estatais, mas o embrulho é mais empolgante.
Ver Lobo Guerreiro 2 é como estar do outro lado do espelho em relação à imagem que os ocidentais têm do papel da China em África. No filme, os chineses não estão em África para explorar pessoas ou para extrair recursos, mas para ajudar os africanos a erguerem-se após o colonialismo ocidental. O pai do herói morreu em África e por África — e corta!, decide o realizador, para a cena em que o herói, em frente ao túmulo do pai, jura ser fiel à missão paterna de defender os africanos. Há uma história de amor em que o protagonista irrita-primeiro-e-seduz-depois uma bela médica exótica (ou seja, ocidental: a Dra. Rachel Smith). Lá se admite que haja um vilão chinês, mas só um bocadinho, na pessoa do dono da fábrica que diz que só há espaço para retirar dali os chineses e não os africanos. Após um brevíssimo momento de incerteza, o herói Leng Feng proclama que jamais seria capaz de se ir embora sem salvar toda a gente, chineses e africanos juntos. A cena que se segue, na qual africanos gratos celebram efusivamente a decisão do seu salvador chinês, é de um tal simplismo racista que não passaria hoje no teste do politicamente correto ocidental — mas não estaria deslocada num filme do Rambo de há 30 anos.
Ao largo, numa corveta da marinha de guerra chinesa, militares a quem é atribuído um coração mais mole do que o dos seus homólogos ficcionais americanos esperam ansiosos que Leng Feng consiga levar a sua missão até ao fim. E aqui entra o único pormenor relevante que não apareceria num filme americano: é que quando finalmente os chineses e os africanos da fábrica são salvos (raios, contei-vos o fim do filme! — desculpem estragar uma surpresa tão inesperada)
o helicóptero que os transporta em segurança pertence, não ao Exército de Libertação Popular chinês, mas... à Organização das Nações Unidas. Por esta é que não estavam à espera, hein?
A mensagem da China, para si mesma e para quem estiver disposto a ouvir, é clara: ao contrário dos americanos, os chineses serão uma super-potência sob — e não sobre — a égide das Nações Unidas. Isto é propaganda, claro, mas é importante saber para onde vai a propaganda. É que, fora das telas do cinema, isto é, o mesmo que martelam a televisão oficial e o Presidente Xi Jinping quando lembram, por exemplo, que a China é o maior fornecedor de capacetes azuis à ONU.
Trump iniciou ontem uma guerra tarifária contra as importações chinesas. Mas não sei se já se deu conta de quão parecida com os EUA se tornou a China. Trata-se do único outro país no mundo que assume claramente a vontade de vir a ser uma super-potência global. O espírito errático de Trump só convenceu ainda mais a liderança chinesa de que o seu propósito de atingir o estatuto de super-potência é necessário, não por interesse da China, mas porque a China está disposta a sacrificar-se pelo mundo. Ou seja: o discurso é tão simplista e ridículo como quando eram os americanos a dizê-lo. Mas é aquilo em que os chineses nos estão a dizer que acreditam. Nos discursos políticos e — um dia destes — num cinema perto de si.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico


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