Não vamos supor que a Itália é
um vespeiro de gente política equiparável àquela a quem Dante se entreteve a
condenar com a gravação infernal “Lasciate ogni speranza” aplicada a
contemporâneos seus, mas de facto a Itália é um extraordinário e curioso país
efervescente, já na sua antiguidade tão célebre, de gente corajosa mas também
malandra, e simpática, de quem nos ficaram os livros do Pinóquio e o “Coração”, de Edmundo de Amicis, tão triste
e de tão nobre leitura na minha formação primeira, além da beleza do Marcello
Mastroiani e da Sophia Loren, e tantas mais dos tempos idos, que nos ficaram no
goto. Teresa de Sousa não se importa com estes dados somenos, porque prefere
elucidar-nos seriamente sobre as questões políticas do nosso vago conhecimento.
Por isso lhe estamos gratos, por referir não só as eleições italianas, sem
resultados de força maior, como já acontecia nas relações entre o Don Camillo e
o Peppone, mas também a crise na União Europeia, além de outras histórias que
por nós passaram, da Inglaterra e da França, que é sempre bom rever, para
melhor assistir às mudanças. E comparar com as nossas, tão irrelevantes, que o
estardalhaço em torno da bola sempre banaliza, tal como se fazia no tempo de
Salazar também, como entretenimento da nossa pasmaceira, o que era muito
criticável então.
ANÁLISE
A Itália e o destino da social-democracia
O centro-esquerda sofreu
uma derrota histórica em Itália. O centro-direita também. A queda dos partidos
sociais-democratas já mereceu inúmeros tratados. Falta saber se o
centro-direita resiste. Há muitas dúvidas.
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO, 8 de Março de 2018
O resultado das eleições
italianas distribuiu o mal pelas aldeias. O Partido Democrata de
Matteo Renzi sofreu uma derrota histórica, atirando
o centro-esquerda para uma crise profunda. As últimas notícias
referem um debate
crispado entre os que admitem a possibilidade de uma coligação com
o Movimento Cinco Estrelas e os que se lhe opõem. O resultado do Força
Itália do renascido Silvio
Berlusconi, de centro-direita, pôs fim às ambições do empresário, que
se deixou vencer pela Liga, nacionalista, que foi um dos seus parceiros menores
nos anos em que governou a Itália. É preciso olhar à distância para entender
estes sinais.
Já não chega falar da
crise da social-democracia europeia, que se acentuou na sequência da
globalização dos mercados e da era do neoliberalismo. Já se escreveram inúmeros
tratados sobre o seu destino. Quase todos pessimistas. A realidade parece
dar-lhes razão. Mas já não chega para se entender a realidade política italiana
e europeia. É preciso falar da crise das democracias europeias, onde os
partidos tradicionais estão em queda e os extremos em ascensão. E é preciso
também perceber que cada caso é um caso, para além das grandes tendências que
estão a mudar a paisagem política.
Nos anos 2000, a
social-democracia liderava 10 dos 15 governos dos países da União Europeia. A
vaga imparável da “terceira via” de Tony Blair parecia ser a resposta adequada
ao fim da Guerra Fria e à consequente globalização dos mercados. Em Londres,
Berlim, Roma, Madrid, Lisboa ou nas capitais nórdicas, o centro-esquerda
parecia ter recuperado do trauma da queda do comunismo, encontrando uma nova
fórmula: dar aos cidadãos os instrumentos necessários para enfrentarem os
desafios da nova economia, assente na liberalização dos mercados e na revolução
tecnológica.
Educação era a
palavra-chave. Em 1992, Bill Clinton anunciara o fim do welfare e o início do workfare. Tony
Blair construiu o New Labour a partir do legado da revolução
conservadora de Thatcher. Venceu as eleições em 1997 por uma maioria
esmagadora. Reconciliou o Reino Unido com a Europa. Apesar do Iraque, venceu
três eleições seguidas.
Em 1998, Gerhard
Schroeder rompia com o trauma que deixou o SPD à margem do poder, porque
não conseguiu entender os ventos da História, quando o Muro de Berlim caiu,
considerando a unificação como um objectivo longínquo. Schroeder anunciou um
“novo meio” e lançou uma série de reformas para recuperar uma economia exangue,
graças aos triliões de euros transferidos para os Länder do
Leste. A globalização era inevitável, a partir do momento em que as economias
fechadas ao exterior dos países comunistas (sobretudo, a União Soviética e a
China) entraram nos mercados internacionais. As economias emergentes ainda não assustavam
ninguém.
A Grande Recessão
Até à brutal crise
financeira de 2008, a ideologia dos mercados conseguiu disfarçar os efeitos da
globalização nas democracias desenvolvidas. A Grande Recessão
que se lhe seguiu e que não poupou ninguém, deixou a céu aberto uma
realidade social que tinha deixado para trás os excluídos da globalização, com
a deslocalização das empresas e dos empregos, e que tinha atenuado a estagnação
dos rendimentos da classe média graças ao crédito fácil que desapareceu.
Entretanto, a mesma
globalização dos mercados permitiu às grandes e médias economias emergentes
retirar da pobreza extrema centenas de milhões de pessoas. O caso
mais relevante foi a China. Tudo começou a mudar nas democracias europeias.
A crise financeira interrompeu a bonança do euro, a maior conquista do projecto
europeu desde a sua fundação e a resposta à emergência da Alemanha unificada.
Os anos da crise europeia desafiaram os sistemas políticos em praticamente
todos os países da União.
A segunda
“decapitação”
Cada caso é um caso.
Em Itália, o ritmo das transformações políticas foi diferente. O
sistema partidário italiano foi decapitado pelo fim da Guerra Fria, pondo fim
ao “compromisso histórico” que garantia o governo da Democracia Cristã e a
oposição do Partido Comunista. A corrupção fez implodir a direita. O
Partido Socialista quase desapareceu. Os eurocomunistas conseguiram
transformar-se em sociais-democratas e recolher os restos do centro-direita e
do centro-esquerda, que ficaram órfãos, depois da implosão do velho sistema.
Antigos comunistas, como Massimo Dalema, aceitaram com entusiasmo as regras da
“terceira via”.
Do outro lado do
espectro partidário, Silvio Berlusconi, um dos homens mais ricos de Itália,
criou de cima para baixo um partido de centro-direita, o Força Itália, ocupando
o espaço deixado vazio pela democracia-cristã. Governou por três vezes a
Itália, pondo os analistas a pensar como era possível a um país rico e sofisticado
rever-se num líder populista que desprezava as convenções.
As culpas foram
atribuídas à incapacidade do centro-esquerda de pôr termo às guerras intestinas
e aos velhos tiques políticos de outros tempos, que minaram a sua credibilidade
junto dos eleitores. Cheiravam demasiado a uma elite mais preocupada com a sua
sobrevivência do que com a sobrevivência do país.
Berlusconi foi afastado
em 2011, quando a crise do euro ameaçava a Europa e a pressão de Berlim se
tornou insustentável. A Europa ainda garantia o mínimo de racionalidade
ao sistema. E isso parecia bastar. O problema foi que a economia
estagnou. Romano Prodi ainda conseguiu que os italianos fizessem os sacrifícios
necessários para estar no euro desde o primeiro dia.
A Grande Recessão
afectou a economia de forma brutal, obrigando-a a salvar o seu sistema
financeiro in extremis. Não havia dinheiro que
chegasse para “resgatar” a terceira economia do euro. Mario
Monti, um tecnocrata de grande prestígio que foi comissário
europeu e a quem, em 2012, no pico da crise, foi entregue o governo de Roma,
não durou muito.
Em
2014, Matteo Renzi fez a sua entrada triunfal na liderança do PD, afastando
a velha guarda. Jogou no tudo ou nada e ficou com nada. “A capacidade de Renzi
para destruir o seu capital político foi extraordinária”, escreveu a Spiegel na altura em que perdeu o referendo para
alterar o sistema político italiano.
O seu sucessor, o
discreto Paolo Gentiloni, conseguiu afastar a Itália de uma crise bancária que
teria sido um desastre para a Europa. A economia começou a crescer, mesmo que
devagar.
Berlusconi ressuscitou.
Por pouco tempo. No dia 4 de Março, os eleitores não se limitaram a derrotar o
PD. Derrotaram-no também a ele. O centro cedeu. Ganharam os populistas do Cinco
Estrelas, reconvertidos às boas maneiras, liderados por um jovem de 31 anos que
deixou para trás a mensagem antieuropeia, num país que, apesar de tudo, não
quer sair do euro (apenas 15% admitem essa hipótese), mesmo escolhendo partidos
que defendem ou já defenderam o contrário. A Liga, nacionalista, que serviu de
aliado menor a Berlusconi, venceu-o. É um partido de direita de forte de raiz
nacionalista e xenófoba.
Um populismo do centro?
O caso mais curioso é o do Cinco
Estrelas, a quem alguns analistas já chamam de “populismo do centro”,
defendendo que se lhes deve dar uma oportunidade. O seu programa incluiu uma
série de medidas que não se distanciam muito de um programa de centro-esquerda,
preocupado com os que ficaram para trás.
Alguém vai ter de
governar a Itália. O maior problema é o efeito que a queda dos partidos do
sistema possa ter na Europa. “Uma Itália instável e eurocéptica pode ainda
colocar um travão nos planos franco-alemães”, diz Charles Grant, director do
Center for European Reform de Londres.
Lidar com a globalização
O SPD nunca mais
conseguiu recuperar do erro fatal que cometeu quando caiu o Muro de Berlim e a
unificação se tornou imparável. Acreditou que era um processo
para muitos anos. Ganhou o poder em 1998. Perdeu-o em 2005. Viveu os últimos
anos a culpar Gerhard Schroeder pela sua queda eleitoral. O que não o impediu
de coligar-se com a CDU da chanceler e repetir a dose em 2013 e, uma vez mais,
agora. Teve o seu pior resultado de sempre nas eleições de Setembro, declarando
que não iria para o governo. Mas a pressão europeia foi mais forte.
Apesar da sua quarta
vitória, Merkel também registou o pior resultado de sempre do seu partido.
Ambos vão tentar fazer das fraquezas forças, diante de uma paisagem política
que não conseguiu evitar o contágio da fragmentação e do nacionalismo: a
extrema-direita entrou no Bundestag; os liberais encostaram-se à direita, os
Verdes, que chegaram a ser vistos como o “substituto” natural do SPD, viram as
suas bandeiras ambientais adoptadas pelos outros partidos. “Quando Martin
Schulz apela à justiça social ninguém o contraria. Mas também ninguém
diz: Yes! Com entusiasmo.”
Tony Judt, numa das
últimas obras que escreveu, justamente sobre a social-democracia, diz que ela
estava a transformar-se na “social-democracia do medo”. O medo de perder tudo.
Os populistas estão a ser mais eficientes. A Economist escrevia
recentemente que, na Europa, “os populistas estão a ganhar votos oferecendo
um welfare mais generoso”.
Em França, Emmanuel
Macron destruiu de um só golpe os dois partidos centrais que governaram a V
República: os socialistas e os republicanos, na sua última versão criada por
Nicolas Sarkozy. Os números parecem inacreditáveis, mas não é bem
assim. Os socialistas, que ganharam em 2011 as presidenciais e as legislativas,
caíram para 6,7% nas presidenciais de 2017 e um pouco mais nas legislativas. Há
um número impressionante mas enganador: perderam 249 dos 280 lugares que tinham
no Parlamento. Mas a maioria dos seus votos e muitos dos seus eleitos nas
legislativas ficaram com Macron e o seu partido de centro-radical. O Presidente
francês venceu as eleições sem a mínima cedência ao discurso contra a
globalização, contra os imigrantes ou contra a Europa.
Sarkozy e Hollande são
águas passadas. A Frente Nacional está em crise. Os
Republicanos encostaram-se à agenda nacionalista de Le Pen, à procura de um
espaço e de um papel que ainda não encontraram. Macron abandonou a velha
dicotomia, da qual a França tem a patente, entre direita e esquerda, preferindo
aquela que opõe a abertura ao fechamento. Para ele, o futuro da França
confunde-se com o futuro da Europa. Trouxe uma alma nova ao centro-esquerda
europeu. Tinha 39 anos quando entrou no Eliseu. Junta-se a uma nova geração de
líderes que estão a marcar, para o bem ou para o mal, a política europeia.
Na Áustria, o
novo líder dos conservadores, um jovem de nome Sebastian Kurz, de 31 anos,
conseguiu levar o seu partido à vitória, aliando-se ao partido de
extrema-direita para governar o país. A economia está em alta, o que não serviu
de nada ao líder dos sociais-democratas, Christian Kern, o responsável por este
sucesso económico. A imigração, mais uma vez, é o factor que determina a
escolha dos eleitores. Kurz assumiu parte do discurso contra a imigração,
sobretudo islâmica, do seu parceiro, sem deixar de colocar a Europa como
prioridade.
Pierre Rosanvallon,
historiador e sociólogo francês, autor de uma obra que ficou famosa sobre o fim
do Estado-providência (1982), defende que o desafio do centro-esquerda é
recuperar o valor da igualdade, que os anos do neoliberalismo fizeram esquecer.
É um caminho. Mas hoje, mais do que o centro-esquerda, são as democracias
europeias que estão em crise.
COMENTÁRIO de
JOSÉ LUÍS MALAQUIAS
FIGUEIRA DA FOZ 09.03.2018
Os eleitores cansaram-se
dos partidos de centro-esquerda e de centro direita, pois ambos no poder tinham
as mesmas políticas económicas neoliberais, não respondendo aos claros sinais
de vontade de mudança dos eleitorados. Por isso, viraram-se para os populistas.
Mas há uma razão para a uniformidade de
práticas dos partidos tradicionais: é que essas práticas são impostas de fora,
não apenas pela UE, mas também pelos mercados, pela concorrência internacional,
pela globalização. Nenhum país, nem mesmo os EUA, pode hoje unilateralmente
adoptar todas as políticas que o seu eleitorado anseia, porque ficaria sairia
do ponto de equilíbrio económico com o resto do mundo. Assim, a única maneira de
vencer o populismo é a partir de fora, com políticas transnacionais que
respondam aos anseios comuns.
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