segunda-feira, 26 de março de 2018

Salazar sabia



Mais um texto revelador de um espírito isento e aberto, de erudição filiada em ideais democráticos aprofundados nas leituras específicas, repudiadas em tempos idos e que se mantêm hoje, em seguidismo de aparência farfalhudamente generosa, mas, entre nós cá, bastante desordeira e de uma utopia feita preferentemente de emoção e carinho de visibilidade e espectáculo, mais do que de estudo e reflexão. Não, certamente, o que se passa com Francisco Assis, com a visão multifacetada, não ofuscada pelo radicalismo das ideias feitas, revelando o papel apaziguador da mulher de Soljenitsin - o denunciante da política criminosamente totalitarista de Estaline -  a qual defende o papel de Putin na condução dos destinos do seu mundo, a que o da Europa deverá estar vinculado, em defesa dos princípios de poder numa sociedade educada, o que Francisco Assis parece aprovar. O comentário seguinte presta-lhe homenagem, que transcrevo:

 Setúbal 22.03/18
Artigo de opinião lúcido. De rara acuidade, num Ocidente que se limita a copiar "ad nauseum"
preconceitos contra a Rússia, ainda vista como o Grande Inimigo do mundo ocidental. E há que ter presente: no mundo ocidental movem-se interesses geoestratégicos e industriais-militares que precisam de um ou de vários inimigos. Ou os povos poderão indignar-se (revoltar-se mesmo) contra os gastos militares em sociedades com tantas carências sociais. Só temos um planeta, a nossa casa comum. Muitos parecem esquecê-lo. Reforço a ideia: excelente artigo, tanto sobre a Rússia, como sobre o Brasil. Precisamos de gente que não tenha medo de pensar. José Gil dizia que o mal dos portugueses é a sua «não-inscrição». Neste artigo vemos alguém que se inscreve. É bom sinal.

Também num livro de António Ferro, que colho entre os que meu pai deixou, encontro as entrevistas daquele a Salazar, comprovativos do saber e inteligência do estadista, pese embora a ironia generalizada hoje contra António Ferro que se tornaria o “propagandista do Salazarismo”. A verdade é que, do que tenho lido, sinto quanto Salazar foi, de facto, um espírito arguto e erudito, e não resisto a transcrever um passo desse livro de António Ferro, denunciador dos ideais comunistas, que Soljenitsin tão bem explicitou no seu “Gulag”, entre outras obras que não li:

«MEDIOCRIDADE»
«Junto agora um post-scriptum ao capítulo:
- Não acha picante o falso ardor com que certas personalidades e órgãos da democracia defendem o comunismo? Como se o comunismo não fosse um dos maiores inimigos da democracia…
- Claro está, concorda Salazar. Quem defenda o comunismo, ou quem pretenda converter-se a essas ideias, tem de renunciar, se a sua atitude é sincera, à defesa da liberdade… Liberdade e Comunismo são duas ideias antagónicas.
Acrescento:
- Contradição tão assombrosa, afinal, como se essas personalidades e órgãos começassem, de repente, a defender a Ditadura…
…- Retórica, mentalidade de comício, processos eleiçoeiros, que nos inferiorizam, que são os maiores obstáculos para uma obra desempoeirada, renovadora e sã. Poinsard, que fez um inquérito à vida portuguesa há vinte e tantos anos, a convite do Sr. D. Manuel, viu-nos como somos, à luz duma boa observação. Fazendo justiça às nossas qualidades, acreditando no nosso futuro, ele impressionou-se principalmente com o nosso provincianismo, com a nossa mediocridade, mediocridade na indústria, no comércio, na agricultura, na vida política, no jornalismo, na arte e na literatura de então. Muito se tem falado desde esse momento, mas é preciso não parar, é preciso lutar continuadamente contra a falta de elevação nas ideias e nas atitudes, contra essa mediocridade de processos, que atinge, por vezes, as inteligências mais altas e os valores mais sérios…. » (António Ferro, "Salazar")

Sim, Salazar sabia, e hoje ainda confirmaria, e não só com o ensino como está, mas …

O artigo de  OPINIÃO de FRANCISCO ASSIS:

Da Rússia ao Brasil
Marielle Franco foi executada porque há uma parte significativa dos poderes fácticos brasileiros que se recusa a aceitar tudo aquilo que ela representava.
PÚBLICO, 22 de Março de 2018
1. Três dias depois da anunciada reeleição de Putin para a presidência da Rússia, Natalia Soljenítsin, a viúva do grande escritor que tanto contribuiu para a degradação da ideia comunista no Ocidente e para o fim da União Soviética, concedeu uma entrevista a um jornal diário francês. Natalia contribuiu significativamente para a construção da monumental obra do marido. Tal como ele de formação matemática, renunciou a uma brilhante carreira nesse domínio para se consagrar a um trabalho conjunto que adquiriu proporções extraordinárias.
O seu olhar sobre o presente russo é de tal ordem lúcido e penetrante que nos ajuda a compreender uma realidade que à primeira vista se nos revela deveras estranha. A sua análise começa por uma referência à interpretação que Alexander Soljenitsin fazia da revolução de Fevereiro de 1917 que aboliu o regime czarista e abriu as portas para uma frágil e muito curta experiência democrático-liberal. Essa interpretação assentava na tese da pré-existência de um confronto fatal entre o poder e os sectores mais educados da sociedade russa. Esse confronto revelou-se de tal forma radical que inviabilizou qualquer possibilidade de obtenção de um compromisso. Foi nesse contexto dramático que germinaram as condições favoráveis à instauração de um regime radicalmente novo de natureza totalitária e anti-humana. Passando para o presente, Natalia Soljenitsin considera que a Rússia tem como principal desafio precisamente o de evitar a reedição de um quadro de contraposição insanável entre aquilo que ela define como a sociedade educada e o poder. Por isso mesmo não se coloca numa posição de rejeição absoluta do actual poder que Putin encarna. Reconhecendo o seu carácter autocrático, ela entende que através do diálogo será possível encaminhá-lo num sentido democrático. Explica o sucesso de Putin pelos erros cometidos internamente na primeira fase do período pós-soviético e pela atitude arrogante adoptada pelos países ocidentais, a qual teve o efeito de provocar um sentimento de humilhação nacional. É particularmente dura em relação à NATO, nomeadamente no que se refere à forma como tratou a questão da Crimeia muito antes dos recentes acontecimentos que conduziram à reintegração deste território na nação russa.
Natalia Soljenitsin tem razão no diagnóstico que elabora sobre o passado recente e o presente, revela uma condescendência excessiva em relação ao poder autocrático de Putin, mas alerta para algo de extrema importância: o Ocidente não deve cortar as pontes para um diálogo com a Rússia. Putin tornou-se uma figura proeminente porque restaurou a primazia do poder central contra a arrogância de uma parte da nova oligarquia e impôs a ordem nas ruas. Fê-lo de uma forma autoritária, prescindindo da construção de um Estado de Direito, com o que isso significa de denegação do respeito pelos Direitos Humanos e de favorecimento de um clientelismo profundamente anti-democrático. Apesar de tudo isto ser verdade, e de dever ser devidamente denunciado e contrariado, o mundo Ocidental deve manter a preocupação de não atirar os russos para a área de influência chinesa. Para evitar que tal aconteça, exige-se um esforço diplomático especialmente subtil, firme na afirmação dos valores democrático-liberais e inteligente na compreensão da singularidade nacional de um país que ainda vive num período assombrado pela memória dos seus múltiplos traumas históricos. Não é fácil superar os efeitos provocados, entre outras coisas, por uma tragédia totalitária que ocupou quase todo o século XX.
Não é possível ter a certeza de que Natalia Soljenitsin tenha razão nas suas advertências e nos seus prognósticos, mas vale a pena meditar no que ela diz, até por respeito pelo que foi o seu percurso excepcional de grande combatente contra o totalitarismo soviético. O desastre russo seria também de um certo modo um grande desastre Ocidental. Talvez ainda possamos ir a tempo de o evitar.

2. É cada vez mais penoso escrever o que quer que seja sobre o Brasil. O assassinato da Vereadora Marielle Franco, ocorrido às nove da noite, em pleno centro do Rio de Janeiro, revela o grau de apodrecimento institucional a que chegou um país que é uma das principais potências políticas e económicas do mundo contemporâneo. Nalguns aspectos o Brasil aproxima-se assustadoramente do estatuto de um Estado falhado, incapaz de garantir a segurança dos seus cidadãos, completamente vulnerável na protecção dos defensores dos direitos Humanos. Marielle Franco foi executada porque há uma parte significativa dos poderes fácticos brasileiros que se recusa a aceitar tudo aquilo que ela representava: a emancipação dos habitantes das favelas, das mulheres, da população de remota origem africana, das minorias sexuais. Esse Brasil atávico e preconceituoso é o principal obstáculo à plena afirmação de um país que pelo seu outro lado criativo e ousado suscita a admiração de uma grande parte do mundo. A morte de Marielle foi especial, como singular foi a sua vida, e como tal despertou uma comoção universal única. Permitiu lembrar outras mortes mais anónimas, igualmente trágicas que têm marcado o quotidiano de um país imerso numa violência insuportável. O pior de tudo é que não se vislumbra qualquer sinal positivo para o futuro imediato do Brasil.

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