Camões era, na verdade, um
pinga amor atormentado, em busca de uma utópica felicidade que não soube
exprimir, ao que afirmou, nos seus versos, e que só as experiências de cada um farão
compreender na sua sublimidade e malogro. Leiamo-lo:
Enquanto quis
Fortuna que tivesse
Esperança de
algum contentamento,
O gosto de um
suave pensamento
Me fez que seus
efeitos escrevesse.
Porém, temendo
Amor que aviso desse
Minha escritura
a algum juízo isento,
Escureceu-me o
engenho co'o tormento,
Para que seus
enganos não dissesse.
Ó vós que Amor
obriga a ser sujeitos
A diversas
vontades! Quando lerdes
Num breve livro
casos tão diversos,
Verdades
puras são e não defeitos;
E sabei que,
segundo o amor tiverdes,
Tereis o
entendimento de meus versos.
Lembrei-me do soneto, não pelo seu tema de um Amor que no tempo de
Camões mal poderia aventurar-se por outro campo que não fosse o da
espiritualidade, mas a propósito do verso «Verdades puras são, e
não defeitos», que aplico à verrina
de um homem do nosso tempo, escritor de tanta sagacidade e coragem, para
desmascarar as perversões e hipocrisias deste seu tempo em que os instintos e a
má fé se combinam sordidamente, nas profusas manifestações da sua visibilidade.
Alberto Gonçalves é esse homem, mais uma vez um texto seu o demonstra, impiedoso e certeiro.
Uma vítima entre 60 mil
OBSERVADOR, 24/3/2018
Dado que Marielle Franco
partilhava uma religião que se limita a considerar a vida dos fiéis e a
desprezar as vidas restantes, o barulho selectivo e sonso em volta da sua morte
é inteiramente adequado
Há dias, o homicídio de
uma vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco, causou particular
consternação em Portugal. Da indignação nas ponderadas “redes sociais” a votos
de pesar no parlamento, o assunto dominou a actualidade durante os dois ou três
dias da praxe. Porquê? O que distinguia uma vítima de quem, suponho, 99,95 dos
portugueses nunca ouvira falar?
Não foi o facto de ser
brasileira. Em termos quantitativos, o Brasil é, com impecável avanço, o país
com mais assassínios no mundo, e o décimo quarto qualitativamente. A
cada ano, mais de 60 mil pessoas são por lá mortas a tiro ou métodos
alternativos, sendo o Rio um lugar bastante prolífico na matéria. A
circunstância de o Brasil possuir, desde o sr. Lula, uma legislação altamente
restritiva no que respeita à posse de armas de fogo é apenas um pormenor,
decerto irrelevante. Relevante é a habitual ausência de comoção deste lado do
Atlântico.
Não foi o facto de o
crime ter tido uma provável motivação política. Na vizinha Venezuela, são
frequentes as matanças por razões “ideológicas”, com ou sem aspas, e nenhuma
comove os portugueses “oficiais”. Mesmo no Brasil, e mesmo no universo da
política municipal, só em 2017 foram abatidos perto de 40 autarcas, de
filiações diversas e por motivos sortidos. Nem um suscitou a atenção da
Assembleia da República.
Não foi o facto de a
dona Marielle ser “favelada”, impostura repetida nos obituários e desajustada a
uma cidadã que trepou pela escada social e pela política. Além disso,
“favelados” a sério são alvos preferenciais da cultura de violência
predominante no Brasil e não consta que estimulem vigílias em Lisboa.
Não foi o facto de a
dona Marielle ser, conforme lembraram os “media” com curioso frémito, “mulher,
negra e lésbica”. Entre as resmas de cadáveres baleados ou esfaqueados no
Brasil, é estatisticamente impossível não haver milhares pertencentes a
mulheres, muitas delas negras, algumas lésbicas, cujo triste fim não mereceu
lamentos de cançonetistas e homenagem de deputados. Além disso, seria
grotesco que, nestes “inclusivos” tempos, o género, a “raça” ou a orientação
sexual influenciassem a piedade ou a indiferença das massas.
Não, senhor. O homicídio
da dona Marielle provocou rebuliço porque a senhora era “activista”, suave
código para “comunista” e autorização, ou ordem, para luto carregado. Uns
mandam e, por convicção, medo, contágio ou perturbação, os demais obedecem.
Tivessem as balas atingido um democrata comum, dos que prezam a liberdade e
ninharias afins, o caso passaria à obscuridade com discrição e a ajuda de dois
terços da AR: a unanimidade fúnebre abençoa unicamente os que combatem
injustiças discutíveis em prol de injustiças inomináveis. Absurdo? Nada. Dado
que Marielle Franco partilhava uma religião que se limita a considerar a vida
dos fiéis, e a desprezar as vidas restantes, o barulho selectivo e sonso em
volta da sua morte é inteiramente adequado.
Notas de rodapé:
1. Depois
do ministro das Finanças, soube-se que o dr. Costa também pediu bilhetes para a
bola. Em paragens menos folclóricas, o pedido seguinte seria o de desculpas, e
talvez o de demissão. Por cá, é uma tradição respeitável, um pretexto para
gracejos no parlamento, um pormenor imune a juízos de valor, uma simples
pincelada na vasta aguarela da portugalidade. O mistério nem é tanto o sermos governados
por burgessos, ou os burgessos se divertirem à nossa custa. O mistério é nós
gostarmos.
2. É como a
história do sujeito que faleceu com um resfriado agravado pelo camião que lhe
passou por cima. Já sabíamos que os incêndios do ano passado haviam sido
provocados por um raio despropositado, eucaliptos imaginários, a perfeita
“tempestade de fogo” (?), alterações climáticas, agiotas da madeira, o sr.
Trump, a incúria das populações, maluquinhos da aldeia, o governo de Passos
Coelho, a ausência de cabras “sapadoras”, a seca, a desdita, etc. Soube-se
agora de uma insignificância que é capaz de ter qualquer coisa a ver com o
assunto: entre Março e Outubro, o governo recusou total ou parcialmente sete
avisos da Protecção Civil para a necessidade de mais bombeiros e aviões no
terreno. No meio destas curiosas desavenças burocráticas morreram cento e
tal pessoas, fora trocos materiais. Das que sobreviveram, e a julgar pelas
sondagens, uma boa parte continua a apoiar o PS, e outra parte rechonchuda
apoia as seitas que apoiam o PS (PSD “moderado” incluído). São livres disso.
Não se livram é de confundirmos os lamentos pela tragédia com um cinismo cruel
e até um bocadinho demente.
3. Ao contrário de
alguns, não me parece mal que uma criatura como o sr. Fernando Rosas
ande a tossir palavreado pelas televisões e pelos jornais. Para ser sincero,
até acho pedagógico: a presença dele ilustra na perfeição o caldo de
subserviência e miséria a que chegou o chamado “espaço mediático” nacional. A
título de exemplo, há dias o sr. Fernando Rosas decidiu que o CDS só tem um
dirigente gay porque “é moderno”. Dos portentos intelectuais do BE, uma pessoa
habitua-se a ouvir quase tudo. Porém, nunca tinha ouvido que, à semelhança da
cor dos suspensórios do sr. Fernando Rosas, a homossexualidade é uma questão de
moda. A ser verdade, há sujeitos que, embora propensos a entusiasmar-se com a
Amy Adams, resignam-se ao apresentador Malato porque as tendências
Primavera/Verão assim obrigam. A ser mentira, não é, apesar de tudo, das
maiores proferidas por cabecinhas do BE. Claro que, na boca de um político
de “direita”, a frase seria uma exibição de ódio e intolerância. Na boca do sr.
Fernando Rosas, à solta na coutada do macho esférico, a atoarda passou, salvo
por uns exaltados que no Facebook exigem a punição da personagem.
Esquecem-se de que, dia a dia, hora a hora, instante a instante, a personagem
já sofre o pior dos castigos: ser o sr. Fernando Rosas.
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