quinta-feira, 29 de março de 2018

O imprescindível controlo



Os dois textos que seguem, de João Miguel Tavares, mais uma vez demonstram uma capacidade de reflexão pouco comum, apesar dos comentários daqueles em cujo espírito não penetram argumentos – provavelmente nenhuns nunca – mas sobretudo se pertencem a alguém não alinhado politicamente com esses, pese embora o pretensiosismo dessa justificação.
 O primeiro artigo é sobre alguém que foi um representante-mor da Justiça no seu país e se revelou apenas triste espécime representante de uma nação, ultimamente e cada vez mais mergulhada no dolo e na insanidade próprias da nossa pobre mediania que, naturalmente, esse tal contribuiu para acentuar. O segundo artigo, aceitando os malefícios do Facebook na manipulação das massas, pretende salientar a responsabilidade dos que o utilizam, e igualmente, como jovem moderno que JMT é, revelar outras projecções apensas a esse sistema, através do confronto com os outros media no seu começo - radio e televisão. Na realidade, em tudo o que se cria há facetas positivas e negativas, a questão está em saber controlar ou moderar, e o mesmo se passa com os remédios.
 Transcrevo um comentário apenso ao segundo artigo, que me parece completar e desenvolver o raciocínio de JMT, embora conteste o paralelismo do Facebook com os media, por aquele dar voz a manifestações do egocentrismo desordeiro e pouco educado, contrariamente aos media, com os seus projectos específicos de orientação e informação.

OPINIÃO
Foi isto um procurador-geral da República
A entrevista a Pinto Monteiro mostra como uma pessoa com o seu perfil pode ser uma desgraça à frente do Ministério Público, e demonstra a importância fulcral de reconduzir Joana Marques Vidal no seu cargo.
PÚBLICO, 6 de Março de 2018
A entrevista que Fernando Pinto Monteiro concedeu ao PÚBLICO e à Rádio Renascença na semana passada é a mais reveladora de toda a sua carreira. Ela demonstra, ainda que de forma involuntária, as razões por que Pinto Monteiro assumiu o papel de guarda-costas oficioso de José Sócrates entre 2006 e 2011, e por que se afundaram no Ministério Público todas as investigações que envolveram o então primeiro-ministro.
Sobre as mentiras de Pinto Monteiro nessa entrevista já Luís Rosa escreveu um excelente texto no Observador (O legado de Pinto Monteiro). E sobre tantos aspectos ainda por esclarecer da sua nomeação – como a relação de proximidade de José Sócrates com o seu irmão, o professor de Direito de Coimbra António Pinto Monteiro, ou a possibilidade de ter sido Proença de Carvalho a sugerir o seu nome – já Vítor Rainho escreveu um bom artigo no Sol (Um procurador que gosta de José Sócrates). Eu prefiro chamar a atenção para dois aspectos que esses textos não desenvolvem: os seus tristes comentários sobre o processo Face Oculta; e as barbaridades que disse como se fossem banalidades, tão sintomáticas do seu carácter.
Quanto às famosas destruições das escutas do processo Face Oculta, o ex-Procrador-geral da República admite na entrevista que delas constam a venda da TVI, pelo que se pressupõe que Sócrates foi mesmo apanhado a discutir os seus detalhes. Pinto Monteiro desvaloriza esse facto com o rigor habitual – “a estação de televisão de que está a falar já foi vendida e revendida 30 vezes!” –, e utilizando um argumento decisivo: “Aquilo não tem nada a ver com crime de atentado ao Estado de Direito! Sabe o que é um atentado ao Estado de Direito? Dou-lhe um exemplo: é um Governo acabar com o Tribunal Constitucional.”
Eis um exemplo extraordinário, que entronca numa interpretação que Freitas do Amaral já tinha desenvolvido em 2010 nas páginas da revista Visão. O texto chamava-se Decifrai o Procurador e nele Freitas acusava o procurador-geral da República de ter optado “por uma interpretação muito restritiva do conceito de atentado ao Estado de Direito.” Ou seja, Pinto Monteiro mandou destruir as escutas não porque elas fossem inocentes, mas porque no seu entendimento um atentado ao Estado de Direito envolve a destruição de uma instituição – conspirar sobre a sua venda parece ser insuficiente.
Esta interpretação tão estrita daquilo que constitui uma conduta criminosa, e esta visão tão lata daquilo que é permitido a quem ocupa cargos de poder, está espalhada por toda a entrevista. Pinto Monteiro assume que atendeu chamadas de Rui Rio a queixar-se da justiça (“telefonava-me de vez em quando a protestar contra as fugas”) e que isso não tem mal algum; declara que ir a lançamentos de livros de políticos sobre os quais tomou decisões judiciais é a coisa mais banal do mundo; confessa ter sido “principescamente” tratado quando viajou até Angola para assinar protocolos de cooperação e não lhe passa pela cabeça que ser “principescamente” tratado levante problemas éticos.
Não creio que Pinto Monteiro algum dia tenha sido corrompido por dinheiro. É o próprio a autocorromper-se por vaidadedeslumbrado pelo poder, fascinado por políticos, e, como qualquer bom português, muito amigo dos seus amigos. Embora lamentável a vários títulos, a entrevista a Pinto Monteiro tem esta dupla vantagem: mostra como uma pessoa com o seu perfil pode ser uma desgraça à frente do Ministério Público, e demonstra a importância fulcral de reconduzir Joana Marques Vidal no seu cargo.

O Facebook não ganha eleições
Convém denunciar as más actividades do Facebook sem transformar os seus utilizadores em meras marionetas de Mark Zuckerberg.
PÚBLICO, 22 de Março de 2018
Tenho uns amigos que resmungam diariamente contra o Facebook, e que consideram as redes sociais a maior praga jamais saída de Silicon Valley. Eu argumento que é apenas um meio, um instrumento semelhante a uma faca afiada, que tanto pode servir para esventrar o próximo como para cortar bifes. As facas foram usadas ao longo da história para assassinar milhões de pessoas, mas nem por isso as deixamos de utilizar na cozinha. São-nos úteis, desempenham um papel insubstituível e, em última análise, são neutras — a responsabilidade pela sua boa ou má utilização é de quem segura a faca, não de quem a fabricou.
Como é evidente, se as facas são reguladas — lâmina igual ou superior a dez centímetros é classificada como arma branca e a sua posse, fora do contexto de um talho ou de uma cozinha, ilegal —, também o Facebook deve cumprir regras estritas no domínio da privacidade dos seus clientes ou da propagação deliberada de fake news. Contudo, convém não sermos demasiado literais na interpretação do famoso “o meio é a mensagem” de McLuhan, concluindo a partir da eleição de Donald Trump — mensagem errada para 95% dos jornalistas e opinion makersdo planeta, eu incluído — que tal se deveu à manipulação das cabeças mais frágeis da população americana, via Facebook. Apesar de tudo, e mesmo discordando delas, tenho as cabeças da população americana em muito melhor conta.
As práticas lastimáveis da empresa Cambridge Analytica, que têm estado a ser publicamente desmascaradas, são com certeza muito relevantes. A forma como os dados pessoais de 50 milhões de utilizadores foram parar às suas mãos representam uma enorme falha de segurança do Facebook, que nos deve preocupar a todos — e se um dia se descobrir que a empresa do senhor Zuckerberg esteve envolvida no tráfico de dados privados deve ser punida por isso. O modo frenético como Stephen K. Bannon circula pelo mundo numa jihadpolítica e cultural mortinha por aceder directamente ao cerebelo de cada eleitor e despejar lá para dentro a sua propaganda é com certeza merecedora de atenção. Mas saltar daí para mais um discurso apocalíptico sobre um novo meio de comunicação não só me parece brutalmente exagerado como francamente aborrecido.
Todos nós já ouvimos esta conversa nos primórdios da rádio — veja-se o pânico causado pela encenação da Guerra dos Mundos de Orson Welles em 1938 —, tal como a ouvimos com o advento da televisão — recorde-se o momento em que um muito transpirado Richard Nixon perdeu o primeiro debate televisionado, e de seguida as eleições, para um jovem, calmo e confiante John Kennedy, em 1960. Talvez a História venha a confirmar que em 2016 foi via Facebook, e graças às fake news, que Trump venceu as presidenciais. Mas em todos estes casos, os meios utilizados, embora importantes, nunca deixaram de ser instrumentais.
Admito que o título deste artigo pudesse ser mais exacto: o Facebook ganha tanto eleições como a televisão, a rádio ou os jornais. Posso até admitir que o seu poder de persuasão é maior, e que chega com mais eficácia a milhões de eleitores. Mas isso não modifica a natureza do exercício da propaganda. A Cambridge Analytica é uma agência de comunicação política 2.0 sem escrúpulos — nem mais nem menos do que isso. É preciso bem mais do que um feed amestrado para conseguir manipular milhões de votos. Convém denunciar as más actividades do Facebook sem transformar os seus utilizadores em meras marionetas de Mark Zuckerberg.

Comentários de ahok:
 23.03.2018
1 - Aconselho as pessoas a verem a "quadratura do círculo" da sicnotícias de 22 Março 2018. Pacheco Pereira sintetiza bem o que é o facebook e as redes sociais. Já há doenças relacionadas com as redes sociais. As redes sociais causam adição às pessoas que não conseguem viver se não tiverem a vida exposta na net ou que sentem sensação de felicidade quando entram no facebook. Pior mesmo é que geração está a ser criada quando se está tão dependente da rede?
2 -  Os problemas do facebook (e das redes sociais em geral) são mais profundos e merecem uma análise social e psicológica sobre as consequências e perigos que geram. Criar um mundo superficial e virtual de amigos e de popularidade baseado em likes é nefasto. Não se pode comparar o facebook aos media tradicionais (muito menos a uma faca). Estes têm o princípio de informar de forma isenta e com respeito a um código deontológico (embora nem sempre o façam é certo) ao passo que as redes sociais são a voz feroz da população capaz de engolir quem tenha opiniões diferentes das massas (Umberto Eco disse: "as redes sociais deram voz aos imbecis")



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