De grandeza, sobre um homem de quem o historiador Jaime Nogueira Pinto revela
o gabarito e a odisseia, ao seu modo sereno e certeiro, nas descrições do
carácter e do empreendedorismo, a que acrescenta outros nomes que a pátria de
Abril, ingrata e tacanha, escorraçou. De pequenez, sobre um caso – mais um – de
um arrivista fraudulento, bem específico dos novos modelos que o 25 de Abril
possibilitou. Este texto último, da autoria de João Miguel Tavares, jornalista
e analista menos sereno, mas igualmente movido por ideais de respeito por
valores de honestidade e competência real que deseja para o seu país.
Um país que arde e se vai definindo num alarido de
pobreza imensa. Bem hajam os que se afastam dessa pobreza e lutam
herculeamente, lavando os estábulos. Mas os próprios rios vão poluídos, a
esperança voando, à medida, nada é já como nos tempos de Augias, de rios ainda límpidos...
Champalimaud: o grande industrial
OBSERVADOR, 19/3/2018
António Champalimaud nasceu há cem anos. O seu modo frontal contrastava
com um meio de gente prudente até à paralisia de voz e gesto, sempre em cima do
muro, a ver para que lado dava jeito cair.
Faz hoje cem anos que nasceu António Champalimaud. É uma das efemérides centenárias deste ano de
2018 que, para mim, tem várias: no dia 27 deste mês faria cem anos Luís de
Avillez e, a 17 de Setembro, Alberto Franco Nogueira; depois, no dia 14 de Dezembro, são os cem
anos da morte de Sidónio Pais, o “Presidente Rei” assassinado aos 46 anos
– um centenário que interessará ou deveria interessar a todos os portugueses.
É um ano cheio de memórias, de homens que foram importantes na minha
vida, humana e profissionalmente, na formação política e na comunidade
familiar. Em relação a todos tenho um sentimento de amizade e gratidão pelo que
partilhei e aprendi com eles. E também respeito e admiração.
Conheci António Champalimaud no nosso comum exílio brasileiro. Eu vinha de Angola e do exílio na África do
Sul, ele de Portugal onde o seu grupo de empresas tinha sido nacionalizado –
a Siderurgia Nacional, os Cimentos Leiria e Tejo, o Banco Pinto e Sottomayor, a
Companhia de Seguros Mundial. Não parecia abalado com todos estes revezes
da fortuna. Até porque conhecera outros: em 1969 fora obrigado a sair do país
“a salto” (a “salto” de avião mas, de qualquer modo, a salto) no curso do julgamento
do caso da herança Sommer para só voltar no Outono de 1973 via Moçambique, a
terra de que mais gostava. E sairia outra vez nas vésperas do 11 de Março,
depois de ter conhecido pessoalmente Otelo Saraiva de Carvalho – teria partido
antes se o tivesse conhecido antes, diria ele depois à pessoa que organizara o
almoço e os pusera em contacto.
No Brasil, ocupava o vigésimo andar da SOEICOM, na Avenida Rio Branco,
no coração do Rio de Janeiro, com antigos colaboradores de sempre, como o
João (“Jana”) Raposo Magalhães e o José Luís Fevereiro, e amigos, como António
Bustorff Silva. Também lá estive durante quase um ano a trabalhar com
António Champalimaud (AC, para os colaboradores seniores) num gabinete que
partilhava com Burstoff e Fevereiro. Pude, por esse tempo e ao longo dos
quase trinta anos que ele ainda viveu, conhecê-lo bem. Foi o grande
industrial português da segunda metade do século XX. Escrevi-o no Expresso
quando ele morreu, no dia 11 de Maio de 2004, e volto a lembrá-lo agora, porque
o país é desmemoriado e ingrato para com os seus grandes, para com os
“fazedores”, sobretudo quando são incómodos, que o são quase sempre.
A indústria era o que lhe interessava; a indústria, a fábrica, fazer
coisas, engenheiros, operários, trabalho, economia real. Quando, muitos anos
depois, comprou o banco, disse-me: “Jaime, se eu tivesse menos 10 anos, voltava
para a indústria! A indústria é que tem graça, fazer coisas. Isto – os bancos –
é ganhar dinheiro com dinheiro, não tem graça nenhuma!”
Como os seus antecessores na indústria – o conde de Burnay e Alfredo da
Silva – era mais ou menos detestado por parte da sua classe social. Mesmo para
além das guerras familiares e rivalidades económicas e financeiras, o seu modo
frontal, directo, decidido, às vezes brutal, a sua “mania do trabalho”,
contrastava com um meio de gente prudente até à paralisia de voz e gesto,
socialmente correcta, sempre em cima do muro, a ver para que lado dava jeito
cair.
Era o tempo da segunda industrialização e do
início de um ciclo de oiro do desenvolvimento económico-social, que acabaria
entre a crise energética de 73 e o 25 de Abril. Um tempo de grandes patrões da indústria e
da banca – Jorge e José Manuel de Mello, Manuel Boullosa, Manuel Queirós
Pereira, Manuel Espírito Santo, Artur Cupertino de Miranda e outros. Apesar da
guerra de África – ou devido a ela – o país mudava em mentalidade, e a
sociedade portuguesa ia absorvendo o que acontecia lá fora. (A ideia de
que foi o 25 de Abril que mudou socialmente os hábitos e os costumes é uma
visão ideológica de propaganda que toma o efeito por causa e não quer perceber
que foi o contrário: precisamente porque a sociedade já estava em mudança é que
veio a mudança política… que, curiosamente, interrompeu o tempo de crescimento
e desenvolvimento).
O golpe de Estado-revolução não poupou os
grupos económicos, ainda que os seus líderes tivessem prestado lip service à nova situação. Foi um processo a
contramão da História: quando o socialismo soviético e leste-europeu entrava em
crise disfuncional e a China estava nas vésperas das reformas de Deng Xiao
Ping, instaurava-se aqui um socialismo mais ou menos burocrático, oportunista e
folclórico, cujas consequências se prolongariam e ficariam connosco muito para
além do tempo e dos eventos que lhe deram origem.
António Champalimaud, a
voltar do exílio mexicano, aterrou aqui poucos meses antes deste PREC. Quem
conheceu o homem e a obra, nos altos e baixos de uma vida de fazedor de coisas
em três continentes, coisas que os outros se iam encarregando de desfazer e
destruir, perceberá melhor a sua dimensão humana. António Champalimaud era um
caso raro de alguém que, nascido na boa sociedade, se fez a si mesmo, usando os
obstáculos, as dificuldades, as contradições como matéria-prima dos seus
projectos e vitórias.
Como o Ulisses na
narrativa homérica, era plurimetis, homem de muitas
artes e ofícios: industrial pioneiro, autodidacta, agricultor, velejador,
caçador, piloto de automóveis e de aviões. Solitário e senhor de contradições,
mas também homem de família e de sociedade, coleccionador e esteta mas capaz de
radical austeridade, António Champalimaud era racional, frio, empreendedor, sem
estados de alma, mas capaz de paixões e devoções. E sendo cosmopolita e
pragmático nunca deixou de ser patriota e sensível às grandezas e misérias do
império e à sua perda.
Tinha uma silhueta de D.
Quixote: magro, seco, com o riso carnassier. Em
guerra com meio mundo e às vezes com o mundo inteiro – com a família própria e
por afinidade, com governos e concorrentes –, quase parecia, pela tenacidade e
voluntarismo com que mantinha posições, que amava o conflito pelo conflito, que
gostava mais do combate do que da vitória. Até porque quando ganhava virava-se
para outras metas, partia para novas fronteiras.
Só assim foi possível a
sua ascensão relâmpago na industrialização do país: dos cimentos para o aço, do
aço para a banca e seguros, da Metrópole para o Ultramar e para o Brasil; e,
por fim, regressado ao rectângulo original, levar os últimos anos a refazer
fortuna. Depois, confrontado com perdas de filhos e com uma cegueira
progressiva, foi-se tornando mais tranquilo, menos agressivo – mais humano,
diriam alguns.
E dessa humanidade e
reconciliação final surgiu a ideia de uma grande fundação que levaria o nome da
família, dos seus pais. Já antes contribuíra generosamente para a Fundação de
Aljubarrota, talvez para aquietar a consciência ou compensar as críticas de ter
vendido o banco Totta a Emilio Botin, do Santander. Mas, com a Fundação
Champalimaud, criou uma instituição pioneira, exemplar na luta contra um dos
maiores inimigos da humanidade. É um sinal de grandeza póstuma, de um grande
fazedor que também teve a sua quota de sofrimento. E é obra. Obra real, física,
concreta, É um sinal de grandeza póstuma, de um grande fazedor que também teve
a sua quota de sofrimento. E é obra. Obra real, física, concreta, como ele
gostava.
OPINIÃO
Barreiras Duarte ainda é secretário-geral do PSD?
Este é mais um caso de um político a inventar habilitações que não tem,
e de um líder partidário que, obrigado a escolher entre um camarada e a
verdade, fica com o camarada e sacrifica a verdade.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 13 de Março de
2018
Qualquer pessoa que se dê
ao trabalho de ler a investigação publicada no jornal Sol sobre a relação problemática de Feliciano
Barreiras Duarte com a Universidade de Berkeley conclui de
imediato duas coisas: 1) o ainda secretário-geral do PSD não se limitou a
embelezar o seu currículo – existem suspeitas sérias de que tenha cometido um
crime de falsificação de documento; 2) as explicações que deu até ao momento
são péssimas, o que significa que deixou de ter quaisquer condições para se
manter como secretário-geral dos sociais-democratas. Já ninguém neste país
aguenta mais políticos a inventar habilitações que não têm e a passearem um
penacho académico obtido de forma fraudulenta. Que Rui “Banho de Ética” Rio não
tenha percebido isso é apenas mais uma prova de que a nova forma de estar na
política que ele prometeu ao país é extremamente parecida com a antiga.
Feliciano Barreiras
Duarte andou anos a apresentar-se como “visiting scholar” de Berkeley
sem nunca lá ter posto os pés – é mais ou menos o mesmo que o caro leitor
assumir que tem um doutoramento em Oxford após passear pelos seus jardins;
recorreu indevidamente a esse estatuto no relatório que acompanhou a sua tese
de mestrado; para provar a sua ligação à universidade americana apresentou
ao Sol um certificado de Berkeley
escrito em português, cheio de linguagem pomposa e de incongruências (o
remetente do envelope não coincide com o da carta), cujo conteúdo é considerado
falso pela pessoa que supostamente o assina (“estou pronta a declarar em
tribunal que esse documento é uma falsificação”, diz a professora de Berkeley),
e que terá viajado dos Estados Unidos até Portugal dentro de um envelope americano
sem selo nem carimbo. Parece-lhe uma história credível?
MP “deve” investigar denúncias ao
currículo de Barreiras Duarte, defende vice da Ordem dos Advogados
A Rui Rio pareceu. Depois
desta avalanche de factos muito mal explicados, ele resumiu o caso da seguinte forma:
“Há um aspecto do seu currículo que estava a mais, não estava preciso, e ele
corrigiu.” Tudo se resume, portanto, a um caso de falta de rigor. E Feliciano
Barreiras Duarte, claro está, avançou com a tese da conspiração ao DN: “São notícias para incomodar a direcção do PSD em
funções.” Como quem diz: isto foi cozinhado entre Luís Montenegro, Carlos Abreu
Amorim e Hugo Soares. “Esta semana”, continuou Feliciano na esteira de John le
Carré, “realizaram-se almoços entre algumas pessoas que não gostam da actual
liderança. Criaram-se factos. E o corolário foi aquilo que o jornal publicou.”
Bravo, Feliciano! José Rodrigues dos Santos já está a tomar apontamentos para o
seu próximo romance.
Infelizmente, o
secretário-geral do PSD é tão bom a adornar currículos como a inventar conspirações.
Sebastião Bugalho, o jornalista que investigou o caso, disse que o confrontou
com a informação há mais de duas semanas. A ter de haver uma conspiração seria
a favor de Feliciano por parte de quem fez a primeira página do Sol: a manchete era tão simpática para ele –
“Secretário-geral de Rui Rio rectifica currículo” – que até serviu de guião
para o líder do PSD. Sim, eu sei que Feliciano Barreiras Duarte é colunista
do Sol, mas ou se faz jornalismo ou
não se faz – “rectifica currículo” é um título patético tendo em conta a
gravidade das acusações. Este é mais um caso de um político a inventar
habilitações que não tem, e de um líder partidário que, obrigado a escolher
entre um camarada e a verdade, fica com o camarada e sacrifica a verdade. Conspiração? A mim soa-me a tradição.
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