“Coisas que temos pudor de
mostrar seja a quem for” e se o fazemos – fá-lo Maria João Avillez e sempre
bem – é com mescla de tristeza e de raiva, pois está visto que não melhora,
questão de educação. A incúria, a grosseria, o desprezo, o desmazelo, o protelamento
no cumprimento, o não cumprimento. De momento, a sua crítica aplica-se ao Governo,
que tenta atamancar, e impõe normas para o povo cumprir, tenha ou não recursos
para isso.
Mas lembram-se da Lisa? A Lisa
era uma alemã, das que fugiu da guerra do Hitler e se refugiou, primeiro na
África do Sul, e depois em Moçambique, de onde retornou, tal como nós. Um dia,
foi à Alemanha, deixando por cá a família portuguesa. De lá escreveu cartas
saudosas deste país de pessoas desleixadas, pois por lá, bastava uma ligeira
infracção – um carro estacionado temporariamente num oportuno espaço vazio de
um prédio, que logo o polícia multava, chamado instantaneamente pelo atento dono
do espaço. Não se demorou a Lisa na sua terra alemã, regressando ao desmazelo
do “far niente” lusitano, impertinente, conquanto menos drástico que o das
pessoas educadas na rigidez das normas.
Desprotecção, zanga, melancolia
OBSERVADOR, 7/3/2018
Como “a educação dos portugueses é o medo à polícia”, pode ser que tanta
“contravenção” e o seu súbito estatuto de “enteado” vença o automobilista. Mas
o combate é miseravelmente desigual.
1. Temporal. Estragos. A fúria do vento e o rugido rouco do mar a
varrer o país de norte a sul com o seu cortejo de consequências próprias das
iras da natureza. O Estado entra em cena, quase sempre mal, raras vezes bem e a
tempo, a zanga dos elementos terá a resposta habitual: uma cadeia de
boas vontades de populações, vizinhos, familiares, até de gente que “ia a
passar”, sempre mais presente que a resposta organizada e operativa do país e
do seu Estado.
Não é porém preciso ir tão longe, basta atentar no que ocorre entre nós
quando simplesmente chove no inverno, (mesmo que hélas não chova o suficiente):
o trânsito logo pára, não há um táxi, as poças de água surgem por todo o lado,
algumas estações de metro têm o pavimento tão molhado que torna difícil a um
desprevenido transeunte não partir pernas e pés, começam a ouvir-se os silvos
das ambulâncias, os parques de estacionamento transformam-se em lagos brilhando
enganadoramente no chão, registam-se “ocorrências” de inundações, começa a
tocar o telefone nos bombeiros. Lisboa bloqueia. Que fragilidade é esta? Eu não a vejo em
lado nenhum em mais nenhuma outra cidade europeia.
Uma coisa são acidentes da natureza, condições meteorológicas
excepcionais como este último fim-de-semana; outra, a normal rotina do Inverno.
A chuva, misteriosamente de resto, tem aqui carácter de acontecimento onde
desaguam tristíssimos sinais de subdesenvolvimento e de igual desprotecção. Uma
estação de metro alagada onde um idoso – ou seja quem for – tem de andar com
mil cuidados para evitar o risco de se partir aos bocados, exibe um
entendimento de serviço da parte do Estado que identifica um país. E lá está
aquela irremediável certeza que ciclicamente reeditamos: o Estado português é desprotector. Seja
nas grandes catástrofes, seja na mais comezinha das circunstâncias da vida –
como chover quando é suposto – o Estado, de tão frágil, é inconfiável.
E já não falo das “n” estações de metropolitano com as escadas rolantes
avariadas porventura até á eternidade, porque isso se situa no habitual perímetro do desmazelo traduzido
na congénita falta de respeito do Estado pelo cidadão (pagador-de-impostos),
limito-me simplesmente ao banal factor chuva e às suas pasmosas consequências.
A que atribuir que entre nós se colapse tão facilmente e que alguns serviços
da administração pública cumpram tão dificilmente os serviços mínimos?
(Em contrapartida há zelo, eficácia e empenho na perseguição aos
automobilistas. A condição de automobilista, malvista pelos poderes, parece
aliás compulsivamente, em extinção, como se andar em carro próprio fosse uma
vergonha, um abuso, um pecado, não se percebe bem. À polícia só lhe falta morder-nos se
ultrapassamos trinta – 30, ouviram bem? – quilómetros/hora em certas artérias;
se encostamos o carro por uns breves momentos abatem-nos com o olhar, a seguir
ouvimos uma duvidosa prelecção sobre civismo, depois vão-nos aos euros. Suspeito
que haja ordens “de cima” para o excesso destas operações, é preciso a todo o
custo ir buscar o dinheiro que não há ao bolso do contribuinte, todos os
pretextos servem mesmo que maus. Como, porém, “a educação dos portugueses é
o medo à polícia” [Eça?] pode ser que o sufoco das “contravenções” e o seu
súbito estatuto de “enteado”, vença o automobilista. Mas o combate é
miseravelmente desigual.)
2. Quem tenha árvores no jardim, uma
propriedade no campo ou dois palmos de terra deve estar quase a endoidecer:
chega a ser alucinante a descoordenação entre os diversos serviços públicos que
se afadigam em prevenir futuros incêndios. Não discuto obviamente a indispensabilidade da
empreitada – pelo contrário, agradeço-a –, apenas me aflige a sua
atabalhoada inoperância. A correspondência que recebemos cá em casa é
contraditória, há intimações e recomendações absurdas, há autoridades que não
hesitam em ameaçar em vez de explicar, quando se pedem esclarecimentos as
respostas destoam de serviço para serviço.
Com o afã de mostrar trabalho e o pânico de ser acusado de não
estar a fazer nada, governo e governantes, autarcas, autoridades, polícias,
afogam-se em ordens e contra ordens que constituíriam porventura um animado
vaudeville, mas que temo estarem a semear um quadro demasiado confuso e
desorganizado tal a ausência de um fio condutor lógico nesta situação de
“prevenção”. E tal a falta de clareza nas recomendações do que
deve ser a nossa actuação como cidadãos responsáveis.
3. Mas consegue haver pior: são os relatos – e o que é a pungência da
miséria senão isto? – dos que ficaram para trás. Para trás da geografia, dos
auxílios, dos subsídios, da atenção e até… sequer do acesso a uma linha
telefónica ou de rede para um telemóvel! Basta ler o eloquente – porque
absolutamente verídico – testemunho que sobre isto mesmo aqui deixou há dias
Luís Rosa para alcançar a trágica dimensão do que falo. Passadas as
lágrimas, o horror e os abraços dos fogos do verão, logo se reinstalaram
desmazelos, esquecimentos, incúrias. Parece que até hoje e sem desmentido. Estado
desprotector.
4. Estava eu nesta melancolia amaldiçoada pelo cinzento quadro
alemão (a grande coligação jamais voltará a ser uma grande coligação) a
deprimente trapalhada italiana, o triste resultado de alguns Óscares e o
enlouquecido vento lisboeta quando a vida me abriu um doce entre parêntesis.
A vida e o pintor Manel Baptista. A história é boa e é disso que precisamos:
boas histórias escritas pelos outros. O caso é que o pintor tem um
cardiologista dado às artes. Um dia, um dos seus pacientes, o fotógrafo
Mário Cabrita Gil auto fotografou-se na qualidade de recém operado. Atrás dessa
foto vieram outras, o médico – José Miguel Santos – sugeriu-lhe que as
mostrasse, ali mesmo, no consultório. Como as cerejas, houve mais arte, desta
feita a de Manuel Baptista, que “tinha umas coisas” no atelier lisboeta (o
outro fica em Faro). Revisitando-se a si próprio, olhou para elas,
encontrou-lhes uma coerência – a paisagem –, articulou as “Falésias” que
debruam a costa do Algarve (tinta da China com acrílico) com aguarelas onde é
questão – ou achamos que é questão – de largas folhas esbatidas, troncos de
árvores, plantas. Pintadas com cores amáveis delas irradia uma luz
mediterrânica (“usei acrílico aguado que me dá o efeito aguarela mas com outra
luminosidade e outra intensidade”) e de parede para parede, seguimos felizes o
fio da concreta, real, harmonia que as une.
“Foi tudo quase um acaso…”
Foi? Nunca se sabe o que vai na cabeça desse departamento a que me
apetece chamar glorioso que são os artistas, abençoados sejam mais os seus
acasos”.
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