A capa do Público de 27/2 apresenta
o quadro de Vermeer “Rapariga com brinco de pérola”, excelente apelativo
para expressivo texto no interior do jornal. E de facto, o artigo de Lucinda Canelas, «Como é que Vermeer pintou esta Rapariga? A ciência vai tentar
explicar, 350 anos depois» é ilustrativo não só do valor e
reconhecimento mundial do quadro, que, encontrado em mau estado de conservação,
é restaurado e agora sujeito técnicas de análise, como, pelo mistério e beleza
da modelo, logo originando precioso filme, onde o quadro – certamente que em
reprodução – foi vastamente visto e romanceada a história da sua modelo,
humilde mas sensível colaboradora do seu patrão Vermeer no fabrico das tintas e
objecto de intenso ciúme da mulher deste. O meu grande espanto e prazer foi,
contudo, ter reconhecido no actor com o papel de Vermeer, Colin Firth,
tantas vezes visto na série “Orgulho e Preconceito”, ao lado da tão expressiva Jennifer
Ehle, de uma história de amor do século XIX. A televisão fez-me reencontrar
Colin Firth em vários outros filmes e o prazer pela sua actuação, geralmente
humorística - “The importance of beeing Earnest”, os "diários de Brigit Jones", "Mamma Mia", "Nanny McPhee" e outros mais – proporcionam facetas de transporte para
mundos de fantasia que nos põem de bem com a vida. Momentaneamente, que esta é mais dada à desgraça.
Como é
que Vermeer pintou esta Rapariga? A ciência vai tentar explicar, 350 anos
depois
Os cientistas que agora vão estudar este retrato foram buscar tecnologia
de ponta e querem saber que materiais usou este artista do século de ouro
holandês. No fim, garantem, será como ver Vermeer trabalhar.
PÚBLICO,
27 de Fevereiro de 2018
Passaram quase 25 anos desde que Rapariga com Brinco de Pérola,
uma das mais celebradas pinturas da idade de ouro holandesa, esteve sob o
microscópio, sujeita ao escrutínio de historiadores de arte e restauradores. Agora,
este retrato de Johannes Vermeer, imagem de marca do museu
Mauritshuis, em Haia, volta ao estirador para ser examinado com recurso às mais
modernas tecnologias. E o que querem com este diagnóstico os investigadores? Perceber,
explica a galeria no seu site, como foi pintado e com que materiais, nada
mais.
Os trabalhos de análise, todos com base em técnicas não invasivas, vão
prolongar-se até 11 de Março e decorrerão à vista do público. Em vez de pegar
na tela e de a levar para os laboratórios deste museu que guarda uma das
melhores colecções de pintura holandesa do mundo, a equipa do Mauritshuis
resolveu construir na sala onde habitualmente é exposto uma caixa de vidro em
que os conservadores vão trabalhar 24 horas sobre 24 horas, actualizando
diariamente os relatórios da intervenção, dando conta do que vão descobrindo
sobre os métodos daquele que permanece como um dos mais misteriosos mestres da
pintura do Norte no século XVII.
O projecto, a que deram o nome de Girl in the Spotlight (qualquer
coisa como “Rapariga sob os holofotes”) e que não inclui quaisquer trabalhos
de restauro e conservação, recorre a uma série de técnicas exploratórias
(tomografia de coerência óptica, microscopia digital, fluorescência de macro
raios-X), algumas delas do campo da medicina, para reunir um enorme manancial
de informação que não implica qualquer recolha de amostras para saber mais
sobre os óleos e pigmentos que o artista usou há 350 anos.
Abbie Vandivere, conservadora-chefe de pintura da Real Galeria de
Pinturas do Mauritshuis, nome oficial do museu, dirige esta equipa de
investigação que inclui técnicos de várias instituições nacionais e
internacionais, como as universidades de Antuérpia, Delft e Maastricht, a
National Gallery de Washington e o Instituto dos Países Baixos para a
Conservação, Arte e Ciência, que traz consigo o Rijksmuseum.
“É uma honra colaborar com uma equipa como esta”, disse Vandivere, num
comunicado do museu, congratulando-se com o facto de à experiência dos
especialistas poder juntar “tecnologia de ponta”: “Durante duas semanas o museu
terá um dos centros de pesquisa mais avançados do mundo.” No fim deste
projecto, acredita a conservadora, Rapariga com Brinco de Pérola estará
certamente entre as “obras mais bem documentadas” de sempre (na corrida a este
“título” estarão, certamente, Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, e Guernica,
de Pablo Picasso).
No final, explicou ao diário norte-americano The New York Times Joris
Dik, um investigador da Universidade de Tecnologia de Delft que integra a
equipa, “teremos uma espécie de Google Earth em que se pode clicar nas
distintas camadas e ampliar ou reduzir para ver diferentes elemetos em
cada uma delas”.
Rapariga
com Brinco de Pérola (c. 1665) está desde 1881 em
exposição no museu de Haia, instalado num edifício do século XVII no centro da
cidade e inaugurado há quase 200 anos. Teve, no entanto, de esperar mais de cem
para se transformar na estrela que é hoje, sendo o principal íman para boa
parte dos 400 mil visitantes que o Mauritshuis recebe todos os anos, apesar de
na sua colecção se encontrarem outras pinturas incontornáveis da arte holandesa
do século XVII, como A Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp,
de Rembrandt,
e O Pintassilgo, de Carel
Fabritius, um homem que teve o autor de A Ronda da Noite como mestre
e Vermeer como aluno.
À grande popularidade
que Rapariga com Brinco de Pérola agora
tem não será estranha, porventura, a digressão que fez, com outras obras desta
galeria, pela Itália, pelos Estados Unidos e pelo Japão quando
o museu, privatizado em 1995, fechou durante dois anos para ampliação.
Um romance e um filme
A
obra de Johannes Vermeer (1632-1675) – um óleo sobre tela com
dimensões modestas (44,5X39 cm) – foi comprada num leilão no final do século
XIX por pouco mais de dois florins (hoje, cerca de um euro) e em muito mau estado.
Só em 1994 seria objecto de uma complexa operação de restauro que lhe deu o
aspecto – e o brilho – que hoje tem. No ano seguinte fez parte de uma
exposição que juntou o museu de Haia e a National Gallery de Washington, o seu
passaporte para a fama, devidamente carimbado quando, em 1999, Tracy
Chevalier publicou o romance Rapariga com Brinco de Pérola,
que mais tarde foi adaptado ao cinema por Peter Webber.
Neste filme de 2003, a actriz
Scarlett Johansson é a jovem criada que no livro serve de modelo a
Vermeer (papel confiado a Colin Firth), um artista perseguido tanto
pela ganância da sogra como pelos ciúmes da mulher, perfeccionista até à
obsessão e claramente atormentado pela beleza da rapariga que não pode deixar
de pintar.
Os especialistas
dividem-se quanto ao modelo a que o artista terá recorrido nesta Rapariga com Brinco de Pérola. Para uns, é claro que se
trata de uma amante ou de uma das filhas (se for este o caso, não lhe terá
faltado por onde escolher, já que o artista teve 15 filhos e, dos dez que não
morreram ainda bebés, sete eram mulheres), para outros, é simplesmente um
retrato que partiu da imaginação de Vermeer, sem que a esta jovem sedutora
corresponda uma mulher real.
Garantiu já Emilie
Gordenker, directora do museu Mauritshuis, que o novo projecto de investigação
não pretende afastar-se das provas físicas, materiais, para entrar no domínio
da interpretação e criar ou apoiar teorias sobre a identidade da modelo deste
retrato. “Uma das coisas que faz com que este quadro seja tão espectacularmente
atraente é o facto de não sabermos [quem é ou sequer se existe]”, disse
ao New York Times.
O que Vermeer nos dá nesta
obra conhecida como “Mona Lisa do
Norte” – o nome que hoje tem integra uma lista de que fazem parte outros
como Um Retrato ao Estilo Turco, ou
os mais descritivos Jovem com Turbante e Cabeça de Jovem – é uma mulher que parece
interpelar quem a olha, de turbante azul e amarelo na cabeça, lábios
entreabertos, brilhantes, e um brinco de pérola (há
quem defenda que se trata de um pendente de metal, provavelmente prata, ou até
de vidro veneziano envernizado por causa da forma como o artista pinta
a luz a reflectir-se nele). Se existiu ou não, pouco importa. O que
interessa, defende Abbie Vandivere, a conservadora-chefe do museu de Haia, é o
que pode ensinar-nos ainda sobre a forma como Vermeer trabalhava, como
pensava. E isso, quando se trata de um
artista que pintou como poucos a mulher na intimidade da casa e que
deixou apenas cerca de 30 obras, já não é nada mau.
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