É o que pensamos há muito, e mais uma vez com a leitura, agora, das
análises ao comportamento de Pinto Monteiro, de Luís Rosa no Observador,
de João Miguel Tavares, no Público, respectivamente de 5 e
6 de Março. Não, não vou comentar. Os textos ficam no meu blog, didáticos,
éticos, dramáticos, direi mesmo trágicos, nas vergonhas que passamos,
continuamente, os casos “tristes e indignos de memória” a estalarem continuamente
sobre as faces de um povo baralhado, pela produção contínua, poluição ética
acompanhando as outras.
O legado de Pinto Monteiro
LUÍS ROSA
OBSERVADOR, 5/3/2018,
Pinto Monteiro representou, como o caso Face Oculta demonstra, o lado
obscuro da Justiça que prefere andar nas saias do poder político em vez de
estar ao lado dos procuradores que devia liderar.
Fernando Pinto Monteiro tem um problema. Não com o passado, nem com o
presente, mas sim com o futuro: está numa corrida contra o tempo para evitar
que a história o recorde como o procurador-geral da República que fez tudo
para não investigar José Sócrates — o homem que o indicou para o cargo.
É uma luta difícil, refira-se, por que os factos são chatos, incómodos mas
suficientemente públicos para falarem por si.
Tal luta faz-se através do único meio que tem neste momento: o uso da
palavra através dos meios de comunicação social. Ao contrário dos seus
antecessores Souto Moura e Cunha Rodrigues (que preferem o recato que o seu
estatuto de magistrados impõe), Pinto Monteiro gosta de dar entrevistas
— a vaidade é um pecado que o assiste e não é em doses reduzidas. Mas de
cada vez que fala em público a ideia que fica é que mais valia ter ficado
calado.
A entrevista que deu ao Público/Rádio Renascença esta quinta-feira é
apenas o último exemplo. É confrangedor ler e ouvir a entrevista de um homem
que exerceu um dos mais altos cargos da nossa República e constatar a
facilidade com que mente, deturpa ou simplesmente inventa — além do oportunismo
evidente ao querer associar-se a Rui Rio e à sua luta contra o segredo de
justiça.
Tudo para dizer, com os olhos arregalados e o braço bem levantado como
aquelas crianças ansiosas por serem reconhecidas, que “investiguei todos os
bancos e estão aí a ser julgados” (numa alusão à Operação Furacão) “quem criou
o Apito Dourado fui eu” e que deu ordens para se “investigar tudo” — e que só
não “investigou” José Sócrates e o BES de Ricardo Salgado porque, infelizmente,
não havia elementos.
Bem vistas as coisas, é bastante provável que, no entender de Pinto
Monteiro, ele tenha sido o criador da luta contra o crime económico-financeiro.
Além de que, no seu tempo como procurador-geral, era “principescamente
tratado em Angola”, tinha “relações ótimas” com Luanda e audiências com uma
pessoa inacessível por natureza: José Eduardo dos Santos, presidente da
República de Angola.
Infelizmente, e como se diz agora, as declarações de Pinto Monteiro são
mais “fake news” do que os twitters de Donald Trump.
Não, Pinto Monteiro, não “criou o Apito Dourado”. O processo Apito
Dourado ficou conhecido em
Abril de 2004 com a detenção de Valentim Loureiro — era então Souto Moura o
procurador-geral da República em exercício de funções e o investigador dá pelo
nome de Carlos Teixeira, um procurador-adjunto de Gondomar que não hesitou em
escrutinar o homem que não só era a representação perfeita da promiscuidade
entre o futebol e a política como tinha acumulado poder de forma despudorada.
Pinto Monteiro, infelizmente para si, também não inventou a Operação
Furacão. O inquérito iniciou-se em 2004 e um ano antes de o então
procurador-geral tomar posse, o juiz Carlos Alexandre e o procurador Rosário
Teixeira lideraram as buscas realizadas aos departamentos de private
banking do BES, BCP, BPN e Finibanco. Havia suspeitas de crimes de fraude
fiscal e de branqueamento de capitais com esquemas de facturação falsa e de
sociedades offshore criados pelos próprios bancos e propostos aos
respetivos clientes — sempre em prejuízo do Estado. O mérito da investigação
pertence a Rosário Teixeira e ao então desconhecido inspector tributário Paulo
Silva que descobriu o esquema dos bancos no distrito de Braga.
O auto-elogio que o ex-procurador-geral pode fazer na Operação Furacão é
ter deixado a procuradora Cândida Almeida transformar o Departamento Central de
Investigação e Ação Penal numa espécie de guarda avançada da Autoridade
Tributária, colectando os impostos que não tinham sido pagos por algumas
das maiores empresas nacionais e deixando
cair as acusações por fraude fiscal e branqueamento de capitais.
Independentemente dos crimes terem sido cometidos (e, de acordo com o
Ministério Público, terão sido cometidos), as empresas e os empresários pagavam
os impostos em falta e o crime caía. Foram assim recuperados mais de 146
milhões de euros, segundo o último balanço conhecido. Ser uma espécie de cobrador de impostos,
isto sim, Pinto Monteiro pode orgulhar-se.
O mais grave de Pinto Monteiro na entrevista ao Público/RR,
contudo, é afirmar que há
meios de comunicação social que têm as escutas telefónicas do processo Face
Oculta que envolvem José Sócrates, insinuando que os media não as
publicam porque não têm interesse jornalístico. Esta nem os anónimos dos
Truques conseguiram ainda inventar.
Foi Pinto Monteiro quem, cinco meses após receber das mãos do procurador
João Marques Vidal tais escutas decidiu promover a eliminação das mesmas e recusou abrir o inquérito
criminal proposto pelo titular do processo Face Oculta. Tal como foi também
o então procurador-geral que, após a concordância de Noronha de Nascimento
(presidente do Supremo Tribunal de Justiça), promoveu a eliminação das
escutas e até determinou a destruição física dos respetivos cd’s (até no
suporte Pinto Monteiro erra ao falar em cassetes) através de fogo e de
tesouradas, num autêntico auto de fé judicial.
Não deixa de ser uma ironia que este homem que, em conjunto com Noronha
de Nascimento, promoveu um golpe judiciário, ao impedir que as suas decisões
fossem escrutinadas por outros magistrados, esteja agora a insinuar que a
comunicação social não revela informações que poderiam ter permitido descobrir
mais cedo as ligações que foram descobertas na Operação Marquês — tudo com a
insinuação de que nada contém. Alguma coisa devem conter e, se algum dia forem conhecidas, aposto
que não vão deixar Pinto Monteiro muito bem na fotografia.
Fernando Pinto Monteiro representa, como a sua participação no processo
Face Oculta demonstra, uma face obscura da Justiça. Uma Justiça obscura que não
gosta de ser escrutinada, uma Justiça próxima do poder político que vê os
representantes do Ministério Público como meros funcionários públicos e não
como verdadeiros magistrados dotados de autonomia e uma Justiça que não quer
exercer o seu papel constitucional de contra-freio aos abusos dos poderes
executivo e legislativo — antes prefere andar nas saias do poder político à
espera de migalhas de poder e de influência.
Durante o seu mandato, e ao contrário do que costuma apregoar, Pinto
Monteiro foi igualmente a face de uma justiça para ricos e poderosos e
outra para o resto da população. Foi durante o seu mandato que foram inventados os despachos
intercalares de arquivamento de figuras relevantes da sociedade portuguesa
(como o ex-ministro Luís Nobre Guedes) e a ideia de que os titulares de cargos
políticos tinham direito a despachos de inocência a meio de um inquérito depois
de uma notícia de um jornal pela exposição mediática de que eram vítimas.
Ao fim e ao cabo, a sua vaidade fez com que Fernando Pinto Monteiro
também tenha desejado ser um dos poderosos do país. Um procurador-geral que preferia ser visto
ao lado de um político como José Sócrates (“eu apreciava o estilo dele
[Sócrates]”) em megas-lançamentos de livros do ex-primeiro-ministro,
do que ao lado dos procuradores que liderou — ou pelo menos, devia ter liderado
— e que hoje são os maiores críticos da sua passagem pela Procuradoria-Geral da
República.
Infelizmente, Pinto Monteiro será mesmo recordado numa nota de rodapé da
história com o procurador-geral que não quis investigar José Sócrates. É chato,
incomoda mas é a verdade.
OPINIÃO
Foi isto um
procurador-geral da República
A entrevista a Pinto
Monteiro mostra como uma pessoa com o seu perfil pode ser uma desgraça à frente
do Ministério Público, e demonstra a importância fulcral de reconduzir Joana
Marques Vidal no seu cargo.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 6 de Março de 2018
A entrevista que
Fernando Pinto Monteiro concedeu ao PÚBLICO e à Rádio Renascença na semana
passada é a mais reveladora de toda a sua carreira. Ela demonstra, ainda que de
forma involuntária, as razões por que Pinto Monteiro assumiu o papel de
guarda-costas oficioso de José Sócrates entre 2006 e 2011, e por que se
afundaram no Ministério Público todas as investigações que envolveram o então
primeiro-ministro.
Sobre as mentiras de Pinto
Monteiro nessa entrevista já Luís Rosa escreveu um excelente texto no Observador (O legado de Pinto Monteiro).
E sobre tantos aspectos ainda por esclarecer da sua nomeação – como a
relação de proximidade de José Sócrates com o seu irmão, o professor de Direito
de Coimbra António Pinto Monteiro, ou a possibilidade de ter sido Proença de
Carvalho a sugerir o seu nome – já Vítor Rainho escreveu um bom artigo no Sol (Um procurador que gosta de José Sócrates).
Eu prefiro chamar a atenção para dois aspectos que esses textos não
desenvolvem: os seus tristes comentários sobre o processo Face Oculta; e as
barbaridades que disse como se fossem banalidades, tão sintomáticas do seu
carácter.
Quanto às famosas
destruições das escutas do processo Face Oculta, o ex-Procrador-geral da
República admite na entrevista que delas constam a venda da TVI, pelo que se
pressupõe que Sócrates foi mesmo apanhado a discutir os seus detalhes. Pinto
Monteiro desvaloriza esse facto com o rigor habitual – “a estação de televisão
de que está a falar já foi vendida e revendida 30 vezes!” –, e utilizando um
argumento decisivo: “Aquilo não tem nada a ver com crime de atentado ao Estado
de Direito! Sabe o que é um atentado ao Estado de Direito? Dou-lhe um exemplo:
é um Governo acabar com o Tribunal Constitucional.”
Eis um exemplo
extraordinário, que entronca numa interpretação que Freitas do Amaral já tinha
desenvolvido em 2010 nas páginas da revista Visão. O texto
chamava-se Decifrai o Procurador e
nele Freitas acusava o procurador-geral da República de ter optado “por uma
interpretação muito restritiva do conceito de atentado ao Estado de Direito.”
Ou seja, Pinto Monteiro mandou destruir as escutas não porque elas
fossem inocentes, mas porque no seu entendimento um atentado ao Estado de
Direito envolve a destruição de uma instituição – conspirar sobre a sua venda
parece ser insuficiente.
Esta interpretação tão
estrita daquilo que constitui uma conduta criminosa, e esta visão tão lata
daquilo que é permitido a quem ocupa cargos de poder, está espalhada por toda a
entrevista. Pinto Monteiro assume que atendeu chamadas de Rui Rio a
queixar-se da justiça (“telefonava-me de vez em quando a protestar contra as
fugas”) e que isso não tem mal algum; declara que ir a lançamentos de livros de
políticos sobre os quais tomou decisões judiciais é a coisa mais banal do
mundo; confessa ter sido “principescamente” tratado quando viajou até Angola
para assinar protocolos de cooperação e não lhe passa pela cabeça que ser
“principescamente” tratado levante problemas éticos.
Não creio que Pinto
Monteiro algum dia tenha sido corrompido por dinheiro. É o próprio a
autocorromper-se por vaidade – deslumbrado pelo poder, fascinado por políticos,
e, como qualquer bom português, muito amigo dos seus amigos. Embora lamentável
a vários títulos, a entrevista a Pinto Monteiro tem esta dupla vantagem: mostra
como uma pessoa com o seu perfil pode ser uma desgraça à frente do Ministério
Público, e demonstra a importância fulcral de reconduzir Joana Marques Vidal no
seu cargo.
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