terça-feira, 27 de março de 2018

Faria 111 anos



Mas apenas chegou aos 106, o que se diz que é bastante. Vejo-a todos os dias na abertura do meu blog, companheira repousante, que recordo sempre assim, na foto dos 103. E não me lembrei do dia, tanto a vida se encarrega de nos desviar a atenção para os nossos mundos, de datas vivas, e, este mês, de muitos aniversários bem presentes. Com a bisavó, fez hoje a Joana, neta da minha irmã, já 31, o tempo vai…
Daí, o ter escolhido este texto de Paulo Rangel, publicado hoje no Público, e antes que o dia acabe, sobre o passado Domingo de Ramos, para lembrar o tempo em que a minha Mãe colhia no quintal da casa onde vivíamos, um ramo de loureiro, de alecrim e mais uma outra flor de ocasião, o ramo que levava à igreja para ser benzido. E esse ramo ficava por lá, no seu quarto, por uns tempos, até esquecer, renitente eu em o retirar, como talismã de uma superstição colhida na distante infância, nós, os filhos de Deus, reduzindo-nos, por atavismo, a servos interiorizados, sempre que contemplamos os milagres da Criação, com a gratidão devida por um Pai e um Senhor, mau grado a distinção de Paulo Rangel. Por isso, antes que o dia acabe, aqui vai o seu bonito texto, que faço preceder de um comentário “à medida” de mentes que se dizem, provavelmente, democráticas – o que é, naturalmente, despicienda mentira, nelas só reinando a animadversão facciosa:
Ei-lo, o comentário, de Mário Orlando Moura Pinto, de Setúbal: «O Catolicismo (não confundir com Cristianismo...) sempre de braço dado com a Direita, ou vice-versa. Confere!»
Não, nem a memória da minha Mãe, nem o artigo de Paulo Rangel, respeitoso da sua crença, que educadamente defende, apesar do desvio político, como chamariz de ponderação, merecem que me debruce sobre o comentário repulsivo do setubalense. E antes que chegue o novo dia, coloco o breve texto, com o de Paulo Rangel, para festejar a memória de uma companheira inesquecível.

Chegada a Jerusalém: Deus Pai ou Deus Senhor?
Sei também, mesmo pisando o risco de muita incompreensão, que um Deus que tem filhos não tem servos; que um Deus que é Pai não deveria ser Senhor.
PAULO RANGEL
PÚBLICO, 27 de Março de 2018
1. Há muitos, muitos anos, que sigo religiosamente os programas radiofónicos de Júlio Machado Vaz. Ao fim de semana, como quem se desincumbe de uma obrigação dominical, escuto-o com Inês Menezes na versão longa de “O Amor É”. No último programa, já nos instantes finais, lançou-se a dúvida sobre se este domingo seria ou não seria o domingo de Ramos. E com a habitual graça e sensibilidade, sem nenhum menoscabo, até com delicadeza, a dúvida, quiçá porque se tratava de rádio, ficou no ar, persistiu no ar. Esta dúvida – apesar de ser uma simples dúvida – deixou-me intrigado, talvez perplexo. Não, por uma questão de fé, obviamente. Mas porque mostra até que ponto a nossa sociedade, a nossa cultura e a nossa civilização se descristianizaram. A questão, insisto, não é a fé, nem a afeição à religião ou à tradição e, muito menos, ao que em tempos se denominava, a cristandade como “regime” civilizacional ou cultural. A questão está na indispensabilidade e na importância do conhecimento da mundividência cristã e daquilo a que tenho chamado – com algum escândalo e incompreensão – a “mitologia cristã” para a intelecção do nosso mundo e do nosso tempo. Mesmo – e até mais intensamente – para a compreensão do mundo laico, laicista, agnóstico ou panteísta e de todas as suas incontáveis variáveis e declinações. Na tradição popular, este domingo é como por ali se dizia, o dia de madrinhas e padrinhos, afilhadas e afilhados, ramos e antecipação de folares. Mas ele é, antes de tudo o mais, o dia da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém para a sua última Páscoa. E esse episódio de aclamação e glória representa, como toda a vida narrada de Jesus, não apenas um incontornável lugar teológico, mas um manancial de referências antropológicas. Curiosamente, do jaez daquelas com que semanalmente me deleito nos textos, nos versos, nas entrevistas, nos artigos que dão vida e humor, coração e pulmão a “O Amor É”. 
2. O sentido do domingo de Ramos talvez também se tenha perdido por causa do engarrafamento ou atafulhamento litúrgico da semana santa. O texto evangélico lido no domingo de Ramos não é o texto da dita chegada gloriosa e triunfal de Jesus a Jerusalém. É a narração circunstanciada da paixão e morte de Jesus – liturgia que outrora estava reservada aos ofícios de quinta e sexta-feira santa. Com o engarrafamento litúrgico, a maioria das pessoas perdeu a consciência desse momento épico, trágico e crucial da vida de Jesus, prenhe como está de um intenso magnetismo antropológico, transitando de Messias glorificado a criminoso de delito comum. Uma boa parte nem se dá conta, aliás, de que, em cada eucaristia, recordam aquele momento, quando cantam o chamado “Santo” e proclamam “Hossanas”. Ou seja, a recepção entusiástica de Jesus nos umbrais de Jerusalém é revivida semanalmente por centenas de milhões de cristãos, mesmo que disso possam não ter exacta consciência.
3. Cruzando os relatos evangélicos, bastante aproximados entre si, pode assumir-se que, sendo muitos os judeus que se concentravam em Jerusalém para a festa da Páscoa, e espalhando-se a notícia de que um famoso profeta galileu, capaz de milagres assombrosos, estaria a chegar, uma multidão juntou-se para O ver. A multidão, impressionada pelo que d’Ele se dizia, aclamou-O com júbilo e devoção, numa atitude quase messiânica. Daí que se fale a respeito da entrada em Jerusalém, num momento de triunfo, honra, glória e louvor, no fundo, do reconhecimento pelas massas dos atributos divinos. Este episódio contribuiu decerto para a imediata reacção persecutória do poder religioso, civil e militar que viria nos dias seguintes e culminaria na prisão, julgamento sumário, condenação e crucificação de Jesus.
 4. Este episódio de glorificação de tipo messiânico ilustra bem a ausência de um projecto político em Jesus e de Jesus. O Messias – na concepção judaica – não é apenas um salvador espiritual, é também um libertador temporal (naquele preciso tempo um libertador do jugo romano). Este seria o momento – ou, como se diz agora, o momentum – para Jesus assumir a instauração do Reino, mas de um Reino com coroa, ceptro e espada. Há, no entanto, um sinal, marcado em todos os evangelhos, e inspirado nas profecias de Isaías e de Zacarias, que mostra simbolicamente que Jesus, mesmo com este apoio popular, não visa um reino político. Jesus entra montado num jumentinho, filho de uma jumenta. Não entra de liteira, nem chega a cavalo, como um governador ou um general; passeia mansamente no lombo de um simples burro. E, por isso, dirá a Pilatos, dias mais tarde, que o seu Reino não é deste mundo. 
5. Confesso que esta passagem sempre me interpelou. E que a projecção de glória, de honra e de louvor, tão manifesta neste episódio, e tão barrocamente presente na liturgia católica, embora de clara raiz velho-testamentária, sempre me inquietou e desafiou. Precisará Deus da glória, da honra e do louvor? Ou preferirá o amor, de dádiva e a gratidão? Gostará Deus de ser tratado como Senhor, sinónimo de uma relação de propriedade e de domínio, inspirada na antiga relação “servo-senhor”? Não Lhe bastará e não O satisfará plenamente o amor paternal, a caridade e o ágape de Pai-Mãe e filho-filha? Por reflexo do hábito e da educação e porque tem raízes fundas e fundadas, penso e falo indistintamente num Deus Pai e num Deus Senhor, e por mais que faça, julgo que não conseguirei abandonar esse quadro de formulação e de pensamento. Mas sei também, mesmo pisando o risco de muita incompreensão, que um Deus que tem filhos não tem servos; que um Deus que é Pai não deveria ser Senhor.
SIM. João Calvão da Silva. Professor e civilista de tomo, político hábil e dedicado, cultivava a inteligência, a vivacidade, a informalidade, o humor. Portugal perdeu um grande cidadão; muitos de nós, um amigo.
NÃO. Governo e relatório dos fogos. O respeito pelas vítimas e pelo país em geral não se traduz apenas no dever indemnizatório e na acção preventiva. Exige verdade e assunção de responsabilidades.  
  Colunista

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