terça-feira, 24 de março de 2009

A Boceta (cont.)

Retomo a questão da Igreja. Considerar que esta, sobretudo no que concerne o Papado, deveria despojar-se dos seus ouropéis, obtidos à custa do atraso espiritual e da boa fé dos acólitos - que a Igreja vai conseguindo nas suas práticas - e repartir com os povos oprimidos, não levaria a lado nenhum em termos de providência e ficaríamos mais pobres em termos de arte. Sem o esplendor das catedrais, dos vitrais, dos mosteiros, dos frescos disseminados pelo mundo cristão, como manifestações do espírito do Homem tentando perspectivar os mistérios do Além, por vezes em autênticas radiações luminosas – e cito apenas, com velha ternura, o apoteótico esplendor dos vitrais da Sainte-Chapelle – a Terra não seria um espaço tão rico de beleza pela criatividade e imaginação dos artistas que as produziram, mau grado as considerações filosóficas de Rousseau que vê nas maravilhas da natureza argumento sine qua non comprovativo da existência de Deus. Porque o Homem consegue ainda ser a maior das maravilhas – no Bem como no Mal, na monstruosidade como no poder de invenção e na criatividade.
Se houve gastos inconvenientes, se continua a haver, podemos pensar que sempre os houve e todos pensam que sempre haverá. Vem nos livros. Retomo Gil Vicente e o seu “Auto da Feira”, onde o Diabo foca, com grande mestria, o desconcerto económico e social que vai no mundo: “E mais as boas pessoas / são todas pobres a eito; / e eu por este respeito, / nunca trato em cousas boas, / porque não trazem proveito. / Toda a glória de viver / das gentes é ter dinheiro, / e quem muito quiser ter / cumpre-lhe de ser primeiro / o mais ruim que puder.”
Ficam-nos a matar estes ditos, de actualidade persistente.
E quanto aos despropósitos da Igreja, as falas de Mercúrio à Roma (/Cristandade) desavinda, contêm ainda a solução: “tenha sempre paz com Deus / e não temerá perigo”.
É o que vemos nos Papas – a busca da paz com Deus, a obediência à cartilha. E para os que nela crêem, a cartilha deve ser eterna.

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