sexta-feira, 27 de março de 2009

Monumento

Hoje, a minha Mãe faz 102 anos. Entendi dedicar-lhe um post no meu blog nacionalista, cuja bonita imagem cimeira o meu filho Artur compôs com tanta perspicácia.
Com efeito, a figura simultaneamente mimada e forte da minha Mãe merece um tratamento nacional: uma espécie de doutoramento “honoris causa” – hoje é fácil - por conta do seu apego à vida, concomitante com o seu inteligente terror da morte que, para todos os efeitos, ninguém ainda provou se corresponde ao vazio absoluto ou a outras possibilidades de vidas e de reencontros com os seres amados nesta. Ela sabe quanto aqui é bem amada, quanto os seus caprichos de aceitação ou recusa, ao provocarem reacções por vezes adversas, lhe mostram o seu poder sobre os que a rodeiam, que se zangam e perdoam, e que lhe admiram os seus jeitos de dignidade tanto como o seu poder de evocação – e não só da sua infância, mas também de outras memórias mais recentes, de sítios, acontecimentos, cantares, ditos e nomes que os mais jovens depressa esquecem.
A cinta que envolve o “Jornal de Vouzela”, dirigida a si, vem em nome de Henriques, o apelido de meu Pai, mas era Rodrigues Brás que ela gostaria que fosse assinalado – o sobrenome do seu Pai, que sempre prezou, com grande orgulho pela sua família e pelo seu Pai que, no Carregal, nos inícios da República, conseguiu mandar ir uma professora para a povoação, em breve repatriada, é certo, por crime de maçonaria. Creio mesmo que, mais tarde, a troca dos apelidos nas filhas – Henriques Brás em vez de Brás Henriques, se deveu mais a esse seu orgulho de raça, paralelo à modéstia do meu nobre Pai, do que ao engano do funcionário da Conservatória, como foi dito. Por isso, a sua assinatura, feita com a aplicação da dificuldade, era sempre completa – Rodrigues Brás Henriques, por muito que lhe disséssemos que bastava o Henriques do marido.
Ama a natureza, lembra com saudade as cabrinhas dos rebanhos que pastoreou, fala com os pássaros, na varanda, e conseguiu convencer-nos a deitar-lhes as sobras do pão ou do arroz, a eles destinando as bolachas que rejeita para si, na refeição matinal. Reage aos crimes ou sensacionalismos aterradores dos noticiários televisivos com compaixão e lágrimas, e fica decepcionada se os finalistas do “Preço Certo” não ganham o bolo todo. As tendências críticas que lhe reconhecia no passado, ao acentuarem-se com o avolumar dos anos, tornam-se repetitivas e por vezes massacrantes, mas tudo isso é esquecido em função da idade e do amor que lhe temos.
Se lhe levo pão de manhã, não o come, mas, se lho não levo, protesta e faz-me ir buscá-lo. Há dias, os dois pedacinhos de pão iam encimados com uma fatia de queijo e duas de paio. Mas achou que o pão era pouco. –“O pão agora de manhã está duro, não presta!” – “O que não presta é não haver pão” – foi a resposta imediata.
Por isso não acredito quando se faz esquecida. Sabe muito, a minha Mãe, o seu discurso tantas vezes sentencioso, que nos espanta, o prova também, além das pequenas astúcias e caprichos do seu comando. Merece o “honoris causa”!

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