quinta-feira, 12 de março de 2009

Uma peça de teatro

Escrita em 1979, em plena efervescência pós-abrilina, entende a Ilda que se mantém actual e que deve ir para o meu blog, transcrita do livro “Cravos Roxos”. É por isso a ela, que a dedico aqui.

EXERCÍCIO ESCOLAR
(Cenário do Argumento e Final: despido. Apenas os cortinados por trás dos homens do CORO, vestidos de negro.
No II e V Quadros, o CORO manter-se-á a um dos lados da cena.)

ARGUMENTO
CORO DO PARTIDO
Necessário foi, senhores,
Que nas trevas que vivemos
- Cinquenta anos de dores –
Surgisse luz redentora
Que quebrasse a maldição.
Revolução salvadora
Elegeu os sofredores
Castigou os opressores,
Repôs o Bem e a Justiça,
A Igualdade, a Liberdade,
Fraternidade, União,
Deu ao pobre a unidade,
Ao rico a humilhação.
Primavera esclarecida,
Bendita revolução,
Conquista cheia de glória
Das páginas da nossa História.

I QUADRO
(No monte. Não perceptível ainda, pela escuridão envolvente. Música suave, “SONATA AO LUAR”, op. 27, nº 2, de Beethoven. Uma luz gradual vai destacando a figura graciosa da PASTORA no monte. Logo uma marcha guerreira (GRÂNDOLA, por exemplo), de intensidade rítmica crescente, substitui aquela, coincidindo com o aparecimento súbito do DEMOCRATA, em trajes mefistofélicos.)

DEMOCRATA: Vem aqui, linda donzela, que te quero esclarecer.
Tu vais agora ser livre, muito feliz vais viver.

PASTORA: Mas, Senhor, eu sou feliz, juro por Deus e o meu bem,
Sou feliz porque sou livre, não tenho raiva a ninguém.

DEMOCRATA: Dizes isso tão segura, não passas de uma ignorante.
Liberdade consciente só teremos doravante.

PASTORA: Não entendo o que dizeis, explicai-me isso melhor:
Porquê agora ser livre é diferente, Senhor?

DEMOCRATA: Agora haverá partidos, para poderes escolher
O que quiseres que governe, que mais garantias der.

PASTORA: Disso não entendo eu, mas explicai-me, Senhor,
Que garantias são essas que prestam tanto favor.

DEMOCRATA: As que enobrecem o povo e o libertem da ignorância,
Lhe dêem mais reflexão e o calor da abundância.

PASTORA: De reflexão não entendo, ignorante não me julgo.
Tenho o saber experiente que é o saber do vulgo.

DEMOCRATA: Podes mudar de ofício, deixar trabalho tão pobre,
Ascender a melhor cargo, alcançar posto mais nobre.

PASTORA: Minhas ovelhas não deixo, são minhas boas amigas,
Não tenho mais ambições, desdenho de outras fadigas.

DEMOCRATA: Assim provas tua inépcia, teu espírito sem enfeite.
Sonhar é proprio do homem, desejar, puro deleite.

PASTORA: Tenho o monte e o céu por palco, esses espaços me bastam,
São demasiado amplos, doutros desejos me afastam.

DEMOCRATA: Monte e céu são paisagem, não podem satisfazer.
A alma quer mais espaços, os espaços do poder.

PASTORA: Todo o poder que desejo é a meus pais vir a dar
A saúde na velhice e o amparo no meu lar.

DEMOCRATA: Se isso queres, donzela, terás de seguir-me então.
Porei o mundo a teus pés, a glória terás na mão.

PASTORA: Ao meu bem já entreguei a guia do meu destino.
Só dele espero ajuda, tudo o resto é desatino.

DEMOCRATA: Toda essa teimosia é fruto de cretinice.
Tenho muito p’ra te dar, põe fim a tanta pequice.

PASTORA: Dizei-me, então, tentador, o que devo eu fazer
Para alcançar a riqueza e a fama merecer.

DEMOCRATA: Escolherás o partido de ideais vingadores,
Que livre o povo oprimido da opressão dos opressores.

PASTORA: Mas os direitos do povo não são sempre defendidos?
Não é esse o objectivo dos diferentes partidos?

DEMOCRATA: Astúcia e triste dolo imperam na maioria.
Só um partido é sincero, só esse será teu guia.

PASTORA: Dessa forma não entendo porque é bom haver partidos,
Se só devo escolher um p’ra vingar os oprimidos.

DEMOCRATA: Este partido trará, da vil miséria o desgosto
E a terra a quem a trabalha com o suor do seu rosto.

PASTORA: Visto que insistis assim, aceito a vossa proposta
Com submissão e humildade. Eis, Senhor, minha resposta.

(Fica prostrada, enquanto se repetem os motivos musicais da marcha.)

II QUADRO

(Sala ricamente mobilada, destacando-se, ao fundo, o dístico SALA DAS PROMOÇÕES. Figurantes vários, vestidos a rigor. Ao centro, a PASTORA, sentada em cadeirão de espaldar e com imponente manto. Música ligeira inicial: DANÇA RITUAL DO FOGO de M. Falla.)

O FADISTA: A esplendente garganta que em acordes de altiva sonoridade entoa o fado do povo, não mais gemido ou chorado, merece uma guitarra em galardão, que deponho na sua nívea mão.

PASTORA: Como me sinto encantada! Rainha p’ra ser servida, santa p’ra ser adorada!

CORO DO PARTIDO: Conquista bem merecida! Vitória bem alcançada!


O DESPORTISTA: Medalha de ouro para vós, que vedes o desporto progressistamente, não como meio de obter frívolas vitórias deformativas da personalidade, mas de formar o corpo são, sem baixo espírito de emulação.

PASTORA: Como me sinto encantada! Rainha p’ra ser servida, santa p’ra ser adorada!

CORO DO PARTIDO: Conquista bem merecida! Vitória bem alcançada!

O COMODISTA: Eu, Comodista, estou-me borrifando para os lados donde os ventos soprem. Apoio esta dama como outra qualquer, nas tintas para o que der e vier, desde que me não incomodem.

PASTORA: Como me sinto encantada! Rainha p’ra ser servida, santa p’ra ser adorada!

CORO DO PARTIDO: Conquista bem merecida! Vitória bem alcançada!

O ANARQUISTA: Elegemos-vos gostosamente chefe dos anarcas, pois que topastes o esquema dos nossos ideais, que apoiam a desordem como sistema e defendem os instintos como virtudes nacionais.

PASTORA: Como me sinto encantada! Rainha p’ra ser servida, santa p’ra ser adorada!

CORO DO PARTIDO: Conquista bem merecida! Vitória bem alcançada!

O PATRÃO DA EMPRESA: Em acção de uma coerência sem quebras, de dedicação pelo nosso mister, que a fez subir, subir, com rapidez, a dama, aqui presente, vai ser empossada no cargo do anterior presidente, aqui prostrado.

PASTORA: Como me sinto encantada! Rainha p’ra ser servida, santa p’ra ser adorada!

CORO DO PARTIDO: Conquista bem merecida! Vitória bem alcançada!

O GENERAL: No vosso peito, ilustre dama, vou prender a grã-cruz da ordem descolonizadora, pela justa defesa que tomastes dos princípios anticolonialistas e o destemido ataque que fizestes aos opressivos erros fascistas.

PASTORA: Como me sinto encantada! Rainha p’ra ser servida, santa p’ra ser adorada!

CORO DO PARTIDO: Conquista bem merecida! Vitória bem alcançada!

O LENTE: As apolíneas musas vão pousar, por intermédio do seu servo ante vós curvado, singular coroa láurea, em quem tão súbito absorveu o sal da cultura proletária,

PASTORA: Como me sinto encantada! Rainha p’ra ser servida, santa p’ra ser adorada!

CORO DO PARTIDO: Conquista bem merecida! Vitória bem alcançada!

O PRESIDENTE: Eu, Presidente, invisto V. Exª no cargo de Primeiro Ministro pelo poder jamais visto de articular palavras brilhantes, que traduzem da nação inebriante visão.

PASTORA: Como me sinto encantada! Rainha p’ra ser servida, santa p’ra ser adorada!

CORO DO PARTIDO: Conquista bem merecida! Vitória bem alcançada!

(Mesmo motivo musical do início do quadro.)
III QUADRO

(Sala do palácio. A PASTORA, embevecida, escuta a ODE À ALEGRIA da NONA SINFONIA de BEETHOVEN. De súbito, o ANJO surge, num halo de luz.)
PASTORA: Jesus! Jesus! Socorrei-me! Que visão esplendorosa ante meus olhos se abre?

ANJO: Sou o Anjo do Senhor, que do Céu desceu à Terra pedir contas dos teus actos.

PASTORA: Dos meus actos, Senhor Anjo? Não tendes que reclamar! Paz, bem-estar social, fraternidade geral, eis o quadro equilibrado que ponho perante vós.

ANJO: Consola-me verificar tão íntima satisfação, tão encantado sentir. Fui todavia informado que de graves mazelas enferma este reino, onde se expende em excesso e se produz deficientemente.

PASTORA: E para que se há-de produzir mais? E porque se há-de expender menos? Gastos diminutos tornam diminuto o prazer de viver. Produção excessiva aponta para uma abundância de capital, sinónimo, como sabeis, de exploração mesquinha da máquina humana trabalhadora pela desumana patronal.

ANJO: De política não entendo, mas não me parece forçosa a aliança que solidariza capital e exploração.

PASTORA: Desconheceis, Anjo meu, os eflúvios poderosos emanados do papel moeda – mesmo em inflação como o nosso – sobre o seu possuidor. O raquítico se faz hércules, o humilde arrogante, o ofendido vingador.

ANJO: Bem depressa o convívio com quem te serve te tornou ciente dos seus defeitos.

PASTORA: Antes virtudes, Senhor Anjo. A evolução é própria do homem, não lhe podeis exigir uma perfeição tão divinamente estática como a vossa.

ANJO: Esse princípio eufórico conduz a exageros reprováveis. Talvez por isso ouço falar na vossa desordem geral. Nas escolas, por exemplo, a liberdade em plenitude provoca situações maquiavélicas que desprestigiam o vosso ensino.

PASTORA: Contra o que afirmais, uma plena liberdade defende os alunos da escravização ao trabalho e ao mestre, tão opostos ambos à sua natureza de instintos puros que devemos acalentar.

ANJO: Sendo assim, não podes esperar resultados positivos, numa campanha urgente de alfabetização do país.

PASTORA: Não se trata propriamente de alfabetizar o país com urgência, porquanto bem sabeis quanto a civilização corrompe os homens. Trata-se, sim, de retornar ao primitivo selvagem, muito mais próximo da virtude exigida por Deus, como tendes presente.

ANJO: Mais justo seria então fechar as escolas...

PASTORA: Por outro lado, são necessário técnicos que nos irmanem com o nível civilizacional dos outros povos.

ANJO: Cais, forçosamente, em contradições: por um lado, pretendes o progresso, sinónimo de corrupção, por outro lado a ignorância, expressiva de bondade...

PASTORA: Mas esta última supera o primeiro, podeis confiar. Além do mais, a falta de matérias-primas origina a diminuta precisão de técnicas que as apliquem. Por isso, se as nossas estradas se esboroam facilmente – e observo-vos, de passagem, com mágoa e mesmo reprovação, quanto a invernia nos é nociva – também a ausência de combustíveis nos faz retomar meios de transporte mais singelos e económicos que não exigem o conserto daquelas, pois o rodado das carroças é menos sensível às fendas. Se as pontes ruem com as cheias, ou as casas se destelham com os vendavais, ou os cabos eléctricos se despedaçam de vento e de velhice, tenhamos presente a máxima de que o sofrimento na Terra prepara a ventura em Deus.

ANJO: Admiro os teus sentimentos cristãos, mas posso garantir-te que eles não são gerais. Há dias, por exemplo, ao guichet de uma repartição pública, fui atendido com muita incivilidade, e o mesmo me sucedeu no hospital, onde o pessoal paramédico se revelou excessivamente descortês e até menos humano com os doentes.

PASTORA: Mas, Senhor Anjo, se tivésseis revelado a vossa identidade, logo as maneiras mudariam. Foi um risco voluntário!

ANJO: Esqueces que o civismo, a cortesia, se não confundem com a subserviência. Devem ser atributo de todo o homem para com o seu semelhante, sem privilégios de castas.

PASTORA: De toda a maneira, precisamos de nos couraçar contra a adversidade, que não propicia o agudizar de sensibilidades. E graças a Deus, ninguém nos leva a palma em generosidade e hospitalidade. Quando os peditórios se tornam necessários para acudir aos pobres – e chamo especialmente a vossa atenção para a expansão humanitária da quadra natalícia dedicada ao Deus Menino – todos se despojam em favor daqueles. Quando chegam emigrantes à Pátria, até os lares mais principescos lhes oferecem refeições. Atitudes estas muito positivas.

ANJO: Apesar disso, não sou apologista da mendicidade, nem da espectaculosidade da esmola. Pedir parece-me indigno do homem. E quanta satisfação íntima, quanto adormecimento das consciências não resultam do simples acto de dar!

PASTORA: Mas Deus prometeu aos pobres o seu Reino! Vem na Bíblia...

ANJO: Não, não deturpes os preceitos bíblicos. Tratava-se de outros pobres.

PASTORA: Oh! Meu Senhor! Não penso competir convosco em debate literário. Mas só vos lembro que os actuais estudos linguísticos possibilitam uma maior abertura de leituras.

ANJO: Bem sei, a ambiguidade... Um processo, como qualquer outro, de se alterar, tantas vezes, o valor primitivo dos textos, num rebuscamento a que falta a virtude da simplicidade.

PASTORA: Mas torna-se inegável a sua maior dimensão. Por isso o nosso lirismo é tão apreciado, mesmo lá fora.

ANJO: Deixemos o assunto, que me parece estéril. Outros motivos me preocupam mais em vós. O modo, por exemplo, como passais o tempo em protestos, reivindicações, greves sindicais, discursos exaltados...

PASTORA: Bem vedes que o povo, tantas vezes sufocado por um regime opressivo, acumulou uma vitalidade de expressão e uma vibratilidade de acção que devemos respeitar. É, aliás, uma forma específica de se proporcionar horas de diversão gratuitas, dada a incompatibilidade dos seus salários limitados com os preços elevados das diversões a pronto.

ANJO: Mas parece-me a mim essa uma forma de se precipitarem irreflectidamente para uma vida mais mesquinha.

PASTORA: Isso é porque desconheceis o nosso provérbio “Morra Marta, morra farta”. De comida ou de prazer, indiferentemente. É um provérbio ambíguo.

ANJO: Observo em ti uma visão eufórica e um tanto estouvada dos problemas que afectam o teu país. Por esse motivo, reconhecendo a inutilidade das minhas observações, retiro-me desportivamente, deixando-te entregue à ampla liberdade do teu humano arbítrio.


(O Anjo desaparece num rasto de luz. Retoma o motivo musical do início quadro.)


IV QUADRO

(Mesmo cenário de III. Na estereofonia, toca, dos Gemini, DAILI-DOU. A uma mesa, ao centro, PASTORA e DEMOCRATA conversam.)

PASTORA: Senhor Democrata, como correio-geral dos meus reinos, deveis confiar-me o que os vossos olhos têm neles observado. Igualmente vos darei parte daquilo que de vós exijo no exercício das vossas funções.

DEMOCRATA: Às vossas questões responderei, a vossos mandatos obedecerei.

PASTORA: Consta-me que o meu Governo se tem caracterizado por um excesso de aumentos. Concordais?

DEMOCRATA: Depende do ponto de vista, Excelência, ou, segundo um conceito dialéctico, cada princípio implicará, naturalmente, o seu oposto.

PASTORA: Explicai-me isso melhor.

DEMOCRATA: O aumento dos preços corresponde a uma diminuição da produção, tal como o aumento do desemprego a uma diminuição de postos de trabalho, ou o aumento populacional a uma diminuição territorial... Destas antíteses, o povo constituirá a síntese, como parte directamente interessada.

PASTORA: Tudo isso me parece remediável. Assim, novos decretos se acrescentarão à Constituição, proibindo o excesso de consumo, tal como o excesso de produção de filhos.

DEMOCRATA: De filhos, Excelência?

PASTORA: Sim, cada casal não poderá gerar mais do que um filho. Desta forma, dada a dificuldade de importação da pílula anticonceptiva, instituir-se-á a lei do aborto nacional, aplicável sem excepções.

DEMOCRATA: Um pouco parecido, Excelência, com o que fazemos nas ninhadas prolíficas de cães e de gatos. E quanto ao excesso de consumo...

PASTORA: Fica instituída a lei da dieta nacional, a fim de se desenvolver no nosso povo, de injustificáveis e desprestigiantes tendências para a obesidade, o cuidado pela magreza estética.

DEMOCRATA: Assim se fará, Excelência. E quanto ao excesso de desemprego...

PASTORA: Fica instituída a lei da bicha nacional como forma de ocupação diária. Haverá bicha para o leite e bicha para a carne, bicha para os impostos e bicha para os vencimentos, bicha para os autocarros e bicha para os postos de socorros urgentes.

DEMOCRATA: Achais esse decreto importante, Excelência?

PASTORA: Sem dúvida, contribuirá não só para uma ocupação das horas livres, que serão todas, mas para a criação de um ordeiro espírito de resignação e alinhamento nacional.

DEMOCRATA: Pensais em tudo, Excelência. E quanto ao território reduzido...

PASTORA: A nossa pátria é o mundo, a nossa língua universal. Em qualquer latitude ou longitude sempre uns braços abertos acolherão os excedentes populacionais do nosso país.

DEMOCRATA: Todavia, a redução pátria estreitou-nos os recursos, inegavelmente...

PASTORA: Lembrai-vos do vosso preceito dialéctico: tudo uma questão de focalização: a redução de uns significa o alargamento de outros. E não há dúvida que as verdadeiras potências, as que lutam calorosamente contra a oposição e o colonialismo, puderam dilatar extraordinariamente as suas máximas igualitaristas, com a nossa rejeição territorial. O mundo ficou mais rico.

DEMOCRATA: Tendes razão, Excelência. Outra questão se me afigura bem mais grave. Observa-se no reino uma precária situação económica, manifesta na escassez da moeda nacional e estrangeira.

PASTORA: Quanto à nacional, não nos preocupemos. Temos árvores com polpa bastante para a fabricação do papel-moeda. Quanto à estrangeira, não nos faltam, felizmente, amizades escorreitas nos países financiadores, interessados em alargar os seus domínios de fraternidade universal.

DEMOCRATA: Sendo assim, podemos tranquilizar-nos. Jamais nos faltarão recursos. Um outro problema de certa acuidade é o da reforma do ensino. Como sabeis, pretende-se fazer da escola um meio directo de intervenção do jovem aluno na sociedade a que ele pertence com aguçado sentido de responsabilidade. O facto tem, contudo, levantado celeuma, sobretudo entre professores cuja especialidade dificilmente se coaduna com um ramo de ensino de maior abertura física.

PASTORA.: Não noto a gravidade da situação. Para o ensino activo das escolas, levar-se-ão os materiais necessários à formação dos verdadeiros homens de amanhã. A semente e os adubos para a transformação dos campos de recreios anteriores em campos agrícolas, de superior utilidade nacional e igualmente favorecedores da ginástica escolar. O ferro e o aço para os ferreiros e os ferradores das alimárias, aumentadas estas em função dos transportes públicos. A cal para os pintores. Em suma, será a escola aberta uma vasta forja de cabouqueiros de um país em renovação.

DEMOCRATA: Mas os tais professores, Excelência, os de especialidades incompatíveis com o ferro e os adubos?

PASTORA: Não existem tais incompatibilidades. Os professores de línguas explicarão na língua da sua especialidade os nomes das coisas e das atitudes que forem utilizando na sua esfera de acção, os de história, contarão os feitos brilhantes dos heróis, ligados ao esplendor do metal das armaduras e dos arreios das cavalgaduras, os de filosofia explicarão ao lançar da semente, o mistério metafísico da criação. Quanto aos de ciências, fácil se torna imaginar as alianças possíveis entre os estudos concretos e os estudos abstractos.

DEMOCRATA: Todavia, Excelência, deveis contar com a inadaptação dos professores mais idosos, ou dos de menor robustez física. Especialmente por altura das podas e das colheitas, que exigem jeito trepador e sentido de equilíbrio.

PASTORA: Pôr-se-ão, como gestores do ensino aberto, nas escolas, o lavrador e o ferreiro, o ferrador, o caiador e o marceneiro, que orientarão tecnicamente em boa língua castiça, além de fornecerem os escadotes para o equilíbrio.

DEMOCRATA: Em tudo haveis pensado, Excelência. E cuidais que essa forma de ensino favorece a formação de médicos e de engenheiros?

PASTORA: Como não? Os hábitos de análise dos materiais em decomposição como o estrume, ou as ligas como o aço, despertam no aluno o interesse pelo estudo das células, e o dos corpos em estudos já mais avançados. Contudo, parece-me secundária a formação de médicos e engenheiros num país como o nosso, de acentuados recursos agropecuários.

DEMOCRATA: Sem dúvida que os hábitos de trabalho físico neste território com tão saudável escassez de poluição, preservam notoriamente a saúde, o que exclui os médicos.

PASTORA: E o retorno à enxada e ao martelo, foice e outros instrumentos tão antigos exclui igualmente os engenheiros.

DEMOCRATA: Em tudo haveis pensado, Excelência, e tendes razão como sempre. Por isso as consultas externas nas nossas Caixas de Previdência e outros organismos de medicina socializante se efectuam num ápice, o que comprova a robustez física do nosso povo.

PASTORA: Outro problema me preocupa mais. Para a instauração de uma democracia efectiva no nosso país, pensei em chamar ao governo os meus familiares e os homens bons da minha aldeia. Cada um desempenhará o cargo competente, e desta forma a democracia não será mais uma palavra vã, mas bem à nossa medida.

DEMOCRATA: Excelente ideia, de um alcance longo, que mergulha nas fundas raízes da palavra.

PASTORA: Sinto igualmente saudades das minhas ovelhas e dos meus recos, por isso vos peço que façais transportar a aldeia em peso, com os seus homens e as suas bestas, para os meus paços.

DEMOCRATA: Assim se fará, Excelência.

(Repete a música do DAILI-DOU.)


QUADRO V

(Sala das Investiduras. Os homens bons da aldeia formam semi-círculo, em trajes domingueiros. Cada um deslocar-se-á, a seu tempo, para junto da PASTORA, retomando posteriormente o seu lugar. A PASTORA, de longo manto, ao centro, vai-lhes entregando as Pastas respectivas, ao som dos guizos dos rebanhos, em surdina.)

PASTORA: A vós, meu pai, que de sol a sol mourejáveis na nossa aldeia, e que tão correctamente distinguis os terrenos de semeadura dos estéreis, designo-vos Ministro da Pradaria Nacional, cônscia de que os campos irão florir em pujança, entregues nas justas mãos reformadoras.

CORO DO PARTIDO: Justiça foi feita a tempo!
Glória a Deus, nos Altos Céus!

PASTORA: A vós, meu bem, que nas águas ora cristalinas ora turvas da nossa terra vos dedicáveis frequentemente à pesca das bogas, faço, com emoção, Ministro da Pescaria Nacional.

CORO DO PARTIDO: Justiça foi feita a tempo!
Glória a Deus, nos Altos Céus!

PASTORA: A vós, tio Joaquim, que como emigrante longe do solo pátrio suastes o pão amargo do servilismo ao estrangeiro, nomeio-vos Ministro da Cordialidade Internacional.

CORO DO PARTIDO: Justiça foi feita a tempo!
Glória a Deus, nos Altos Céus!

PASTORA: A vós, tio João, apaziguador das querelas do povo da nossa aldeia que frequentemente explodiam com arreganho e hombridade, designo-vos Ministro da Cordialidade Nacional.

CORO DO PARTIDO: Justiça foi feita a tempo!
Glória a Deus, nos Altos Céus!

PASTORA: A vós, tio Romão, que pacientemente ao longo da vossa vida fostes juntando os tostões no interior do vosso colchão de palha moída, distingo-vos com o cargo de Ministro do Capital Nacional e Internacional.

CORO DO PARTIDO: Justiça foi feita a tempo!
Glória a Deus, nos Altos Céus!

PASTORA: A vós, tio Zeferino, que com alegres histórias maliciosas divertíeis os serões das nossas desfolhadas, confio a Pasta melindrosa da Promoção Nacional.

CORO DO PARTIDO: Justiça foi feita a tempo!
Glória a Deus, nos Altos Céus!

PASTORA: A vós, tio Francisco, que por falta de transporte, costumáveis andar à boleia pelos rudes caminhos da nossa aldeia, elejo-vos com simpatia, Ministro do Transporte Nacional.

CORO DO PARTIDO: Justiça foi feita a tempo!
Glória a Deus, nos Altos Céus!

PASTORA: A vós, tio José, que especial jeito reveláveis para a aquisição gratuita de produtos no minimercado da nossa aldeia, concedo a pesada Pasta do Comércio Nacional e Internacional.

CORO DO PARTIDO: Justiça foi feita a tempo!
Glória a Deus, nos Altos Céus!

PASTORA: A vós, tio Crispim, de tão notável gosto para a fabricação cuidada de anzóis e redes, em cujos fios profusamente envolvíeis os vossos ouvintes maravilhados, confiro a Pasta da Indústria Nacional.

CORO DO PARTIDO: Justiça foi feita a tempo!
Glória a Deus, nos Altos Céus!

PASTORA: A vós, tio Manuel, que indignado com os sucessivos atropelos à ordem, dos vossos concidadãos, gostosamente os denunciáveis ao regedor da nossa aldeia, nomeio, com particular empenho, Ministro da Fiscalização Nacional.

CORO DO PARTIDO: Justiça foi feita a tempo!
Glória a Deus, nos Altos Céus!

(O coro dos guizos faz-se mais nítido.)

PASTORA: De todos vós, Senhores Ministros aqui reunidos, amplo apoio pretendo para a dolorosa missão de governar que nos cabe e nos une num sagrado objectivo de servir democraticamente a nossa pátria, entregue, com justiça e em boa hora, à ampla maioria popular.

(Guizos.)

FINAL
Coro do Partido:

Neste país transformado
Por revolução de flores
Que aniquilou prepotências
E irmanou ricos e pobres
Trabalhadores e gestores
Num ideal renovado
De comum realização
Só se escuta o martelar
Dos malhos dos ferradores
Dos maços dos calceteiros
E os gritos dos operários
E os olés dos boieiros
E o chocalhar das ovelhas
E os protestos dos doutores
E os risos dos proletários
E os discursos partidários
E o gorjear dos cantores.
Pelas ruas transformadas
Em caminhos pedregosos
Onde as flores são espontâneas
E os frutos tão saborosos,
Brotam as almas mais cândidas
E os sentimentos mais soltos.
Eis a mensagem, senhores,
Da nossa festa das flores.

(Assim fenece a farsa).


Era assim em 1979. Não é totalmente assim em 2009. A CEE / UE possibilitou a transformação dos caminhos em autoestradas vertiginosas. E nós apressámo-nos a “soltar” os sentimentos com cada vez mais arreganho - o nosso "salero".

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