segunda-feira, 9 de março de 2009

Pedagogia do erro (cont.)

Retorno à vaca fria, ou aos meus carneiros, para utilizar uma linguagem do foro zoológico na designação do assunto em questão – os erros do magalhães – que, volto a frisar, não completei no texto anterior, por excesso dos caracteres exigidos em caso de participação dos leitores na coluna a eles reservada.
Fez-se um extremo burburinho em torno dos tais erros e até se criticou Sócrates por, deslumbrado pelo fulgor do seu aparelho técnico, ter descurado as questões da correcção linguística, mas, afinal, não parece isso de espantar numa figura de relevo nacional, que protagonizou as alterações da escrita do português, já com a ideia fisgada da criação do magalhanês de seu prestígio pessoal.
Não há muito li também uma frase que vem em abono das cogitações linguísticas do nosso Primeiro Ministro, ao alegar que os pontapés na gramática são tão belos como o nascer de uma criança ou, mais liricamente – (porque creio que se não enxerga isso tão bem, a menos que haja telescópio ao pé) – o nascer de uma estrela, frase incontornável, de tão desmedida, que me deu a ânsia de demonstrar também as minhas capacidades observadoras da nossa revolução cultural, como o próprio Mao não desdenharia de a ter providenciado. Assim, transcrevo um excerto de uma peça escrita nos anos setenta, após o desmanchar caótico das nossas convicções nacionalistas, e das nossas vidas vandalizadas. O tamanho excepcional do texto implica, naturalmente, que ele não será enviado para a coluna dos leitores, por via dos cortes.
A peça – “Exercício Escolar” – pretende simbolizar a criação de um novo “status quo”, pondo em destaque uma figura de Pastora que, inicialmente modesta e sem ambições, se deixa tentar pela voz satânica do Democrata, passando a governar com a competência dos seus interesses pessoais, tal Sancho Pança a sua “Ilha da Baratária”, embora este com um senso moral superior. Peça demonstrativa de qualidades proféticas que não são de escutar, quais as de Cassandra preconizando, em vão, a queda de Tróia:

“....DEMOCRATA: Sendo assim, podemos tranquilizar-nos. Jamais nos faltarão recursos. Um outro problema de certa acuidade é o da reforma do ensino. Como sabeis, pretende-se fazer da escola um meio directo de intervenção do jovem aluno na sociedade a que ele pertence com aguçado sentido de responsabilidade. O facto tem, contudo, levantado celeuma, sobretudo entre professores cuja especialidade dificilmente se coaduna com um ramo de ensino de maior abertura física.
PASTORA.: Não noto a gravidade da situação. Para o ensino activo das escolas, levar-se-ão os materiais necessários à formação dos verdadeiros homens de amanhã. A semente e os adubos para a transformação dos campos de recreios anteriores em campos agrícolas, de superior utilidade nacional e igualmente favorecedores da ginástica escolar. O ferro e o aço para os ferreiros e os ferradores das alimárias, aumentadas estas em função dos transportes públicos. A cal para os pintores. Em suma, será a escola aberta uma vasta forja de cabouqueiros de um país em renovação.
DEM.: Mas os tais professores, Excelência, os de especialidades incompatíveis com o ferro e os adubos?
PAST.: Não existem tais incompatibilidades. Os professores de línguas explicarão na língua da sua especialidade os nomes das coisas e das atitudes que forem utilizando na sua esfera de acção, os de história, contarão os feitos brilhantes dos heróis, ligados ao esplendor do metal das armaduras e dos arreios das cavalgaduras, os de filosofia explicarão ao lançar da semente, o mistério metafísico da criação. Quanto aos de ciências, fácil se torna imaginar as alianças possíveis entre os estudos concretos e os estudos abstractos.
DEM.: Todavia, Excelência, deveis contar com a inadaptação dos professores mais idosos, ou dos de menor robustez física. Especialmente por altura das podas e das colheitas, que exigem jeito trepador e sentido de equilíbrio.
PAS.: Pôr-se-ão, como gestores do ensino aberto, nas escolas, o lavrador e o ferreiro, o ferrador, o caiador e o marceneiro, que orientarão tecnicamente em boa língua castiça, além de fornecerem os escadotes para o equilíbrio.
DEM.: Em tudo haveis pensado, Excelência. E cuidais que essa forma de ensino favorece a formação de médicos e de engenheiros?
PAS.: Como não? Os hábitos de análise dos materiais em decomposição como o estrume, ou as ligas como o aço, despertam no aluno o interesse pelo estudo das células, e o dos corpos em estudos já mais avançados. Contudo, parece-me secundária a formação de médicos e engenheiros num país como o nosso, de acentuados recursos agropecuários.
DEM.: Sem dúvida que os hábitos de trabalho físico neste território com tão saudável escassez de poluição, preservam notoriamente a saúde, o que exclui os médicos.
PAS.: E o retorno à enxada e ao martelo, foice e outros instrumentos tão antigos exclui igualmente os engenheiros.
DEM.: Em tudo haveis pensado, Excelência, e tendes razão como sempre. Por isso as consultas externas nas nossas Caixas de Previdência e outros organismos de medicina socializante se efectuam num ápice, o que comprova a robustez física do nosso povo...”

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