sábado, 14 de agosto de 2010

Ainda o livro de Maria do Carmo Vieira

Tenho uma sobrinha na Suíça, cujos filhos mais novos entraram no ensino básico. A aprendizagem é feita à base de leitura, cópias, ditados, pequenas composições, sobre textos ou visitas de estudo, gramática – suponho que a normativa, com as nomenclaturas da morfologia e da sintaxe, memorização de pequenos poemas, tabuadas, contas, também de cabeça, problemas... Muita incidência, pois, sobre a língua e sobre a aritmética. Mas as contas de dividir apenas no 5º ano. Tudo isso através de estratégias várias, entre as quais os concursos de velocidade, sem, aparentemente, receio de traumatizarem as crianças menos preparadas. É gente que deseja construir gente - enérgica, com cabeça, com desenvoltura, com capacidade. Terão, certamente, meios para colmatar as deficiências dos menos aptos que poderão também enveredar por vias mais de acordo com as suas aptidões. A memorização torna-se, pelos vistos, uma táctica imprescindível para a aquisição de domínios do saber.
Em Portugal substituiu-se a memorização pela criatividade retirada do nada, a seriedade do que se veicula como saber, por distracção lúdica, sem respeito pelo saber real. Quanto à permissividade ao erro foi, talvez, a técnica pedagógica que mais me indignou por alturas do meu estágio pós-abril de 74. Chamava-se “pedagogia do erro”, fazendo apelo à inteligência do aluno, para não lhe impor a memorização como acto psitacístico, gerador de papagaios.
Mas a TLEBS já não se importa, paradoxalmente, com tal psitacismo, desde que ele seja sancionado pela TLEBS, assunto de que trata o livro de Maria do Carmo Vieira – O Ensino do Português no capítulo II, com o título “Gramática e Terminologia Linguística”.
Põe esta em causa o acervo de iniquidades em que se tornou o ensino da língua portuguesa, com a adopção da “Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário”(TLEBS), a qual destrói fatalmente a clarividência com que a gramática normativa, fundamentada numa estruturação de origem clássica greco-latina – na sua repartição por sons, formas das palavras ou sua função nas estruturas frásicas – apunha à compreensão da língua e dos textos e que os novéis buriladores de nomenclaturas de um preciosismo ridículo e tosco, baniram, a pretexto de que tudo isso de divisórias gramaticais não passa de velharias a pôr de parte.
Em vez delas criaram nomenclaturas de uma monstruosidade brincalhona que de modo algum servem o objectivo de motivar os alunos – o que não interessa, de resto, aos tais pseudo-linguistas da nossa brincadeira especializada - mas menos ainda o de lhes esclarecer as mentes em relação às mensagens dos textos – o que também não é objectivo desses tais, que preferem contribuir para a destruição sistemática das criaturas futuras obreiras de uma nação cada vez mais sem sentido, no seu nível de atraso endémico.
Os esclarecimentos da professora Maria do Carmo Vieira sobre todo esse processo de substituição de nomenclaturas gramaticais por linguísticas são elucidativos das aberrações a que se pode chegar quando o rigor e a seriedade dão lugar a uma tenebrosa palhaçada que não é mais do que farsa educativa para desprestigiar os professores e imbecilizar os alunos.
Permito-me transcrever algumas dessas palhaçadas do novo caos “cultural”:

(Das pgs. 37 e segs): «Não poderia deixar de enumerar algumas das inovações linguísticas que os professores operacionalizaram nos manuais do Básico e do Secundário, obedecendo, certamente contrariados, ao estipulado nos programas. Eis alguns exemplos:
“Livro” aparece classificado não como “substantivo” (dado que a velha designação acabou), mas como "nome comum masculino do singular”, a que acrescentou “contável, não humano e inanimado”.
“Modificadores” é a nova designação para os advérbios, subdivididos em várias “subclasses” que se designam por: “advérbios disjuntos” (advérbios de frase), “adjuntos” (advérbios de predicado) e “conectivos”. E repare-se nas várias subclasses semânticas em que se agrupam os advérbios disjuntos:
- “Advérbios disjuntos avaliativos”:
felizmente;
- “Advérbios disjuntos modais”:
possivelmente;
- “Advérbios disjuntos reforçadores da verdade da asserção”: evidentemente;
- “Advérbios disjuntos restritivos da verdade da asserção”: supostamente.

São ainda os alunos obrigados a consciencializar actos de fala, os “actos ilocutórios”, divididos em cinco categorias: “Assertivos”, “Directivos” (divididos em “Directos” e “Indirectos”), “Compromissivos”; “Declarativos”, “Expressivos”. Outra nova exigência é o conhecimento das relações semânticas de “hiperonímia” e “hiponímia”, “meronímia” e “holonímia”, conceitos que os alunos terão de adquirir e cujos exemplos retirei de um manual do 10º ano (havendo-os também no 7º): “Cão é hipónimo de animal; assim animal é hiperónimo de cão; nariz faz parte de rosto; assim, nariz é merónimo de rosto, sendo rosto holónimo de nariz”. E o que dizer em relação às diferentes classificações do “aspecto verbal”: Incoativo, inceptivo, cessativo, iterativo, frequentativo?»

Sim, na gramática normativa também se falava – mais outrora do que depois - de substantivos epicenos, sobrecomuns e comuns-de-dois, falava-se em derivação parassintética, na questão da composição por afixos, em enclíticas divididas em proclíticas, apoclíticas e mesoclíticas, em sufixos verbais incoativos, iterativos, frequentativos, etc, e havia quem se indignasse com a inutilidade dessas distinções (que afinal até esclareciam de forma inteligente), tal como se indignavam com as datas históricas, os rios e os cabos geográficos ou o estudo da mineralogia como inutilidades para um futuro de realização ainda incerta.
Como se só o que é funcional e pragmático fosse imprescindível em termos de educação para o saber, nas idades juvenis! Como se o despertar gradual para as coisas do passado e da vida e do homem não fosse objectivo imprescindível na formação de seres racionais!
Tudo isso que se ensinava, além das disciplinas que foram desaparecendo, eram marcos do saber que aclarava e ajudava ao desenvolvimento, sem os arabescos de um pedantismo monstruoso e babélico, como esses da TLEBS, criados para confundir e indignar e subverter e enganar, esquecidos os linguistas pedantes das contingências da massificação que protagoniza o ensino actual, pouco propício a tais lucubrações linguísticas, que o excerto supra, de Maria do Carmo Vieira, deixa antever.

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