Para efeitos de comentário aos considerandos de Maria do Carmo Vieira sobre o papel da família na educação dos filhos, começo por transcrever a parte final de uma Exposição que em 11/5/1976 dirigi ao ministro da Educação e Investigação Científica, oito dias depois de ter sido colocada no Liceu Passos Manuel. Tal Exposição está contida na III Parte do Livro “Cravos Roxos – Croniquetas verde-rubras” (1981), que tem por título “Memórias dum Professor do Liceu”, constituindo a sua introdução:
“(...) Senhor Ministro, não tenho veleidades de esperar qualquer resultado positivo desta minha exposição. A partir do momento em que se destituíram os professores da sua autoridade docente e se concederam todas as liberdades aos discentes, o ensino não passa de uma fachada de ilusão neste país, e só lamento os pais – sou um deles – que desejando uma boa formação espiritual e moral para os seus filhos, colhida também na escola, os têm entregues a uma autêntica instituição de degradação moral sem precedentes, e deixando naturalmente prever catastróficas consequências futuras. Lamento igualmente os alunos – os bem formados e os aplicados – que não encontram aí meio para sobreviverem.
O único resultado que talvez venha a obter com a minha intervenção junto de V. Exª, serão inquéritos e novos vexames – as crianças têm sempre razão (de resto os próprios alunos justificaram essa sua razão no meu “julgamento” pelo motivo de estarem em maioria, afirmação que jamais me passou pela cabeça pôr em dúvida, creia-me, Sr. Ministro) – onde os alunos pronunciarão novos dislates e insolências (uma instintiva delicadeza impede-me de usar o termo “bacoradas”) e onde eu não terei medo de me defender, mas tão somente uma pena infinita, por ver o meu país desgraçado em vias de atingir o caos total, onde os jovens não aprendem a tornar-se cidadãos autênticos em que liberdade signifique dignidade e respeito próprio e alheio, mas apenas um descontrolado despudor absoluto.
Como mulher livre que sempre fui, respeitando-me e respeitando por isso os outros, sem alienação de espécie alguma, recuso-me a pactuar com este estado de perversão que a falta de autoridade provocou.
Por isso dirijo a v. Exª este manifesto, como um grito de dor e um apelo ao bom senso dos homens que governam o meu país.”
O objectivo da citação prende-se à pertinência dos avisos de Maria do Carmo Vieira, para significar, todavia, que a família modelo dos nossos dias, talvez não tenha muito a ver com o modelo de família convencional em que fomos educados. E isso nos remete para o movimento de subversão das estruturas morais em que consistiu o da Revolução dos Cravos. Embora nem todas as escolas do país tenham alinhado na permissividade da ignomínia que se viveu nos primeiros anos, a indisciplina foi-se impondo gradualmente, colmatada nos tempos actuais por uma quase total anarquia, que tem a ver com a falta de educação nas casas, com a falta de autoridade nas escolas.
Os pais de agora foram muitos dos que há 35 anos colaboraram gostosamente no massacre dos professores que pretendiam prepará-los para o mundo da cultura, por dever profissional. Muitos desses talvez tenham singrado bem, graças a um qualquer encosto, outros, quem sabe, talvez não tenham conseguido ultrapassar os males de uma mudança tão radical como foi a nossa, abertas as comportas do non-sens, que atingiram o Absurdo de que trata Maria do Carmo Vieira.
Muitos desses jovens, mas igualmente outros, educados dentro dos sãos princípios, são hoje reféns de um status empresarial que, na esteira do que faz a Escola com os seus professores - os explora com uma carga horária excessiva, sem lhes dar tempo ao acompanhamento da família e à sua própria formação. Nós não precisamos de formação, não temos tais interesses formativos, que faz que se retirem milhares de escolas neste país, enquanto em França se fundam clubes de “Questions pour un champion”, ou na Alemanha, em qualquer pequeno burgo, se reunem as gentes em torno de um copo que seja, para falarem de coisas de interesse... E por aí fora, nesse mundo menos deficitário de valores.
Os patrões de cá confiam no desinteresse intelectual do povo de cá, não vale a pena dar-lhes horas para acompanharem os filhos ou se dedicarem a leituras. O melhor mesmo é ocupá-los a trabalhar para eles, o que será duplamente útil: os patrões ganharão mais dinheiro, os empregados não caem nos vícios da desocupação – copos, drogas, facadas extra-conjugais, tudo menos o estudo para que não foram habituados....
Vejamos o expressivo seguinte passo de Maria do Carmo Vieira, com que concluo a referência ao livro que todo ele importa ler, nos seus registos de seriedade e conhecimento de causa, repetindo algumas frases do texto anterior, para melhor integração no tema:
“... A coberto da protecção se vai efectivamente desprotegendo, descurando ao mesmo tempo a instrução e a educação. Na verdade, justifica-se, e com alguma hipocrisia, que desse modo se ajudam os pais, quando afinal os estão a demitir da sua obrigação de educadores, facilitando simultaneamente a existência de trabalhos, quantas vezes sem horário, que lhes negam o tempo livre para a privacidade familiar e parta os seus interesses pessoais. Nesta postura esconde-se a vontade de concretizar o desenvolvimento de uma sociedade de consumo, que aliena e contribui para “enfraquecer o papel da família, como suporte da tradição e da educação». Por sua vez, os filhos, desorientados, porque sujeitos ao abandono e sem experiência de limites e de autoridade, bem como de uma relação ética (o que acontece também na escola), tornam-se presas fáceis de discursos manipuladores, que lhes facultam a satisfação imediata dos seus desejos, deixando-se ingenuamente seduzir por uma falsa liberdade de agir, que os conduz, crendo-se autónomos, a situações de risco num mundo para o qual deveriam ser oportunamente preparados, com vista à sua plena integração e consequente intervenção.”
Vale a pena ler a pequena obra de Maria do Carmo Vieira que desmonta o artifício maquiavélico forjado nestes últimos anos, em torno dos falsos conceitos inovadores da Escola, na realidade com o prejuízo da nação presente e e da nação futura, no desvio propositado do bom senso, do bom gosto, do sério, do respeito humano.
Eu tinha quarenta anos quando fiz a minha exposição a um qualquer ministro da Educação e Investigação Científica de então, que me não permitia ensinar. Os professores hoje protestam, sofrem, creio que bem mais do que eu sofri então. E continuam a ensinar, com maior ou menor adaptação às novidades. Eu adaptei-me, porque gostei do que fiz, gostei das técnicas, gostei das matérias, e soube impor-me, apesar das rebeldias dos alunos, que também se foram adaptando. Recordo a escola, recordo os alunos, recordo as matérias, recordo os casos. Com prazer.
Mas hoje ninguém pode gostar de ser professor, tal a extensão das exigências, das cargas horárias, do desrespeito humano, da animalidade do que se impõe como primordial.
Por isso os professores deverão lutar, o país deverá lutar. Pela mudança.
“(...) Senhor Ministro, não tenho veleidades de esperar qualquer resultado positivo desta minha exposição. A partir do momento em que se destituíram os professores da sua autoridade docente e se concederam todas as liberdades aos discentes, o ensino não passa de uma fachada de ilusão neste país, e só lamento os pais – sou um deles – que desejando uma boa formação espiritual e moral para os seus filhos, colhida também na escola, os têm entregues a uma autêntica instituição de degradação moral sem precedentes, e deixando naturalmente prever catastróficas consequências futuras. Lamento igualmente os alunos – os bem formados e os aplicados – que não encontram aí meio para sobreviverem.
O único resultado que talvez venha a obter com a minha intervenção junto de V. Exª, serão inquéritos e novos vexames – as crianças têm sempre razão (de resto os próprios alunos justificaram essa sua razão no meu “julgamento” pelo motivo de estarem em maioria, afirmação que jamais me passou pela cabeça pôr em dúvida, creia-me, Sr. Ministro) – onde os alunos pronunciarão novos dislates e insolências (uma instintiva delicadeza impede-me de usar o termo “bacoradas”) e onde eu não terei medo de me defender, mas tão somente uma pena infinita, por ver o meu país desgraçado em vias de atingir o caos total, onde os jovens não aprendem a tornar-se cidadãos autênticos em que liberdade signifique dignidade e respeito próprio e alheio, mas apenas um descontrolado despudor absoluto.
Como mulher livre que sempre fui, respeitando-me e respeitando por isso os outros, sem alienação de espécie alguma, recuso-me a pactuar com este estado de perversão que a falta de autoridade provocou.
Por isso dirijo a v. Exª este manifesto, como um grito de dor e um apelo ao bom senso dos homens que governam o meu país.”
O objectivo da citação prende-se à pertinência dos avisos de Maria do Carmo Vieira, para significar, todavia, que a família modelo dos nossos dias, talvez não tenha muito a ver com o modelo de família convencional em que fomos educados. E isso nos remete para o movimento de subversão das estruturas morais em que consistiu o da Revolução dos Cravos. Embora nem todas as escolas do país tenham alinhado na permissividade da ignomínia que se viveu nos primeiros anos, a indisciplina foi-se impondo gradualmente, colmatada nos tempos actuais por uma quase total anarquia, que tem a ver com a falta de educação nas casas, com a falta de autoridade nas escolas.
Os pais de agora foram muitos dos que há 35 anos colaboraram gostosamente no massacre dos professores que pretendiam prepará-los para o mundo da cultura, por dever profissional. Muitos desses talvez tenham singrado bem, graças a um qualquer encosto, outros, quem sabe, talvez não tenham conseguido ultrapassar os males de uma mudança tão radical como foi a nossa, abertas as comportas do non-sens, que atingiram o Absurdo de que trata Maria do Carmo Vieira.
Muitos desses jovens, mas igualmente outros, educados dentro dos sãos princípios, são hoje reféns de um status empresarial que, na esteira do que faz a Escola com os seus professores - os explora com uma carga horária excessiva, sem lhes dar tempo ao acompanhamento da família e à sua própria formação. Nós não precisamos de formação, não temos tais interesses formativos, que faz que se retirem milhares de escolas neste país, enquanto em França se fundam clubes de “Questions pour un champion”, ou na Alemanha, em qualquer pequeno burgo, se reunem as gentes em torno de um copo que seja, para falarem de coisas de interesse... E por aí fora, nesse mundo menos deficitário de valores.
Os patrões de cá confiam no desinteresse intelectual do povo de cá, não vale a pena dar-lhes horas para acompanharem os filhos ou se dedicarem a leituras. O melhor mesmo é ocupá-los a trabalhar para eles, o que será duplamente útil: os patrões ganharão mais dinheiro, os empregados não caem nos vícios da desocupação – copos, drogas, facadas extra-conjugais, tudo menos o estudo para que não foram habituados....
Vejamos o expressivo seguinte passo de Maria do Carmo Vieira, com que concluo a referência ao livro que todo ele importa ler, nos seus registos de seriedade e conhecimento de causa, repetindo algumas frases do texto anterior, para melhor integração no tema:
“... A coberto da protecção se vai efectivamente desprotegendo, descurando ao mesmo tempo a instrução e a educação. Na verdade, justifica-se, e com alguma hipocrisia, que desse modo se ajudam os pais, quando afinal os estão a demitir da sua obrigação de educadores, facilitando simultaneamente a existência de trabalhos, quantas vezes sem horário, que lhes negam o tempo livre para a privacidade familiar e parta os seus interesses pessoais. Nesta postura esconde-se a vontade de concretizar o desenvolvimento de uma sociedade de consumo, que aliena e contribui para “enfraquecer o papel da família, como suporte da tradição e da educação». Por sua vez, os filhos, desorientados, porque sujeitos ao abandono e sem experiência de limites e de autoridade, bem como de uma relação ética (o que acontece também na escola), tornam-se presas fáceis de discursos manipuladores, que lhes facultam a satisfação imediata dos seus desejos, deixando-se ingenuamente seduzir por uma falsa liberdade de agir, que os conduz, crendo-se autónomos, a situações de risco num mundo para o qual deveriam ser oportunamente preparados, com vista à sua plena integração e consequente intervenção.”
Vale a pena ler a pequena obra de Maria do Carmo Vieira que desmonta o artifício maquiavélico forjado nestes últimos anos, em torno dos falsos conceitos inovadores da Escola, na realidade com o prejuízo da nação presente e e da nação futura, no desvio propositado do bom senso, do bom gosto, do sério, do respeito humano.
Eu tinha quarenta anos quando fiz a minha exposição a um qualquer ministro da Educação e Investigação Científica de então, que me não permitia ensinar. Os professores hoje protestam, sofrem, creio que bem mais do que eu sofri então. E continuam a ensinar, com maior ou menor adaptação às novidades. Eu adaptei-me, porque gostei do que fiz, gostei das técnicas, gostei das matérias, e soube impor-me, apesar das rebeldias dos alunos, que também se foram adaptando. Recordo a escola, recordo os alunos, recordo as matérias, recordo os casos. Com prazer.
Mas hoje ninguém pode gostar de ser professor, tal a extensão das exigências, das cargas horárias, do desrespeito humano, da animalidade do que se impõe como primordial.
Por isso os professores deverão lutar, o país deverá lutar. Pela mudança.
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