segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Uma espécie de “circo de Gavarnie”

Já foi há dias que a minha amiga se exprimiu com muita iracúndia contra “esse tal Rangel” mas só hoje me trouxe o documento justificativo do seu estado de espírito enervado que, ainda ignorante do acontecido, eu acusei de pouco cristão, porque, sem falsa modéstia, sempre me orientei pelos ideais da santa Bíblia, apanhados sobretudo nas parábolas que se reportam aos trabalhos de Jesus na terra. Disse, então, a minha amiga:
- Como é possível que um jornalista só veja assim? Talvez seja atrasadinho. Tudo tão escandaloso e o gajo não vê! Mas não é que o Rangel é o único jornalista que defende o Sócrates?
Eu achei que não era o único, mas transmiti o caso ao meu marido, para ter a certeza, porque não gosto de fazer afirmações levianas.
- Ah! Esse está bem! - disse o meu marido. - É um espertalhão que se sabe encostar aos outros espertalhões.
Acrescentou ainda uns pormenores fofoqueiros sobre a que fora sua mulher – Margarida Marante – que fora uma moça brilhante, mas talvez não espertalhona e deixou de ser vista na televisão, com pena minha, que admiro as inteligências reais ...
Pus-me, pois, a ler o texto do Emídio Rangel – Jornalista – “Caluniar não compensa...”, saído no Correio da Manhã de 31/7, na coluna “Coisas do Circo”.
Fiquei siderada ante o tom de bajulação ao PM, subentendido no discurso inflamadamente acusatório usado por Rangel - o tal - contra os caluniadores do Sr. PM. Discurso muito verrinoso, feito aparentemente de bons princípios, ao modo polémico que tantos polemistas, nos séculos passados, usaram, embora, talvez, sem idêntica licenciosidade e arreganho daqueles, pois que isso pressupõe domínio linguístico e poder satírico, e Rangel denuncia mais o domínio da coluna, vergando-a perante quem a ginástica compensa.
Cito, entre os tais polemistas do passado, o padre José Agostinho de Macedo, que não se poupou aos mimos da sua violência esclarecida, em, por exemplo, “A Besta Esfolada”, “A Tripa Virada”..., de que transcrevo, sobre “A Demagogia dos Regeneradores”, o excerto seguinte, do primeiro livro citado, tão actual me parece:

“... Aparecem na grande cena do Mundo certos demagogos, certos revolucionários, que no fundo da sua alma não querem nem Rei, nem Roque, nem Constituição, nem Ordenação, nem forma alguma de Governo que não seja uma tumultuosa e mal entendida democracia. Como verdadeiros camaleões, tomam sempre diversas cores e diferentes aspectos; dão tombos como as enguias, mas quem olha para elas e para os tombos sempre descobre o rabinho, que se inclina e toma a direcção da água. Inculcam e assoalham planos de reformas, procuram embair os incautos com mudanças e melhoramentos, fazem arear as classes, que a soberba julga ínfimas no Povo, com as nivelações e igualdades diante da lei, à ilharga da lei; chovem as garantias dos direitos de cidadãos aos forçados das galés e aos lava-peixes; alargam e profundam todas as valas, abrem todos os canais, enchem o Reino de cereais aqui nascidos e criados; em cada charco de água levantam uma fábrica de papel e outra de chitas: o bicho-carpinteiro da indústria formiga e se revolve por toda a parte; em cada aldeia são logo instaladas as Escolas de Atenas e o Instituto de Bolonha; a navegação estende-se tanto, e com tanta actividade, que prometem ir num bote do Cais de Belém muito para lá das Terras Austrais; prometem tanto ouro e tanta prata que, como no reinado de Salomão, as calçadas das ruas serão de ouro e a prata será reputada como a lama das mesmas ruas; e, fartos em promessas, asseguram que só eles desceram dos céus para tirarem o Mundo do abismo, do servilismo, do despotismo, do absolutismo e das fogueiras da Inquisição, e, o que é mais que tudo isto, das fateixas dos padres da Companhia.
Os povos, que, enfim, não são tão tolos como eles os querem fazer ou querem que sejam, começam a desconfiar de tanta manteiga e de tão palavrosos impostores; e, pelo que eles começam a fazer e a decretar, conhecem que o fim máximo destes perturbadores do sossego das nações é roubar e dominar.....”


É um texto antigo, o acima transcrito, que cita exemplos de indústrias fabris nem todas semelhantes às de hoje, mas as indústrias comportamentais pouco diferem.
Não, não é um texto decente, o de Emídio Rangel, neste nosso “circo de Gavarnie”, tão amplo, tão antigo, tão espantosamente aterrador no seu aspecto de perenidade. E de imutabilidade, pelo menos o nosso.

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