segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Não temos floresta. São árvores.

A conversa começou mal para os meus brios intelectuais. De papel e caneta em punho, perguntei à minha amiga por “notícias do meu país”. Devolveu a parada, com a interrogação final da sua resposta, pondo em dúvida o meu grau de informação, mas ultrapassei a sua ironia, embrenhada que estava na recolha dos seus argumentos:
- Bom, as notícias do meu país deixam qualquer um arrepiado. Não a deixam a si?
Não percebi qual o ponto agudizante da sensibilidade da minha amiga, tanta a chuva de pontos sensibilizadores do nosso bombardeio diário, e hesitei:
- Porque diz isso?
- Porque é que eu digo, do país? Não vê televisão nenhuma, nenhuma, nenhuma? O país está a arder! Não é Paris, é país!
- Mas os fogos têm-se apagado mais depressa, disse o nosso PM, e mesmo o nosso PR também frisou isso.
- Não ouvi. Mas aquilo é um horror! Como nunca aconteceu. É o pior ano de todos! É o que já consumiu mais de há três anos para cá, continuou a minha amiga com as notícias fresquinhas colhidas pela manhã. E continuou:
- Apanharam dois ontem. Têm outros presos.
- E não lhes lavam a alma e o corpo com panelas de água a ferver, à maneira dos antropófagos dos desenhos de brincadeira, panelas postas em cima da fogueira, com os meninos do Huambo à roda da fogueira aprendendo o que custou a liberdade de incendiar a floresta?
A minha amiga não alinhou na graça, chamado o seu espírito antes, às altas preocupações financeiras e humanitárias:
- O prejuízo económico é tão grande! Como é que o país sai duma coisa destas? Eu só me espanta os bombeiros! São seres humanos iguais aos outros. E lá estão a apagar os fogos. Estão de serviço permanente. Não precisam de despir aquela farda?
Esforcei-me por generalizar, para efeitos de auto-estima:
- Tantos fogos por aí, por esses países...
- A Rússia... Horrível! Os fogos na Austrália ... enormes! Mas são países enormes. Quando aquilo arde, arde a floresta. Os ricos costumam construir a sua vivenda no meio das árvores. Mas são países ricos, que se levantam. A nossa gente está a perder tudo. São os piores fogos de há três anos, disse um homem há pouco, em entrevista. O homem, como está na TV não aponta nada, mas dá a entender que foi tudo mal planeado. Passou um atestado de burros aos que planearam. Tudo zero. Dá vontade de perguntar: “E o burro sou eu?”
A minha amiga às vezes perde as estribeiras. E concluiu:
- Nós não temos floresta. São árvores. Porque se tivéssemos, já estava tudo engolido.
- Então ainda bem que não temos floresta, “só árvores”, afirmei, sem gaguejar, com a alegria verdadeiramente patriótica, e em lampejo evocativo do gaguejado “estrelados, só ovos” da peça “Amores de Poeta” do pobre Artur Corvelo de “A Capital” que tanta pilhéria provocaria nos entediados ouvintes. Olha se tivéssemos! Já tudo estaria engolido, tais como os ovos estrelados da marquesa de Alvarenga, na expressão do gago Visconde do Freixal da dita peça...
Não, não temos floresta, só árvores.

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