Uma
releitura do “Bonjour Tristesse” fez-me recordar a altura em que
Françoise Sagan pelos anos 50, andava eu por Coimbra, causara escândalo com uma
novela que breve se tornaria best-seller no mundo inteiro. Françoise Sagan tinha
a minha idade, quando o livro apareceu, admirei-lhe o engenho, quando mais
tarde a li, de com tanta sensibilidade e elegância exprimir um mundo jovem, de
bem-estar e liberdade, numa acção passada na Riviera francesa, era verão. O mundo
de uma adolescente, bem protegida quer economicamente quer afectivamente por um
pai sedutor e mundano, trocando facilmente de amantes, sem moral, pois, para
condenar as liberdades da filha Cecília, com quem estabelecera uma relação de
camaradagem despreocupadamente cúmplice.
Mas o novo
amor de Raymundo, o pai - Ana, mulher de superior educação e exigência de
princípios - faz que aquele decida desposá-la, na consciência de que seria essa
a mulher ideal para a orientação dos dezassete anos da filha, órfã de mãe desde
pequenina. À última amante – Elsa -, mais uma das facilmente descartáveis, que
não faziam sombra a Cecília – só resta fazer as malas e partir, mas o
predomínio de Ana sobre o espírito do pai, e a sua ingerência na sua própria
vida de adolescente livre, fá-la em breve engendrar um plano destruidor da
harmonia criada. Com uma perversidade caprichosa, combina com Elsa e um seu namorado,
uma falsa ligação amorosa, que destruindo as certezas do pai, relativamente ao
seu novo estatuto de seriedade sentimental, o fizesse, por ciúme, retomar nos
braços Elsa, num cenário conduzido com destreza por Cecília e apercebido de Ana,
que, desvairada, foge no carro e morre em acidente de estrada.
À tristeza
do arrependimento, ante o inesperado do desfecho, um acidente mortal
interpretado como suicídio pelo consciência pesada de Cecília, irá suceder o retomar das antigas cumplicidades,
com o pai avesso a imposições de orientação moral ou espiritual, um “bom
dia, tristeza” feito de amadurecimento penalizado, de criança perdida que
gradualmente ganhará, prevê-se, a sabedoria da indiferença cínica por valores
morais mais respeitáveis e tranquilizantes.
Uma obra
psicologicamente bem orientada, lembrando outras obras dos escritores
existencialistas franceses, que pelos anos 40 escreveram enredos com as suas
vivências pessoais, sobre os temas tabu da libertação da mulher e até do próprio
homem, como o da homossexualidade masculina e feminina, o repúdio pelos
convencionalismos burgueses ou a assumpção da responsabilidade individual num
universo sem Deus.
X
Faz hoje ,
25 de Fevereiro, 27 anos, a minha neta mais velha – Ana Margarida. Uma jovem
inteligente e viva, que em tempos, de Paris, escreveu num blog, - “3 da
Tarde” – e, posteriormente, noutro, cá – “Novelas de Lisboa” - pequenos
textos reveladores de maturidade, num humor subtil, não isento da consciência
do sofrimento em volta, e também da graça jovem de moça assumindo os seus
caprichos, sobretudo no capítulo das modas ou da frequência dos ambientes
livres, onde se conversa e se bebe um copo e se ri ou se expendem os temas das
experiências trazidas pelo turbilhão da vida e das leituras.
Uma
escrita simultaneamente simples e ambígua, cujo sintetismo denuncia todo um
mundo de sensibilidade na revolta contida, sem alarido, mas suavemente
sarcástica contra os males e as injustiças do mundo.
É
o caso da observação paradoxal dos finais do conto «O Engraxador de Sapatos»
com que a Ana Margarida concorreu ao concurso da editora “Alfarroba”, ”Conto
por Conto”, sendo uma dos quatro vencedores, conto publicado em
livrinho em 2010: “Com o passar dos tempos, a casa voltou a ficar
mais pequena: com mais batatas, mais maçãs, mais sopa, mais pão. Nunca voltou
ao tamanho de quando eram nove à mesa: o mais pequenino nunca voltou a acordar.”, a morte do irmão mais novo trazendo o repúdio
pelo espaço da tragédia, inegavelmente maior quando viviam mais apertados e com
menos fartura, mas todos vivos.
Um tema
social, bem diferente dos temas de desenvoltura e participação pessoal dos extraordinários
escritores dos anos quarenta e cinquenta, mas afinal todos eles de
intervencionismo, na sua originalidade e sentido crítico.
Trata-se de um
conto apenas, o da Ana Margarida, a grande distância, naturalmente, das outras
obras citadas, romances de cariz psicológico e filosófico. Mas é um conto rico
de observação, que pede a continuação para outras tentativas. Assim a vida laboral
de Ana o consinta.
Eis
o conto da Ana Margarida, que tem, apenso, no livro, a frase que o sintetiza,
bem expressiva do sentimento de desencanto por um espaço e um tempo que se
eternizam, numa “mesmice” encardida:
«A história de um engraxador de sapatos que se confunde com a fachada
lisboeta e que nunca tem nada para contar.»
«O Engraxador de Sapatos»
«Todos os dias, no Largo
dos Restauradores, estava sentado um engraxador de sapatos. Vivia do movimento
mecanizado dos seus braços, que engraxava com destreza qualquer sapato que
tivesse perdido o brilho. O seu braço fazia um movimento constante da esquerda
para a direita, umas vezes mais rápido, outras mais lento, consoante o tipo de
limpeza que fazia ao sapato.
Das mãos pouco se via. O
preto da graxa sobrepôs-se ao bege que em tempos lhas cobrira. Não se sabe o
dia exacto em que aconteceu. Deve ter sido ao longo dos dias, dos anos, sempre
a fazer o mesmo movimento, sempre a fazer a mesma coisa. Não havia sabão que
lhe devolvesse às mãos o tom esbranquiçado, porque o negrume estava entranhado
nos seus poros minúsculos. Não o incomodava.
O engraxador de sapatos
não tinha nenhuma característica especial. As peculiaridades são propriedade de
outros. Engraxava qualquer sapato que correspondesse à panóplia de tons que
possuía. Imensa panóplia, aliás. Lembrava-se do tempo em que os sapatos eram
exclusivamente pretos. A ciência que exigia o engraxar era a mesma. Limpar,
engraxar, dar lustro. Mas, ditaram os tempos que os sapatos ganhassem novas
cores, que teriam, tal como os sapatos pretos, a árdua tarefa de pisar a
irregular calçada da cidade. Hoje, embora sejam menos os fregueses, são mais as
cores disponíveis.
As pessoas andavam a
correr, ele engraxava a correr. Distraído, o freguês sentava-se no banquinho
lançando um áspero bom dia e colocando o pé a jeito. Olhava para o Blackberry,
lia, barafustava, telefonava, desligava, suspirava, olhava para o relógio,
abria o jornal, reflectia (pouco) sobre o que lia e agradecia com dinheiro e um
breve sorriso.
Ao engraxador de sapatos
apenas o sapato interessava. E no fundo, ao cliente também. Porque se o
engraxador não fizesse o seu trabalho, o breve sorriso rapidamente se
desvaneceria e, com ele, o dinheiro prometido.
A vida mostrava-se
simples, porque quando as coisas entram na rotina tornam-se simples. Tão
simples que parecem nem existir. É como se tudo sempre tivesse estado naquele
lugar. A senhora do quiosque parecia ter sempre sido senhora do quiosque e o
jornal “Metro” parecia ter sempre tido aquele lugar privilegiado ao lado do
vendedor de castanhas. O mesmo se passava com os gelados da Olá, o restaurante
do peixe fresco, as intermináveis emissões de CO2 nas horas de ponta, a Caixa
Geral de Depósitos da esquina, a loja que vendia meias, o vistoso Palácio Foz e
o engraxador de sapatos.
O mesmo engraxador de
sapatos que hoje, aqui, é história. Uma história que dos simples não reza. E
sem características peculiares, afinal, o engraxador de sapatos não tinha
estado sempre ali.
…
Antes de ser engraxador de
sapatos, tinha as mãos de cor bege. Um bege escurecido pelo sol dos curtos
Verões e pela neve dos longos Invernos. Um bege espesso, duro, vivo. Vivia numa
casa pequenina com mais seis irmãos. Todos rapazes. À mesa eram sempre nove,
porque à hora do jantar os pais também estavam em casa. Durante o dia nem
sempre se ia à escola. Mas o desejo de aprender era imenso. Tempos em que as
crianças não precisavam de saber ler.
Acontecia que as leituras
não obrigatórias davam mais vontade. Quando há a possibilidade de escapar à
escola, ao frio das salas de aula, ao cheiro insuportável do pó do giz
misturado com o pó de há duas semanas em cima 6das mesas e de há dois meses nos
rodapés, a vontade de ir aumenta. Era com prazer que às cinco horas da manhã o
menino que ainda nem sabia que viria a engraxar sapatos se levantava e acordava
os irmãos.
Entre o primeiro e o
último menino havia sete anos de diferença. Todos tinham nascido no mesmo dia,
mas em anos e horas diferentes. O primeiro era ele (o ainda não engraxador de
sapatos) e queria ser advogado. O segundo tinha especial apetência para
desenhar nos vidros embaciados das janelas e o terceiro para cantar. O quarto
era considerado introvertido – o bicho era como lhe chamavam – e o quinto gerou
escândalo quando proferiu que queria ser bailarino. Tinha ouvido a expressão na
escola, pela boca de uma amiga, durante uma conversa acerca de profissões. Não
sabia ao certo o que isso era. O sexto corria o dia inteiro sem se cansar e o
sétimo acabava de proferir as primeiras palavras. Tinha apenas um ano.
Enquanto os irmãos se
preparavam, ele já estava de saída, mas, às vezes, quando encontrava o pai pelo
caminho e o ouvia dizer que o trabalho lhe fugia, que era como se o tempo de
noite acelerasse, passassem dez Primaveras e nascessem dez colheitas que não
conseguia ceifar sozinho, porque já não tinha força, trocava o frio da sala de
aula pelo frio da rua. Na rua não havia giz, não havia o quadro preto sempre
húmido onde o giz mal escrevia, não havia papel e lápis, não havia a professora
Teresa, não havia janelas fechadas, não havia paredes com fendas, não havia
aranhas penduradas no tecto, não havia as vozes infantis dos colegas que se
engasgavam a ler. Os sonhos adormeciam durante colheita. Havia o pai
envergonhado. Havia o barulho da foice que cortava o silêncio como uma
pulsação. Havia fruta para comer ao almoço. Havia mais comida em casa.
Com o passar do tempo, o
menino que queria ser advogado foi trocando os sonhos pela monotonia da foice.
Agora os colegas já não se enganavam a ler e as suas vozes tinham deixado de
ser infantis. Começou a esquecer-se do que queria ser quando crescesse, porque
já tinha crescido. Quando se sentava na mesa de madeira para jantar, tinha que
se encolher cada vez mais para que coubessem todos os irmãos. Todos tinham que
se encolher, na verdade, porque todos tinham crescido. E sem ninguém dar por
isso. Mas a casa nunca cresceu. Todos os dias, quando entrava e descalçava os
sapatos que ficavam à entrada, tinha a sensação de que a casa diminuía meio
milímetro. Ia ficando mais pequena, mais apertada. E com o frio constante, as
janelas embaciavam-se e a vida lá fora desaparecia. Era nessa altura que os
sonhos acordavam. Sonhos do passado, que não têm por que voltar à memória.
Sonhos de quando a casa era grande, de quando o frio embaciava as janelas para
que se pudesse desenhar com os dedos. E aí, ficava subitamente feliz. Era como
se construísse as memórias ali. Sentava-se no sofá, em frente à lareira e
voltava a cheirar o giz e a ouvir a voz da professora Teresa. Depois ia dormir.
Foi então que, numa dessas
muitas noites em que se sentia verdadeiramente feliz e dormia profundamente,
não deu pela chegada de alguém. Alguém que não fazia parte da casa, alguém que
nunca ninguém chegou a conhecer.
A noite era fria, como todas as noites que se
conheceram. A lareira estava já apagada, porque a madeira não dura para sempre.
Estava tanto frio lá fora como lá dentro. A casa estava igual. Mas tinha uma
pessoa a mais. Entrou.
Tentou olhar à volta, mas
estava escuro, porque era hora de dormir. Não ousou acender a luz, não queria
que o vissem ali. Tinha medo, era a primeira vez que entrava em casa de alguém
às escondidas. E a escuridão era dolorosa. Nunca tinha gostado do escuro.
Nenhuma criança gosta do escuro.
…
No dia seguinte, quando o
quase engraxador de sapatos e o pai acordaram, não havia sapatos à entrada.
Tudo estava no lugar. O tapete para limpar os pés (que estava dentro de casa,
porque lá fora estava sempre a nevar), a panela de sopa que tinha sobrado do
jantar, as cadeiras de cores e tamanhos diferentes, a toalha dobrada em cima da
mesa, o sofá verde virado para a lareira apagada. Mas não havia nenhum sapato.
No seu lugar, nada. O chão com poças de água que tinham sido neve provavelmente
agarrada à sola do visitante nocturno.
Nesse dia uma família
ficou feliz, porque pôde finalmente calçar-se. Mas a família do menino quase
senhor engraxador de sapatos não saiu de casa nesse dia. Nem nos dias
seguintes. A neve obrigava a usar sapatos, mas eles não estavam lá. E então, a
casa voltou a crescer, porque todos os dias ficava mais vazia. Menos batatas,
menos maçãs, menos sopa, menos pão.
Menos lenha na lareira e
mais frio. Mais fome. A neve caía lá fora como nunca e destruía os campos
desabitados sem que nada se pudesse fazer. As caras dos irmãos, coladas às
janelas, aguardavam dia e noite o momento e que poderiam finalmente sair. Os
desenhos e cantorias desapareceram. Não se sabe o dia exacto em que aconteceu.
Deve ter sido ao longo dos dias, que as tornaram invisíveis, inaudíveis. Todos
ficaram mais próximos de bichos.
…
Entretanto, a neve começou
a desaparecer. Parava de nevar, derretia-se o chão e avistava-se o terreno
queimado por esse fogo branco. O menino atou aos pés muitos trapos quentes e
saiu à procura dos sapatos que tinham desaparecido.
Correu pela aldeia inteira
(não correu muito, a aldeia era pequena), mas nas casas todos lhe diziam que
desconheciam tal história. Ia descalço, mas curiosamente não tinha frio nos
pés. Tinha frio no ventre.
Foi com tristeza que
constatou que toda a colheita estava perdida. Teria que recomeçar, desta vez
talvez todos tivessem que recomeçar. Talvez todos continuassem a ler
engasgados, talvez alguns nunca chegassem a aprender a ler. Não encontrou os
sapatos. Comprou uns pares e levou-os para casa.
Com o passar dos tempos, a
casa voltou a ficar mais pequena: com mais batatas, mais maçãs, mais sopa, mais
pão. Nunca voltou ao tamanho de quando eram nove à mesa: o mais pequenino nunca
voltou a acordar.
…
Então, um dia, partiu.
Jurou que ia encontrar os sapatos nos pés de alguém. E foi assim que se tornou
engraxador de sapatos.»
X
Parabéns,
querida Ana, pelos teus 27 anos. Continua a ler, mas a escrever também. Vives o
momento do trabalho que já te compensa materialmente um pouco o empenhamento e
a inteligência do teu contributo, mas que te impede, pelo excesso de horas nele
consumidas, esses outros prazeres de escrita que não podes deixar de parte,
porque a tua escrita tem uma dimensão muito específica.
É o meu
grande desejo, fica aqui expresso, neste blog que me tem acompanhado nestes
anos de idade senior, onde dei parte da família que é a minha. Faltam ainda o
tio Luís e a Catarina, a minha segunda neta, para completar este meu “testamento
de amor”, caso a Parca se lembre de fazer chegar a altura de eu “levar o
óbolo ao barqueiro.”
É claro
que eu não podia esquecer-me de, nele, igualmente abraçar as mães dos meus
netinhos – a Binha, tua mãe, a Inês, a Ana Paula, a Ângela – cada uma, jovem de
sentimentos e de carácter que aprecio, com as suas qualidades de trabalho,
originalidade, graciosidade e encanto próprios, que trouxeram lufadas de vida à
minha vida. E o Quim, que é um bom companheiro … Todos aqueles e aquelas ,
afinal, que fizeram e fazem felizes os filhos e netos que completaram a minha
vida, e a quem desejo o mais feliz destino.
Um comentário:
kk
Postar um comentário