segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Ana Margarida


Uma releitura do “Bonjour Tristesse” fez-me recordar a altura em que Françoise Sagan pelos anos 50, andava eu por Coimbra, causara escândalo com uma novela que breve se tornaria best-seller no mundo inteiro. Françoise Sagan tinha a minha idade, quando o livro apareceu, admirei-lhe o engenho, quando mais tarde a li, de com tanta sensibilidade e elegância exprimir um mundo jovem, de bem-estar e liberdade, numa acção passada na Riviera francesa, era verão. O mundo de uma adolescente, bem protegida quer economicamente quer afectivamente por um pai sedutor e mundano, trocando facilmente de amantes, sem moral, pois, para condenar as liberdades da filha Cecília, com quem estabelecera uma relação de camaradagem despreocupadamente cúmplice.
Mas o novo amor de Raymundo, o pai - Ana, mulher de superior educação e exigência de princípios - faz que aquele decida desposá-la, na consciência de que seria essa a mulher ideal para a orientação dos dezassete anos da filha, órfã de mãe desde pequenina. À última amante – Elsa -, mais uma das facilmente descartáveis, que não faziam sombra a Cecília – só resta fazer as malas e partir, mas o predomínio de Ana sobre o espírito do pai, e a sua ingerência na sua própria vida de adolescente livre, fá-la em breve engendrar um plano destruidor da harmonia criada. Com uma perversidade caprichosa, combina com Elsa e um seu namorado, uma falsa ligação amorosa, que destruindo as certezas do pai, relativamente ao seu novo estatuto de seriedade sentimental, o fizesse, por ciúme, retomar nos braços Elsa, num cenário conduzido com destreza por Cecília e apercebido de Ana, que, desvairada, foge no carro e morre em acidente de estrada.
À tristeza do arrependimento, ante o inesperado do desfecho, um acidente mortal interpretado como suicídio pelo consciência pesada de Cecília,  irá suceder o retomar das antigas cumplicidades, com o pai avesso a imposições de orientação moral ou espiritual, um “bom dia, tristeza” feito de amadurecimento penalizado, de criança perdida que gradualmente ganhará, prevê-se, a sabedoria da indiferença cínica por valores morais mais respeitáveis e tranquilizantes.
Uma obra psicologicamente bem orientada, lembrando outras obras dos escritores existencialistas franceses, que pelos anos 40 escreveram enredos com as suas vivências pessoais, sobre os temas tabu da libertação da mulher e até do próprio homem, como o da homossexualidade masculina e feminina, o repúdio pelos convencionalismos burgueses ou a assumpção da responsabilidade individual num universo sem Deus.
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Faz hoje , 25 de Fevereiro, 27 anos, a minha neta mais velha – Ana Margarida. Uma jovem inteligente e viva, que em tempos, de Paris, escreveu num blog, - “3 da Tarde” – e, posteriormente, noutro, cá – “Novelas de Lisboa” - pequenos textos reveladores de maturidade, num humor subtil, não isento da consciência do sofrimento em volta, e também da graça jovem de moça assumindo os seus caprichos, sobretudo no capítulo das modas ou da frequência dos ambientes livres, onde se conversa e se bebe um copo e se ri ou se expendem os temas das experiências trazidas pelo turbilhão da vida e das leituras.
Uma escrita simultaneamente simples e ambígua, cujo sintetismo denuncia todo um mundo de sensibilidade na revolta contida, sem alarido, mas suavemente sarcástica contra os males e as injustiças do mundo.

É o caso da observação paradoxal dos finais do conto «O Engraxador de Sapatos» com que a Ana Margarida concorreu ao concurso da editora “Alfarroba”, ”Conto por Conto”, sendo uma dos quatro vencedores, conto publicado em livrinho em 2010: “Com o passar dos tempos, a casa voltou a ficar mais pequena: com mais batatas, mais maçãs, mais sopa, mais pão. Nunca voltou ao tamanho de quando eram nove à mesa: o mais pequenino nunca voltou a acordar.”, a morte do irmão mais novo trazendo o repúdio pelo espaço da tragédia, inegavelmente maior quando viviam mais apertados e com menos fartura, mas todos vivos.

Um tema social, bem diferente dos temas de desenvoltura e participação pessoal dos extraordinários escritores dos anos quarenta e cinquenta, mas afinal todos eles de intervencionismo, na sua originalidade e sentido crítico.

Trata-se de um conto apenas, o da Ana Margarida, a grande distância, naturalmente, das outras obras citadas, romances de cariz psicológico e filosófico. Mas é um conto rico de observação, que pede a continuação para outras tentativas. Assim a vida laboral de Ana o consinta.
 
Eis o conto da Ana Margarida, que tem, apenso, no livro, a frase que o sintetiza, bem expressiva do sentimento de desencanto por um espaço e um tempo que se eternizam, numa “mesmice” encardida:

«A história de um engraxador de sapatos que se confunde com a fachada lisboeta e que nunca tem nada para contar.»

«O Engraxador de Sapatos»

«Todos os dias, no Largo dos Restauradores, estava sentado um engraxador de sapatos. Vivia do movimento mecanizado dos seus braços, que engraxava com destreza qualquer sapato que tivesse perdido o brilho. O seu braço fazia um movimento constante da esquerda para a direita, umas vezes mais rápido, outras mais lento, consoante o tipo de limpeza que fazia ao sapato.

Das mãos pouco se via. O preto da graxa sobrepôs-se ao bege que em tempos lhas cobrira. Não se sabe o dia exacto em que aconteceu. Deve ter sido ao longo dos dias, dos anos, sempre a fazer o mesmo movimento, sempre a fazer a mesma coisa. Não havia sabão que lhe devolvesse às mãos o tom esbranquiçado, porque o negrume estava entranhado nos seus poros minúsculos. Não o incomodava.

O engraxador de sapatos não tinha nenhuma característica especial. As peculiaridades são propriedade de outros. Engraxava qualquer sapato que correspondesse à panóplia de tons que possuía. Imensa panóplia, aliás. Lembrava-se do tempo em que os sapatos eram exclusivamente pretos. A ciência que exigia o engraxar era a mesma. Limpar, engraxar, dar lustro. Mas, ditaram os tempos que os sapatos ganhassem novas cores, que teriam, tal como os sapatos pretos, a árdua tarefa de pisar a irregular calçada da cidade. Hoje, embora sejam menos os fregueses, são mais as cores disponíveis.

As pessoas andavam a correr, ele engraxava a correr. Distraído, o freguês sentava-se no banquinho lançando um áspero bom dia e colocando o pé a jeito. Olhava para o Blackberry, lia, barafustava, telefonava, desligava, suspirava, olhava para o relógio, abria o jornal, reflectia (pouco) sobre o que lia e agradecia com dinheiro e um breve sorriso.

Ao engraxador de sapatos apenas o sapato interessava. E no fundo, ao cliente também. Porque se o engraxador não fizesse o seu trabalho, o breve sorriso rapidamente se desvaneceria e, com ele, o dinheiro prometido.

A vida mostrava-se simples, porque quando as coisas entram na rotina tornam-se simples. Tão simples que parecem nem existir. É como se tudo sempre tivesse estado naquele lugar. A senhora do quiosque parecia ter sempre sido senhora do quiosque e o jornal “Metro” parecia ter sempre tido aquele lugar privilegiado ao lado do vendedor de castanhas. O mesmo se passava com os gelados da Olá, o restaurante do peixe fresco, as intermináveis emissões de CO2 nas horas de ponta, a Caixa Geral de Depósitos da esquina, a loja que vendia meias, o vistoso Palácio Foz e o engraxador de sapatos.

O mesmo engraxador de sapatos que hoje, aqui, é história. Uma história que dos simples não reza. E sem características peculiares, afinal, o engraxador de sapatos não tinha estado sempre ali.

Antes de ser engraxador de sapatos, tinha as mãos de cor bege. Um bege escurecido pelo sol dos curtos Verões e pela neve dos longos Invernos. Um bege espesso, duro, vivo. Vivia numa casa pequenina com mais seis irmãos. Todos rapazes. À mesa eram sempre nove, porque à hora do jantar os pais também estavam em casa. Durante o dia nem sempre se ia à escola. Mas o desejo de aprender era imenso. Tempos em que as crianças não precisavam de saber ler.

Acontecia que as leituras não obrigatórias davam mais vontade. Quando há a possibilidade de escapar à escola, ao frio das salas de aula, ao cheiro insuportável do pó do giz misturado com o pó de há duas semanas em cima 6das mesas e de há dois meses nos rodapés, a vontade de ir aumenta. Era com prazer que às cinco horas da manhã o menino que ainda nem sabia que viria a engraxar sapatos se levantava e acordava os irmãos.

Entre o primeiro e o último menino havia sete anos de diferença. Todos tinham nascido no mesmo dia, mas em anos e horas diferentes. O primeiro era ele (o ainda não engraxador de sapatos) e queria ser advogado. O segundo tinha especial apetência para desenhar nos vidros embaciados das janelas e o terceiro para cantar. O quarto era considerado introvertido – o bicho era como lhe chamavam – e o quinto gerou escândalo quando proferiu que queria ser bailarino. Tinha ouvido a expressão na escola, pela boca de uma amiga, durante uma conversa acerca de profissões. Não sabia ao certo o que isso era. O sexto corria o dia inteiro sem se cansar e o sétimo acabava de proferir as primeiras palavras. Tinha apenas um ano.

Enquanto os irmãos se preparavam, ele já estava de saída, mas, às vezes, quando encontrava o pai pelo caminho e o ouvia dizer que o trabalho lhe fugia, que era como se o tempo de noite acelerasse, passassem dez Primaveras e nascessem dez colheitas que não conseguia ceifar sozinho, porque já não tinha força, trocava o frio da sala de aula pelo frio da rua. Na rua não havia giz, não havia o quadro preto sempre húmido onde o giz mal escrevia, não havia papel e lápis, não havia a professora Teresa, não havia janelas fechadas, não havia paredes com fendas, não havia aranhas penduradas no tecto, não havia as vozes infantis dos colegas que se engasgavam a ler. Os sonhos adormeciam durante colheita. Havia o pai envergonhado. Havia o barulho da foice que cortava o silêncio como uma pulsação. Havia fruta para comer ao almoço. Havia mais comida em casa.

Com o passar do tempo, o menino que queria ser advogado foi trocando os sonhos pela monotonia da foice. Agora os colegas já não se enganavam a ler e as suas vozes tinham deixado de ser infantis. Começou a esquecer-se do que queria ser quando crescesse, porque já tinha crescido. Quando se sentava na mesa de madeira para jantar, tinha que se encolher cada vez mais para que coubessem todos os irmãos. Todos tinham que se encolher, na verdade, porque todos tinham crescido. E sem ninguém dar por isso. Mas a casa nunca cresceu. Todos os dias, quando entrava e descalçava os sapatos que ficavam à entrada, tinha a sensação de que a casa diminuía meio milímetro. Ia ficando mais pequena, mais apertada. E com o frio constante, as janelas embaciavam-se e a vida lá fora desaparecia. Era nessa altura que os sonhos acordavam. Sonhos do passado, que não têm por que voltar à memória. Sonhos de quando a casa era grande, de quando o frio embaciava as janelas para que se pudesse desenhar com os dedos. E aí, ficava subitamente feliz. Era como se construísse as memórias ali. Sentava-se no sofá, em frente à lareira e voltava a cheirar o giz e a ouvir a voz da professora Teresa. Depois ia dormir.

Foi então que, numa dessas muitas noites em que se sentia verdadeiramente feliz e dormia profundamente, não deu pela chegada de alguém. Alguém que não fazia parte da casa, alguém que nunca ninguém chegou a conhecer.

A noite era fria, como todas as noites que se conheceram. A lareira estava já apagada, porque a madeira não dura para sempre. Estava tanto frio lá fora como lá dentro. A casa estava igual. Mas tinha uma pessoa a mais. Entrou.

Tentou olhar à volta, mas estava escuro, porque era hora de dormir. Não ousou acender a luz, não queria que o vissem ali. Tinha medo, era a primeira vez que entrava em casa de alguém às escondidas. E a escuridão era dolorosa. Nunca tinha gostado do escuro. Nenhuma criança gosta do escuro.

No dia seguinte, quando o quase engraxador de sapatos e o pai acordaram, não havia sapatos à entrada. Tudo estava no lugar. O tapete para limpar os pés (que estava dentro de casa, porque lá fora estava sempre a nevar), a panela de sopa que tinha sobrado do jantar, as cadeiras de cores e tamanhos diferentes, a toalha dobrada em cima da mesa, o sofá verde virado para a lareira apagada. Mas não havia nenhum sapato. No seu lugar, nada. O chão com poças de água que tinham sido neve provavelmente agarrada à sola do visitante nocturno.

Nesse dia uma família ficou feliz, porque pôde finalmente calçar-se. Mas a família do menino quase senhor engraxador de sapatos não saiu de casa nesse dia. Nem nos dias seguintes. A neve obrigava a usar sapatos, mas eles não estavam lá. E então, a casa voltou a crescer, porque todos os dias ficava mais vazia. Menos batatas, menos maçãs, menos sopa, menos pão.

Menos lenha na lareira e mais frio. Mais fome. A neve caía lá fora como nunca e destruía os campos desabitados sem que nada se pudesse fazer. As caras dos irmãos, coladas às janelas, aguardavam dia e noite o momento e que poderiam finalmente sair. Os desenhos e cantorias desapareceram. Não se sabe o dia exacto em que aconteceu. Deve ter sido ao longo dos dias, que as tornaram invisíveis, inaudíveis. Todos ficaram mais próximos de bichos.

Entretanto, a neve começou a desaparecer. Parava de nevar, derretia-se o chão e avistava-se o terreno queimado por esse fogo branco. O menino atou aos pés muitos trapos quentes e saiu à procura dos sapatos que tinham desaparecido.

Correu pela aldeia inteira (não correu muito, a aldeia era pequena), mas nas casas todos lhe diziam que desconheciam tal história. Ia descalço, mas curiosamente não tinha frio nos pés. Tinha frio no ventre.

Foi com tristeza que constatou que toda a colheita estava perdida. Teria que recomeçar, desta vez talvez todos tivessem que recomeçar. Talvez todos continuassem a ler engasgados, talvez alguns nunca chegassem a aprender a ler. Não encontrou os sapatos. Comprou uns pares e levou-os para casa.

Com o passar dos tempos, a casa voltou a ficar mais pequena: com mais batatas, mais maçãs, mais sopa, mais pão. Nunca voltou ao tamanho de quando eram nove à mesa: o mais pequenino nunca voltou a acordar.

Então, um dia, partiu. Jurou que ia encontrar os sapatos nos pés de alguém. E foi assim que se tornou engraxador de sapatos.»

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Parabéns, querida Ana, pelos teus 27 anos. Continua a ler, mas a escrever também. Vives o momento do trabalho que já te compensa materialmente um pouco o empenhamento e a inteligência do teu contributo, mas que te impede, pelo excesso de horas nele consumidas, esses outros prazeres de escrita que não podes deixar de parte, porque a tua escrita tem uma dimensão muito específica.

É o meu grande desejo, fica aqui expresso, neste blog que me tem acompanhado nestes anos de idade senior, onde dei parte da família que é a minha. Faltam ainda o tio Luís e a Catarina, a minha segunda neta, para completar este meu “testamento de amor”, caso a Parca se lembre de fazer chegar a altura de eu “levar o óbolo ao barqueiro.”
                                                                                   
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É claro que eu não podia esquecer-me de, nele, igualmente abraçar as mães dos meus netinhos – a Binha, tua mãe, a Inês, a Ana Paula, a Ângela – cada uma, jovem de sentimentos e de carácter que aprecio, com as suas qualidades de trabalho, originalidade, graciosidade e encanto próprios, que trouxeram lufadas de vida à minha vida. E o Quim, que é um bom companheiro … Todos aqueles e aquelas , afinal, que fizeram e fazem felizes os filhos e netos que completaram a minha vida, e a quem desejo o mais feliz destino.