Escreveu
o Dr. Salles da Fonseca, em Outubro de 2005 um extenso texto - «Os Lobos
e os Faunos» - retrato bem expressivo da indignação que sentiu ao longo
de um processo de destruição pátria, só equiparável ao anedotário de situações
e ditos de um povo pouco sadio, como esse sobre a extinção dos ricos no nosso
país, perante pessoas de um outro mundo de inteligência e conforto
generalizados. Mas enganou-se o tal que disse isso, pois ao que consta, os
ricos aumentaram no seu país, provavelmente esse tal sendo um deles, que lutou
com cravos na botoeira, exclusivamente para esse efeito – o de enriquecer com
truques.
Destruição,
eis o lema seguido: territorial, primeiro, económica a seguir, destruição dos
valores morais e cívicos anteriores para demolição da camada social futura – a
maioria dos “homens e mulheres de amanhã” criada na indiferença e no desmazelo
de uma massificação para a inércia - destruição da própria língua, na sua
escrita vária, como cúmulo de tanta “infância” mental, para não dizer infâmia –
eis alguns dos parâmetros desse lema demolidor, que tantos homens e mulheres
evidenciou ao longo destes 39 anos, como borbulhas fazendo erupção na pele, na
perversidade e na hediondez de uma desvergonha que se generalizou.
Um texto
suficientemente esclarecedor, sobre a riqueza e a pobreza das nações, que,
naturalmente, resultam do trabalho e estudo ou da sua ausência, condicionados,
segundo a tese citada do professor americano, pelo clima –o frio convidando ao
esforço físico e mental, o calor à diversão.
O certo é
que dificilmente nos ergueremos, com tanta ausência de estrutura mental no
nosso país, de papagaios debitando sentenças, de graciosos troçando de quem
governa, sem respeito e sem educação, da falta de unidade segundo o lema “Um
por todos, todos por um” que não nos pertence.
E os
lobos vão alastrando, cada vez mais vorazes. Quanto aos faunos, lembro, n’ “Os
Maias”, a referência a dois desses espécimes, tocando flauta, figuras de um
armário de talha, da colecção da “Toca” que Carlos comprou a Craft e que
Eça descreveu como símbolo de fealdade dos amores incestuosos narrados no seu romance.
Além disso, já não há faunos que protejam os nossos campos,
destruídos pelas hordas sucessivas dos que foram aniquilando a Nação Portuguesa.
Mas há, certamente, ainda muitos que assobiam para o lado, de mãos nos bolsos,
cantando o fado.
«OS LOBOS E OS FAUNOS»
«Fauno,
rei do Lácio, ficou na mitologia romana como divindade campestre assobiando em
conjunto com centenas de melros a melodia que nos campos ouvimos das flautas
mágicas em protecção da fecundidade dos rebanhos. Mas a esta bucólica melodia
contrapõe-se o uivo de vorazes lobos.
Mais
prosaicamente, conta-se a história de que um dos “heróis” do 25 de Abril foi à
Suécia explicar àqueles “pacóvios” do que tratava a revolução portuguesa e que
a certo momento de brilhante sessão de esclarecimento e dinamização cultural
afirmou qualquer coisa do género de que “em Portugal já acabámos com os
ricos”. Com alguma timidez perante tanta glória, terá um dos atónitos
escutantes balbuciado qualquer vago pensamento de que “na Suécia já acabámos
com os pobres”.
Eis um
diálogo do maior interesse para todos os que nos dedicamos às questões do
desenvolvimento.
E a
pergunta que logo nos assoma: - Por que é que há países tão ricos e outros tão
pobres?
Já
Wilhelm Schaumburg Lippe (1724-1777), como Marechal General do Exército
Português a convite do Marquês de Pombal, ao redigir o nosso primeiro
Regulamento de Disciplina Militar, determinou que “o Sargento deve
saber ler e escrever pois o Oficial, sendo nobre, pode não saber”.
Se isto
se passava no Exército, pilar essencial do Estado, podemos imaginar por onde
andava o nível médio cultural por esse Portugal além.
David
S. Landes, Professor (emeritus) de Harvard, escreveu um artigo de jornal a que
deu a forma de livro com 603 páginas de texto, 51 de notas, 81 de bibliografia
e apenas 19 de índice remissivo a que deu o sugestivo título algo smithiano de “A riqueza e a
pobreza das Nações”. A tese fundamental deste americano é a de que um céu
radioso conduz ao folguedo e à hilaridade de quem sob ele se passeia enquanto
um céu plúmbeo induz à introspecção, à falta de humor, ao
trabalho árduo. Se a isso juntarmos aos do Sol o dogmatismo católico e o latim
como arma de distanciamento dos fiéis mantidos iletrados como instrumento de
docilidade relativamente aos Santos Mistérios e aos das nuvens a promoção pelos
protestantes da interpretação da Bíblia devidamente traduzida nas várias
línguas vernáculas, temos naqueles o temeroso analfabetismo e nestes a
racionalidade, o método e a já citada ausência de humor.
Assim
nos conduz o Professor Landes ao Carnaval carioca dos favelados e ao maior
nível mundial de patentes per capita na Finlândia enquanto, pela nossa
parte, contamos com o nobre Oficial português mas também com o Marechal
austríaco.
Creio
que o autor desta tese ainda hoje não conhece a história do militar português
na Suécia mas quase aposto que o militar português também ainda hoje não sabe
da existência do Professor Landes.
Aceitemos
ou não o valor histórico-científico da tese de Landes, ela pode, mesmo assim,
ser percebida empiricamente; a iliteracia do militar português que em 1974 foi
à Suécia carece de análise mais subtil do que a simples percepção empírica ou
mais leviano tratamento jocoso. O meu Avô, Tomás da Fonseca (1877-1968), quando
quis estudar mais do que os rudimentos que se ensinavam nas aldeias serranas da
Beira Alta, teve que ir para o Seminário de Coimbra pois não havia escolas
públicas ou privadas na região. Uns anos mais tarde e pela mesma razão, o
Doutor Salazar teve que ir para o Seminário de Viseu. Assim foi que chegámos ao
5 de Outubro de 1910 com uma taxa de analfabetismo adulto que rondava os 90%.
As campanhas de alfabetização de adultos dos anos 50 e 60 sofreram enorme
resistência com base no argumento de que o povo era muito mais feliz na
ignorância e que não tinha interesse nenhum em saber escrever. E eis que
chegámos ao 25 de Abril de 1974 com 25% de adultos analfabetos. Formidável:
nessa época revolucionária, um em cada quatro adultos portugueses não sabia ler
e muito menos escrever.
Começamos
deste modo a compreender que o tal militar que viajou até à Suécia não estava
assim tão longe da clarividência média nacional. A massificação da educação tem
sido uma obra ciclópica nestes últimos 30 anos e se numa geração estamos a
querer fazer o que não foi feito em 850 anos de História pátria, fácil é
compreender que vivamos hoje num turbilhão de inadaptação dos que se encontram
em lugares de chefia sem terem bebido o imprescindível chá nas tenras idades e
dos que, nascidos em berço de oiro, não compreenderam que a hora não era de
ócio, hilaridade e folguedo, se deixaram embalar por vulgaridades mundanas e
quando acordaram para a realidade se viram comandados pelos netos dos servos
dos seus próprios avós. E bramam – não sem razão – que se assiste a
uma inversão de valores.
Aconselha
a sabedoria popular que “não sirvas a quem serviu nem peças a quem pediu”. E de quem é a
culpa? Nossa, dos que há várias gerações comemos sentados à
mesa, dos que devíamos ter dado o exemplo, dos que tínhamos todas as condições
de fortuna para constituir a elite nacional. Não quiseram estudar, preferiram
viver dos rendimentos e quando a erosão monetária lhes mostrou que as despesas
já eram superiores às receitas, venderam o património e tiveram que aceitar
empregos menores para poderem continuar a almoçar e jantar. Mais do que
frustrados, sabem que estão falidos. Dos que estudaram, houve quem vingasse num
cenário competitivo como nunca existira em Portugal. Sentem-se vitoriosos, têm
orgulho no que conseguiram à sua própria custa. Usam colarinho branco, deram um
salto formidável dos campos em que labutavam os avós de Sol a Sol e do
colarinho azul que os pais usavam no trabalho. Ninguém os agarra e quem se lhes
atravessar no caminho é de imediato cilindrado. Não olham a meios para
atingirem os seus próprios fins.
E assim
vem à tona o rancor por quem lhes possa fazer sombra. Demolir, demolir, demolir
para que só eles fiquem no topo que tanto lhes custou conquistar. É também a
vingança contra o passado que não tiveram e que invejam a quem o teve. É vê-los
por essas Autarquias além a financiarem os Partidos que os usam como bandeiras
locais e a tomarem as vezes de Condes e Marqueses na verdadeira acepção
etimológica dos termos. É vê-los nos telejornais a dizerem que tudo está mal,
que todos são gatunos e que tudo são escândalos pois é disso que a massa
informe de lustrosos colarinhos brancos se alimenta. É vê-los nos hipermercados
a preferirem o estrangeiro porque o que é lá de fora é que é bom e o que é
nacional não presta. Quanto mais não seja porque é chique esticar o braço para
etiqueta exótica em vez das saloiadas de que ainda têm vergonha.
É vê-los,
é vê-los, é vê-los . . .
Lembra-nos
a sabedoria popular que “se queres ver o vilão, põe-lhe o chicote na mão”.
Bem
maçados andamos os que sabemos ler e escrever e que há várias gerações comemos
de garfo e faca. E perguntamos: onde está a elite nacional? É isto? A resposta
é evidente: é pouco, é mau e ao processo de massificação da cultura tem que
suceder imediatamente o da construção de uma elite nacional.
Na
mitologia do Embaixador Soares de Oliveira, os búfalos devem comandar as
ovelhas; na minha, os vorazes lobos devem dar lugar aos faunos.
Lisboa, Outubro de 2005 »
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