Costumo gostar dos textos do Dr. João
César das Neves, que resultam de critérios de ponderação despidos de
facciosismo, e pautados antes por uma seriedade de orientação sem resquícios
daquela oposição de idiotia que se tem traduzido ultimamente no nosso país por uma
provocação não propriamente musical – porque bem desafinada – mas macaqueadora
da “Grândola” de Zeca Afonso, e de alcance só não nulo porque revelador da
extrema inépcia de uma população geralmente com fraca prestação intelectual,
refugiando-se em slogans ou músicas conhecidas na ausência de discursos mais
elaborados, para silenciarem os governantes em prestação.
Mas este texto de César das Neves não
pareceu seguir a mesma rota dos anteriores, e, reconhecendo embora a justeza de
observação na generalização da responsabilidade na crise, a toda uma população
que teve parte no sumiço do bolo emprestado, achei demasiado drástica a
inculpação de todos os cidadãos nele envolvidos, com a nem sequer minimização mas
pura anulação das responsabilidades dos que dele comeram à tripa-forra, num
semear de misérias – morais, espirituais, económicas – de que só um governo de
gente íntegra, talvez – como este parece ser, pagando a nossa dívida -.poderá, “à
la longue”, fazer dissipar. Como não lhe vão dar oportunidade para isso, apeando-o
ao som das Grândola ou doutra musiquinha idêntica, como a da gaivota também dos
anos 70 que voava em liberdade, imagem para sempre, da nossa, não temos
esperança de conversão.
Seremos sempre os “da mansarda”, como
o Álvaro de Campos. Mas este não foi coitado, apesar de tanto o afirmar.
Os coitadinhos somos nós. Para sempre.
Eis, pois, o texto do Dr. César das
Neves, publicado no blog “A Bem da Nação”, de hoje, 22/2:
«ESTÃO A VER O FILME?»
«Fala-se
da crise há anos. Ouvem-se muitas teorias, protestos, fúrias e desânimos, mas
no essencial ainda permanece enorme ilusão. As reacções ao recente estudo do
FMI mostram acima de tudo profundo irrealismo face à real situação do país.
O texto
Rethinking
The State-Selected Expenditure Reform Options,
pretende "reformar a despesa em Portugal, perante a questão de fundo da
dimensão e funções do Estado" (p. 6). Chegámos finalmente à questão
decisiva. Após ano e meio de medidas pontuais de emergência, tocamos nas
reformas estruturais, discutidas há décadas e sempre adiadas. Perante um
contributo tão importante para o nosso problema essencial, a grande maioria das
reacções foi extravagante. É caso para perguntar se esses comentadores têm
andado por cá ultimamente.
Todos
sabemos que o país está na "unidade de cuidados intensivos", ligado à
máquina da ajuda externa para sobreviver. Todos concordamos que temos uma crise
grave e fundamental, que exige medidas profundas. Mas, logo a seguir a este
consenso, grande quantidade dos analistas envereda por uma ilusão cómoda, para
evitar enfrentar a realidade. Muita gente está plenamente convencida que a
crise se deve a um punhado de maus (corruptos, incompetentes, esbanjadores) e,
pior, que basta eliminá-los para tudo ficar normal. Nas actuais circunstâncias
esta fantasia é irresponsabilidade criminosa. Num momento tão decisivo e
doloroso, acreditar em tolices dessas só aumenta o sofrimento de tantos,
prejudicando a urgente solução do problema.
Portugal
tem uma dívida nacional externa bruta total quase duas vezes e meia superior ao
produto e dívida pública bem acima do que produzimos. Não há
corrupções, incompetências e desperdícios que cheguem para justificar uma coisa
destas. Quem fez isso não foram os ricos, políticos, ladrões. Tem de ser a vida
comum e os hábitos dos cidadãos honestos a gerá-lo. Muitos nos lembramos como
estávamos há 20 anos, e como tudo melhorou tão depressa. Muito disso foi mérito
e crescimento sólido, mas a euforia empolou e foi-se para lá do razoável. Agora
a situação nacional não se resolve só eliminando gorduras. É preciso cirurgia
profunda e estrutural. Não é sina nacional, até porque vimos igual noutras
zonas. Mas tem de ser feito.
A
maioria das críticas olha, não para a situação nacional, mas para os interesses
afectados. Falam então em "direitos adquiridos", sem notar que esse é
outro nome da doença. Existem direitos básicos que o país tem de garantir a
todos. Nesses não se pode tocar, nem ninguém quer que se toque. Mas grande
parte dos supostos direitos não foram de todo adquiridos, mas atribuídos
irresponsavelmente com dinheiro alemão. Foi bom recebê-los e custa a deixar,
mas não há alternativa. Se quisermos um dia lá chegar de forma sustentável. Cortar
4000 milhões de euros de forma permanente à despesa pública não é a solução.
Apenas o primeiro passo para Portugal voltar a ser um país sério. Temos de
viver com as nossas possibilidades. Durante uns tempos até um pouco abaixo,
para aliviar as dívidas de se ter vivido demasiado tempo acima delas. A
correcção não é o fim do mundo: pouco mais de 5% da despesa total prevista no
Orçamento para 2013. Pode-se negar, insultar, protestar, mas a aritmética não
se comove.
Isto
não é novidade. Aliás todos o dizem há décadas. Perdemos a conta aos
relatórios, estudos, programas de Governo e discursos de Estado em que foi
repetida a necessidade de reformas estruturais. Esse é outro consenso. Quando
uma das instituições mais experientes e reputadas neste tipo de reformas
analisa a situação e sugere medidas concretas, será razoável tratar isso como
um disparate? Uma imposição externa? Uma aleivosia? Será que não estão a ver o
filme?
Perante o estudo do FMI
há duas atitudes razoáveis. Pode-se aceitar e também é sensato discordar.
Afinal é só um estudo técnico externo, nem sequer um programa político. Mas
quem recusa tem de apresentar cortes alternativos de valor equivalente. Senão
diz só uma tolice ociosa de quem não está a ver o filme.»
Finalizo,
com o meu comentário ao texto do Dr. César das Neves no blog do Dr. Salles da
Fonseca:
“Para
justificação da crise neste país, negar o contributo de tanta fraude cometida,
de tantos jogos ilícitos do poder, de tanta construção desnecessária e
propiciadora de delito, de tanta impunidade por efeitos de uma Justiça
inexistente, etc., para analisar só a parte que todos tomámos no abocanhamento
das côdeas que nos foram remetidas pelo poder, como disfarce, parece um
afunilamento incriminatório sobre estes, e um branqueamento propositado dos
meandros tortuosos daqueles. Não me parece justo isso. Todos estamos pagando
agora, desfeitos os direitos adquiridos de estudo, de prática laboral, de
empenhamento, de descontos que fizemos enquanto trabalhámos, cada vez mais
igualados aos sem estudo, sem empenhamento, sem descontos, numa sociedade para
uma igualdade sem elevação. E afinal, nunca chegaremos a tapar os buracos da
ignomínia, por muito que se nos baixe o nível salarial. Somos, definitivamente,
um povo de mínimos.“
Nenhum comentário:
Postar um comentário