Tal é “Exsurge, Deus” de Henrique Salles da Fonseca.
Na escolha do tema, no avultado da pesquisa e recolha de dados, na
originalidade da exposição, na leveza, por vezes, do discurso subjectivo, onde
o humor e a ironia perpassam, com claro sentido de paralelismo com uma
actualidade que talvez necessite de manter resquícios de crenças ou de
esperanças messiânicas…
A originalidade da sua exposição, com as divisórias modestas, como
de guião apressado: nº 1 - “TEMAS CHAVE” («quem foi quem e o que foram as
coisas»), tópicos orientadores ou definições, e fotografias acompanhando
referências a pessoas ou locais ou insígnias - seguidas de «BIBLIOGRAFIA. Um
discurso mais sequencial, vindo a seguir: no nº 2 – «NA POLÓNIA» («onde
nasceram as Monita Secreta, livro que serviu para criar ódio à Companhia de
Jesus»), no nº 3 - «NO MUNDO» («onde se trata da guerra que sempre
existiu dentro da Igreja entre os conservadores beneditinos e dominicanos e os “progressistas”
jesuítas») e se apontam os papas que tiveram influência sobre a vida de
Vieira e dos reis portugueses – e espanhóis – durante a Restauração.
O nº 4 -«EM PORTUGAL», de texto em negrito («Onde se referem as
circunstâncias políticas durante os reinados de Filipe III, D. João IV e D.
Afonso VI que motivaram a ida do P. António Vieira a julgamento pela Inquisição)»,
que inclui a biografia de Vieira e excertos dos Sermões («Sermão pelo Bom
Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda», que fez de Vieira “o
verdadeiro herói da restauração portuguesa no Brasil”) , Filipe III- Rei
de Portugal, (1605-1665); D. João IV (oitavo duque de Bragança, nasceu em Vila
Viçosa a 19 de Março de 1604 e morreu em Lisboa a 6 de Novembro de 1656), que
chama Vieira para confessor e o nomeia embaixador de Portugal junto à Santa Sé,
para advogar a causa da independência.
Vieira suscita invejas, pronuncia sermões de defesa dos cristãos
novos e contra a escravatura, ataca a ignorância e o pedantismo oratório do
clero no Sermão da Sexagésima, é diplomata na Holanda, na França, em
Roma, defende a aceitação da independência portuguesa pelos estados europeus e
a Santa Sé, a isso renitentes. Numa carta a um, “amigo e colega jesuíta – D.
André Fernandes, então Confessor da Rainha viúva – D. Luísa Gusmão - e bispo
eleito do Japão” defende a formação do “Quinto Império do Mundo” sob
a égide de D. João IV, (e na sucessão do “Assírio, do Persa, Do Grego
e do Romano”), crente na ressurreição de D. João IV, segundo provara o sapateiro
Bandarra, um verdadeiro profeta.
5: Seguem-se as Trovas do Bandarra e a brilhante
descodificação e interpretação de Vieira, no sentido da demonstração do “Quinto
Império”, de que não resisto a transcrever as quase finais estrofes
comprovativas:
«Portugal tem a bandeira / Com cinco quinas no
meio, / E segundo ouço e creio / Ele é a cabeceira; / Tem das chagas a cimeira / Que em Calvário lhe
foi dada, /
E será rei da manada / Que vem de longa carreira.»
“À vitória dos Turcos e redução dos Judeus se seguirá também a extirpação
das heresias por meio deste glorioso príncipe. Bandarra nas trovas do fim:”
«Vejo erguer um grão rei / Todo bem-aventurado, / E será tão prosperado / Que defenderá a grei; /Este guardará a lei / De todas as heresias, / Derrubará as fantasias / Dos que guardam o que
não sei.»
«Todos terão um amor, / Assim gentios pagãos / Como judeus e cristãos, / Sem jamais haver error. / Servirão a um só Senhor, / Jesus Cristo que nomeio; / Todos crerão que já veio / O ungido Salvador.»
Morre D. João IV, o seu protector,
Vieira cai em desgraça, a ponto de ser preso pela Inquisição:
«Quando Vieira chega ao Reino encontra um ambiente que lhe é claramente hostil.
Todos os seus inimigos são importantes. É abruptamente afastado e em 1662 enviado
para o Porto de modo a não ter qualquer influência na Corte. E dá-se o
grande absurdo de um português em bolandas pelo mundo em obra de
engrandecimento da Fé e da Pátria se resguardar em Portugal julgando que chega a casa
onde pode ficar tranquilo e ser afinal trucidado por uma máquina gigantesca…
de mesquinhez.»
- «Mérito seja entretanto reconhecido a
Castelo Melhor que se tornara o verdadeiro governante, pois reorganizou as finanças e
praticamente completou a obra da Restauração vencendo os
espanhóis no Ameixial em 1659, em Castelo Rodrigo em 1664 e em Montes Claros em
1665.»
O capítulo 6 contém as
referências às andanças de Vieira, liberto das garras da Inquisição, em Roma,
na busca do “reconhecimento da soberania portuguesa (só obtido em 1669,
pelo papa Clemente IX) e de um salvo-conduto que o tornasse a ele próprio
imune à famigerada Inquisição”, referências à amizade com Cristina da
Suécia, ao confronto entre o universo cultural de modernização e progresso no estrangeiro
e o universo português tacanho, dogmático e cada vez mais envilecido e distanciado daquele,
referência aos muitos sofrimentos de Vieira no Brasil, à sua morte, em 18 de
Julho de 1697.
Termina o
livro com a frase “EXSURGE DEUS, JUDICA CAUSAM TUAM”, «inscrição latina no
lintel da porta principal do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Évora,
que em português comum significa: LEVANTA-TE DEUS , JULGA A TUA CAUSA»
Depreende-se
que, na opinião de Salles da Fonseca, o julgamento de Deus será bem positivo,
pois só uma admiração grande por uma figura tão extraordinária possibilitaria
um tão árduo trabalho, com a transcrição do emaranhado das trovas do Bandarra e
a densa argumentação de Vieira comprovativa das profecias daquele.
Vários
excertos apetecia citar da obra “EXSURGE, DEUS”, título com o seu quê de irónico, de
quem não receia o julgamento. Transcrevo o seguinte passo tão expressivo da argúcia
narrativa e argumentativa de Salles da Fonseca:
«Pregação
da Palavra ou doutrinação política? Divinização do poder régio? Houve quem
gostasse de ouvir, a começar pelo próprio Rei; houve quem não ouvisse bem o que
foi dito pois estaria mais interessado em ser visto na Capela Real como membro
da Corte do que prestar atenção a um sermão tão comprido . . . mal disfarçando um
ou outro bocejo; houve quem não entendesse nada do que foi dito por estar
munido de capito diminutia e as rendas e bordados serem o motivo do raciocínio
mais elaborado que alcançaria; mas também houve quem entendesse muito bem o que
ouviu e não gostasse da teologia da profecia. Julgar-se-ia o novo Pregador
oficial da Corte um par de Nostradamus? Disparate; não passava de um
bandarreiro qualquer vindo lá dos sertões. ( Alusão pejorativa a Gonçalo Eanes,
o Bandarra, sapateiro de Trancoso, trovador, profeta: 1500? -1556 dos brasis
falando guaranis e sem hábitos de convivência com pessoas civilizadas. Então o
Rei não tinha cá Padres capazes de servirem na Corte? Logo tinha que dar o
cargo a um índio cheio de sotaques!
As
críticas motivadas pela inveja podem ser infundadas e, portanto, injustas mas produzem
resultados habitualmente funestos. É típico de Portugal apear qualquer um que
se distinga em vez de o aplaudir. Não se trata de uma questão teológica ou
sequer biológica mas apenas de um tique de mediocridade. Não será esta uma das
causas principais do nosso atávico subdesenvolvimento? E há quem diga que
Portugal é um País muito católico…a inveja é pecado e, afinal, é por cá tão
costumeira. Grandes católicos ou ignaros e mesquinhos? Se a isso juntarmos a
coragem dos que rompem com a mediocridade e mesquinhez e emigram, dá para crer
que os que ficam são precisamente os que não têm coragem e se conformam com
essas mesmas mediocridade e mesquinhez. Portanto, os que ficam é porque têm de
seu ou porque são medíocres e mesquinhos. Ah! Também há os herdados que não
prestam e com alguma presteza “distribuem” a herança por credores e gatunos.
Terá sido exactamente por esse tipo de razões que D. João chamou António Vieira
para junto de si: ele não emigrara deliberadamente pois que era então uma
criança e se limitara a acompanhar os pais mas vira entretanto muitos outros horizontes,
tinha uma grande experiência de vida, experimentara a força da natureza em
naufrágios e nas florestas amazónicas, era um grande pregador e sobretudo já era
um herói da restauração portuguesa no Brasil. Bastaria esta última referência
para que D. João entendesse como sendo da mais elementar justiça dar a António
Vieira uma recompensa. E que melhor estatuto do que a de amigo do Rei e seu
embaixador especial? Mas, para além da recompensa, estava em causa o interesse
do então periclitante reino e esse, mais do que nunca, necessitava de homens
inteligentes, cultos, experientes e corajosos. Se a essas características se
juntasse a facilidade da palavra, tinha-se António Vieira em pessoa a ajudar o
seu Rei e amigo.»
Finalizo com
um conhecido excerto do “Sermão da Sexagésima”, desse autêntico virtuose
da palavra, que foi o P. António Vieira, excerto bem comprovativo, (no brilho
do seu discurso), de que mereceu inteiramente o entusiasmo e a dedicação de
Salles da Fonseca no trabalho extraordinário de divulgação que dele fez:
«Fábula tem
duas significações: quer dizer fingimento e quer dizer comédia; e tudo são muitas pregações deste tempo. São fingimento, porque são subtilezas e pensamentos aéreos, sem fundamento de verdade; são comédia, porque os ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como comediantes.
Uma das felicidades que se contava entre as do tempo presente era acabarem-se
as comédias em Portugal; mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se;
passaram do teatro ao púlpito. Não cuideis que encareça em chamar comédias a
muitas pregações das que hoje se usam. Tomara ter aqui as comédias de Plauto,
de Terêncio, de Séneca, e veríeis se não acháveis nelas muitos desenganos da
vida e vaidade do Mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais
verdadeiros e muito mais sólidos, do que hoje se ouvem nos púlpitos. Grande
miséria por certo, que se achem maiores documentos para a vida nos versos de um
poeta profano e gentio, que nas pregações de um orador cristão, e muitas vezes,
sobre cristão, religioso! Pouco disse S. Paulo em lhe chamar comédia, porque
muitos sermões há que não são comédia, são farsa.
Sobe talvez ao púlpito um pregador dos que professam ser mortos ao
Mundo, vestido ou amortalhado em um hábito de penitência (que todos, mais ou
menos ásperos, são de penitência; e todos, desde o dia que os professamos,
mortalhas); a vista é de horror, o nome de reverência, a matéria de compunção,
a dignidade de oráculo, o lugar e a expectação de silêncio; e quando este se
rompeu, que é o que se ouve? Se neste auditório estivesse um estrangeiro que nos
não conhecesse e visse entrar este homem a falar em público naqueles trajos e
em tal lugar, cuidaria que havia de ouvir uma trombeta do Céu; que cada palavra
sua havia de ser um raio para os corações, que havia de pregar com o zelo e com
o fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto e com as acções havia de fazer
em pó e em cinza os vícios. Isto havia de cuidar o estrangeiro. E nós que é o
que vemos? – Vemos sair da boca daquele homem, assim naqueles trajos, uma
voz muito afectada e muito polida, e logo começar com muito desgarro, a quê? –
A motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar finezas, a lisonjear
precipícios, a brilhar auroras, a derreter cristais, a desmaiar jasmins, a
toucar Primaveras, e outras mil indignidades destas.
Não é isto farsa mais digna de riso, se não fora tanto para
chorar? Na comédia o rei veste como rei e fala como rei; o lacaio veste como
lacaio e fala como lacaio; o rústico veste como rústico e fala como rústico;
mas um pregador, vestir como religioso e falar como... não o quero dizer, por
reverência do lugar. Já que o púlpito é teatro, e o sermão comédia se quer, não
faremos bem a figura? Não dirão as palavras com o vestido e com o ofício? Assim
pregava S. Paulo, assim pregavam aqueles patriarcas que se vestiram e nos
vestiram destes hábitos? Não louvamos e não admiramos o seu pregar? Não nos prezamos
de seus filhos? Pois porque não os imitamos? Porque não pregamos como eles
pregavam? Neste mesmo púlpito pregou S. Francisco Xavier, neste mesmo púlpito
pregou S. Francisco de Borja; e eu, que tenho o mesmo hábito, porque não
pregarei a sua doutrina, já que me falta o seu espírito?»
JUDICA
CAUSAM TUAM
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