«O
Desastre ortográfico» foi como Miguel de Sousa Tavares apelidou o seu “Não ao Acordo
Ortográfico” publicado no blog “A Bem da Nação”, transcrito do Expresso de
19 de Janeiro.
Texto
ditado pela indignação e suponho que pela tristeza, a que apus o breve
comentário que segue, tão inútil como o texto de Sousa Tavares, no deserto da
ignomínia que nos afunda sem remissão.
Eis o texto
de Sousa Tavares:
«O DESASTRE ORTOGRÁFICO»
«Em 1990, quando oito
países da CPLP assinaram o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, eu era director
da revista “Grande Reportagem” e assinei, conjuntamente com Vicente Jorge
Silva, então director do “Público“, e Miguel Esteves Cardoso, então director de
“O Independente”, uma declaração, publicada nos respectivos meios,
comprometendo-nos a não aplicar o dito acordo nas nossas páginas. Passados
vinte e três anos, não mudei de opinião relativamente ao AO: fundamentalmente,
continuo a não aceitar o facto consumado de um acordo saído do nada, a pedido
de ninguém, não negociado nem explicado aos principais utilizadores da língua —
autores, professores, editores, jornalistas — e imposto a dez milhões de
portugueses por uma comissão de sábios da Academia das Letras do Brasil e da
Academia das Ciências de Portugal.
Sempre temi a ociosidade
dos sábios e a tendência leviana dos governantes para legislarem a pedido das
modas intelectuais. Mas nunca pensei que uma nação que tinha levado a sua
língua às cinco partidas do mundo, chegando a ser a língua franca nos mares do
sudoeste asiático até ao dealbar do século XIX, fosse capaz de voluntariamente,
e invocando vagos interesses geo-comerciais, propor a sua submissão às regras
em uso num país onde levámos a língua que o unificou. Por outro lado, não fui
sensível ao argumento de que as grafias mudam (sem ser naturalmente) e ao
exemplo, tantas vezes esgrimido, do ‘ph’ reduzido a ‘f’ pelo AO de 1945 (que o
Brasil nunca aplicou, como também não aplicou o anterior, de 1931…). Não
alcanço que extraordinário progresso se consumou ao deixar de se escrever
“pharmácia”, a troco da “farmácia”, e acho seguramente intrigante que idêntico
progresso não tenha contagiado, por exemplo, franceses e ingleses. que
continuam a escrever a mesma palavra com ph. Também nunca me convenceu o
argumento de que o AO facilitaria a penetração da literatura portuguesa nos
PALOP e no Brasil, impossível de alcançar sem ele.
Quanto aos PALOP, basta o
facto da recusa de Angola e Moçambique de, até hoje, ratificarem o AO,
preferindo escrever no português que lhes levámos, para desmentir essa pretensa
vantagem; e, quanto ao Brasil, perdoem-me a imodéstia de invocar o meu
testemunho pessoal de quatro livros lá editados, todos com a referência de que
“por vontade do autor, manteve-se a grafia usada em Portugal” — e sem que isso
tenha prejudicado de alguma forma a sua edição, divulgação e venda.
Oito países falantes de
português assinaram o AO de 1990, mas como, após anos de espera em vão, apenas
quatro o tinham ratificado, esses quatro decidiram, em 2008, que eram
suficientes para o fazer entrar em vigor. O AO, que entre nós começou a vigorar
aos bochechos em 2009, é, assim, e antes de mais, inválido, resultante de uma
golpada jurídica não prevista no tratado inicial, que apenas confirmou o
voluntarismo idiota e o abuso político com que todo o processo foi conduzido.
Porque nunca conseguiu convencer quem devia, o AO foi imposto manu militari,
por governantes saloios, desprovidos de coragem para enfrentar os lóbis da
“cultura” e convencidos de que a força da lei há-de sempre acabar por triunfar
sobre a fraqueza da sem-razão. Surdos a todos os argumentos dos oponentes
(entre os quais o país deve uma homenagem de gratidão a Vasco Graça Moura),
desdenhosos perante o abaixo-assinado com 130.000 subscritores contra o AO, sem
um estremecimento de vergonha perante o editorial do “Jornal de Angola” do
Verão passado (que aqui citei na altura), onde se escrevia que, se Portugal não
defendia a sua língua, defendê-la-iam eles, os governantes acharam que o mais
importante de tudo era não desagradar ao Brasil, a cuja presumida vontade fora
dedicado o AO.
Mas eis que na iminência
de entrar em vigor plenamente no Brasil, em 1 de Janeiro passado, uma petição
com 30.000 assinaturas levou o Congresso a pedir e Dilma Rousseff a aceitar a
suspensão da sua entrada em vigor por três anos, para que melhor se medite no
diktat dos sábios. E chegámos assim à situação actual, verdadeira parábola
sobre o destino da sobranceria: neste momento, há três grafias oficiais da
língua portuguesa — a que vigora em Angola, Moçambique, Timor, e que é a anterior
ao AO; a grafia brasileira que é a mesma de sempre, resultante do não
acatamento de nenhum dos três acordos ortográficos assinados connosco, ao longo
de 60 anos; e a de Portugal, que, com excepções ainda autorizadas, é resultante
do AO de 1990 — feito, segundo diziam, para “unificar a língua”, agradar aos
brasileiros e não perder influência em África! É notável, é brilhante, é mais
do que prometia a estupidez humana! Perante este facccccccccto, seria de
esperar que os nossos sábios e os arautos dos amanhãs que cantariam no
português por eles unificado pintassem a cara de preto e viessem pedir
desculpas públicas. Eu dar-lhes-ia como castigo a conversão ao AO do “Grande
Sertão, Veredas”, de Guimarães Rosa.
Porque agora, digam-me
lá, o que faremos nós, depois de termos obrigado, e quase arruinado, os nossos
editores a converterem em português do AO todos os livros editados? Depois de
termos tornado obrigatórias no ensino as regras do AO, desde a época passada?
Depois de termos convencido prestigiadas instituições, como este jornal, a
submeterem-se ao Conselho de Ministros? Vamos, como legalmente previsto, tornar
o AO universalmente obrigatório para todos a partir de 2015, vergando de vez os
lusitanos que ainda resistem, sem saber se os brasileiros farão o mesmo no ano
seguinte? Vamos correr o risco de ficar a escrever numa grafia em que mais
nenhum país falante da nossa língua escreverá? Vamos oferecer um banco aos
angolanos e a TAP aos brasileiros, em troca de eles se renderem e terem pena da
nossa solidão? Vamos acolher a Guiné Equatorial na CPLP contra a jura de
ratificarem o AO? Vamos exigir aos ilustres embaixadores aposentados da CPLP o
mesmo destemor a defender o AO de que deram mostras a enfrentar o governo de
narcotraficantes da Guiné-Bissau? Ou vamos conformarmo-nos a ter uma geração de
pais que escreve de uma maneira e uma de filhos que escreve de outra maneira?
Porque uma coisa é
garantida: a arrogância dos poderosos não conhece arrependimento. Eles jamais
voltarão atrás, reconhecendo que se enganaram, que se precipitaram, que foram
atrás de vozes de sereias, que se esqueceram de que há coisas que nenhum país
independente cede sem estremecer: o território, o património, a paisagem, a
língua. Trataram isto como coisa menor, como facto herdado e consumado, de
ministro em ministro, de governo em governo, de parlamento em parlamento, de
Presidente em Presidente.
Partiram do princípio de
que os portugueses comem tudo, desde que bem embrulhado em frases
grandiloquentes, com a assinatura dos influentes e a cumplicidade dos
prudentes. Mas, dêem agora as voltas que quiserem dar aos acordos que assinaram
e à língua que lhes cabia defender e não trair, cobriram-se de ridículo. Está
escrito nos livros de História: um pais que se humilha para agradar a terceiros,
arrisca-se a nada recolher em troca, nem a gratidão dos outros nem o respeito
dos seus. Apenas lhe resta o ridículo. Oxalá ele chegasse para matar de vez o
triste Acordo Ortográfico!
Miguel de Sousa Tavares
Eis o meu comentário:
«Nunca o ridículo matou ninguém, que o digam as Preciosas
Ridículas de Molière que até contribuíram para forjar um estilo que alastrou, o
preciosismo. Preciosismo tem a ver com vaidade, geralmente fruto de
pretensiosismo, de arrogância surgindo do vazio, da ignorância, mas também do
falso poder que ninguém domina. Os governantes actuais, que já têm bastante
sarna para se coçarem, embora anteriormente se tenham mostrado avessos às
idiotices do AO, não mais se pronunciaram sobre o assunto, agora tabu. E as
inteligências brilhantes estão-se nas tintas. Somos pequenos, vaidosos de
proezas antigas, mas a pequenez permaneceu. Quem pode, pode, por pequeno e
ridículo que seja. Não dá por isso.»
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