“De profundis…”
Naturalmente,
um excelente estudo de Pulido Valente, sobre aqueles tempos da nossa revolução
de trazer por casa, que repõe a história segundo a sua forma sagaz e
simultaneamente desdenhosa contra gregos e troianos, doutores implicados no
processo, tropas em fuga de deveres, Cunhal e comandita armadilhada de alguma
experiência de terreno, dos tempos estalinistas, um Mário Soares corajoso
lançando-se nos cornos dessas misérias, safando-nos do lodaçal em que nos
queriam afundar os zeladores do povo livre, o que em grande parte conseguiram,
pelo menos nos territórios das colónias, com a libertação dos povos, esmagados
pelos novos governantes seus naturais, esses, sim, seguindo a doutrina que os fez
ganhar a sua guerra descolonizadora e o esmagamento das respectivas massas,
mantidas no lodo. Mas essas facetas nada contam para VPV, que defende bem o seu
herói, aquele que ajudou a nação à libertação do fascismo e posteriormente do
comunismo, outra ditadura mascarada de zelo populista.
Realmente,
lembro-me de que Mário Soares, com o seu compadre Almeida Santos, lá andaram pela
Zâmbia, a travar conversações com o Samora Machel para a descolonização eficaz
de Moçambique, até o disse num livrinho que publiquei em Moçambique, em 74 - “Pedras
de Sal” - a respeito do Samora Machel, “que quando viaja para a Zâmbia
para travar as conversações vai no avião
particular do Kaunda e é recebido no palácio deste com o estatuto, enquanto o
desprezado Mário Soares fica no hotel sem avião, coitado, por falta do
estatuto.» (in “E portanto…”). Daqui se vê que Mário
Soares era arrojado e despachado, merecendo a estima de VPV, e a nossa, por
adesão póstuma, feita mais consciente após estes estudos notáveis de Vasco
Pulido Valente:
O Diário de Vasco
Pulido Valente
Uma democracia
contra a vontade do PC e do MFA
Observador, 28/1/2017
Não
podia haver uma guerra civil, mas podia haver uma matança e algumas figuras
justificadamente trataram de se esconder ou de tomar precauções. Soares, com
a cabeça a prémio, foi à Alameda.
Tirando
as fantasias de Spínola, havia em 26 de Abril de 1974 três forças
políticas: o Partido Comunista (que tinha um programa), o MFA
(que estava armado) e Mário Soares, que a Europa conhecia e estimava.
No I Governo Provisório, Soares foi ministro dos Negócios Estrangeiros,
com o encargo de “negociar” a descolonização (na balbúrdia dos tempos a
trapalhada era quase uma regra). Muita gente o criticou depois, sem perceber
que nenhuma “negociação” era possível quando o exército se insurreccionara
precisamente para sair de África. Ficava a Soares, pela ausência de
outro qualquer aliado, o trabalho de estabelecer uma democracia contra a
vontade do PC e do MFA.
O
PC não queria impor aqui o “socialismo real” da Europa de Leste, que os russos
não podiam sustentar. Como Cunhal se fartou de explicar, só queria uma “democracia
de tipo diferente”, um conceito muito falado na guerra civil de Espanha e agora
tirado do ferro-velho da seita. Em que consistia essa antiga
monstruosidade? No meio da retórica do costume, consistia em
fazer o Estado tomar conta dos “commanding heights” da economia (a energia –
incluindo o petróleo – a banca, as seguradoras, a indústria pesada e as grandes
propriedades fundiárias do sul). Ao resto de Portugal, o PC dava licença
de ir à sua vidinha, com os sindicatos submetidos à CGTP e a administração
central e local ocupada por militantes e por “amigos com provas”.
O
bom povo compreendeu que este magnífico plano o levaria rapidamente à miséria e
uma larga parte dos militares, duramente analfabetos, acharam que na
sociedade do dr. Cunhal ficariam ao abrigo de qualquer represália, excepto
evidentemente das represálias que o dr. Cunhal lhes resolvesse aplicar por
desobediência ou “desvio” político. O problema do dr. Soares era
instilar um pouco de bom senso e realismo em algumas cabeças do MFA; e ir
resistindo ao assalto do PC ao Estado e às “culminâncias” da economia, uma
benemérita actividade a que a “inteligência indígena” prestou os seus zelosos
serviços.
Posto
isto, o PS precisava também de reforçar a sua organização e de se estender a
todo o país. Em 1974, o partido não ia além de algumas venerandas figuras da I
República, de alguma Maçonaria e de cinco ou seis dúzias de drs., espalhados
pelo Porto e por Lisboa. A geração da crise académica rejeitou quase
completamente o que lhe parecia ser um instrumento do “sub-imperialismo” alemão.
Não achava o PS “revolucionário” que lhe chegasse e fundou o MES (uma sombra
do MIR chileno) e, quando o MES se desfez numa inqualificável loucura, os mais
sensatos (11 ou 12, se isso) passaram a almoçar juntos num hotel de Lisboa, sob
a designação de GIS (ou Grupo de Intervenção Socialista). Escusado será dizer
que não intervieram em nada de consequente.
Mas,
mesmo sem eles, Soares conseguiu suster ou moderar os golpes — porque eram
verdadeiros golpes, preparados na sombra e executados à revelia dos poderes
nominalmente legais — do PC e do MFA. Durante meses pôs na rua
manifestações cada vez maiores de um povo que, ao contrário do “slogan”, se
começava a desunir. Quando uma greve de tipógrafos (não de jornalistas)
fechou o jornal socialista “A República”, Portugal e a Europa
compreenderam de uma vez quem eram o MFA e o dr. Cunhal.
E
o dr. Cunhal e o MFA ficaram mais longe de resolver o seu grande problema: a
eleição para a Constituinte. Prometida pelo programa original dos
militares, sinal para o mundo da boa fé dos “revolucionários” do dia essa
eleição tinha de se fazer e, simultaneamente, não se podia fazer. Se por
acaso se fizesse, ganhava Soares e todo o plano de Cunhal e dos seus camaradas
do MFA iria abaixo. E se por acaso não se fizesse a ilegitimidade do PREC
(como na altura sentimentalmente se chamava ao delírio da esquerda) não deixaria
a mais leve dúvida a ninguém. Felizmente uma parte do MFA, que se
recusava a ser o braço forte da repressão comunista e a receber ordens do PC,
insistiu na eleição e calou a facção mais excitada do exército. Em
Abril de 1975, o povo desunido votou: à volta de 38 por cento em Soares e à
volta de 12 por centro no PC.
Mas
nem perante esta arrasadora evidência a “festa” terminou. À boa
maneira leninista, a televisão e a imprensa insultavam e caricaturavam a
Assembleia, houve cercos de operários indignados por causa dos representantes
do país se atreverem a discutir os problemas do país, Cunhal garantia a
uma senhora italiana (muito célebre nessa altura) que em Portugal nunca haveria
uma “democracia burguesa”. A “inteligência” de cá desceu a abismos de indignidade
a que raramente alguém desceu e a seguir andou anos a comprar do seu bolso os
seus próprios livros, com o fim de purificar o mercado e de aparecer limpinha
ao dr. Mário Soares.
A
atmosfera de medo e de intimidação não parou com as eleições de 75. As
manifestações continuavam, a censura apertou nos jornais, na RTP e nas rádios. José
Saramago apelava à revolta no “Diário de Notícias”. Quem falava no parlamento
ou em votos era um puro “burguês” dedicado a esmagar as “classes
trabalhadoras”. E começaram a correr rumores de guerra civil. Os
rumores eram absurdos por três razões. Primeiro, porque nenhuma das
partes tinha dinheiro. Segundo, porque a “revolução” indisciplinara as tropas
do PC (e a URSS proibira disparates). Terceiro, porque a gente de Otelo não
passava de uma mascarada sem valor militar. Não podia haver uma
guerra civil, mas podia haver uma matança e algumas figuras
justificadamente trataram de se esconder ou de tomar precauções. Soares, com
a cabeça a prémio, foi à Alameda e a seguir ajudou, à sua maneira, o golpe
de 25 de Novembro, que removeu de cena os partidários do PREC.
Infelizmente,
o dito PREC deixara Portugal em ruínas e os militares no centro do regime
político. O Presidente da República (Eanes) comandava efectivamente o exército.
O Conselho da Revolução, sem espécie de mandato, aprovava ou desaprovava a
legislação da Assembleia, com o propósito de preservar intacta a sua preciosa
“revolução”. Mas Soares, Balsemão, Freitas do Amaral e Mota Pinto, entre si e
contra algumas facções internas no PS e mesmo no PSD, acabaram por meter os
militares nos quartéis, sem lhes deixar um vestígio de influência política.
Nesse
ponto crítico, Eanes, a meses de sair de Belém, decidiu organizar um novo
partido para ele e para os amigos: o PRD. Mas Soares, entretanto eleito
Presidente da República, não o deixou viver. À primeira oportunidade dissolveu
a Assembleia, sabendo perfeitamente que ia entregar uma maioria a Cavaco. E, de
facto, entregou, porque o PRD juntava só o oportunismo e ressentimento e sem
poder não valia um cêntimo. Soares viu desfilar os seus inimigos íntimos pela
televisão. Mas ganhou. Ganhámos nós.»
Já
agora, concluo o texto “Admiração” (in “Cravos Roxos”,
1981), que iniciei no artigo anterior, de Vasco Pulido Valente sobre Mário
Soares, para complementar um retrato de um ser aparentemente bonacheirão, mas
caprichoso e obstinado, habituado a conseguir. E conseguiu. Pelo menos é o que informa Vasco Pulido Valente, ao
finalizar a sua ponderada análise, com a vitória - de Mário Soares e nossa - o
que eu de certo modo também dera a perceber no meu texto, feito “in loco”
e “in illo tempore”:
«…..Quarta
causa: A sua voz calma e monocórdica, medindo os argumentos sem dificuldade aparente,
tanto para impor o regresso dos colonos, como para defender honradamente a
entrega de Angola aos três movimentos negros disputadores, e não só a um, como
preconizavam os adeptos das esquerdas inicialmente, e aceitaram todos os
adeptos posteriormente, depois da escrupulosa hesitação salvaguardadora das
responsabilidades.
Quinta:
o aspecto “raffiné” dos seus fatos de
bom corte, esclarecedores a respeito das suas boas viagens - sempre pelo norte,
jamais pelo sul - e originando uma figura bem arranjada e limpa e extremamente
fotogénica em qualquer posição.
Finalmente,
o facto de o doutor Mário Soares se afirmar socialista mas com generosas
tendências pluralistas causa a minha admiração ilimitada, a adicionar às demais
causas citadas, rendendo-me ao seu poder subjugante, impresso airosamente há
muito no seu impecável V.
Com
efeito, dentro de um conceito de democracia pluralista, ou de pluralismo
democrático, ele deverá admitir todas as opiniões, e dessa forma mal defenderá
os seus pontos de vista. Felizmente, não é isso o que a gente ouve, pois na
mesa redonda com o doutor Álvaro Cunhal ele defendeu esses pontos sagazmente na
sua voz embaladora e não deixou de atacar da mesma maneira, apesar do
pluralismo, os pontos do seu venerável opositor.
Depois
da intentona de Novembro, é certo, abriu de novo os braços ao camarada Dr.
Cunhal, por causa do pluralismo, mas na propaganda eleitoral não deixa de
apontar os defeitos dos vários partidos, realçando as qualidades intrínsecas do
seu.
Por
estas razões é que me custa compreender o pluralismo dele e dos seus camaradas
rivais, causa da minha admiração ilimitada, mas a minha politização é ainda
muito recente, devo confessar, com poucas viagens e todas pelo sul.
Com
o meu retorno ao norte, contudo, navegarei certamente em breve no mesmo
conceito pluralista - único campo actual da nossa navegação, mas muito fértil -
mais substancial aquele do que o conceito unitário. E do que a gente agora mais
precisa, segundo se diz, é de substância, Deus no-la dê.
Mas
se Deus não der, há sempre gente generosa por esse mundo. Não vamos morrer de
fome assim.»
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