Excertos
finais da reportagem de Isabela Figueiredo
“O Regresso impossível a Moçambique” (Ípsilon,
Público, 27/1/17).
«…
Encontro-me com portugueses que trabalham no Maputo, com moçambicanos que
nasceram após a independência, com pessoas da minha idade ou um pouco mais
velhas que permaneceram no país após a independência, suportando tempos
duríssimos de incerteza, insegurança e fome. Escuto as suas histórias e através
do que me vão contando posso reviver os últimos dias do império e os
primeiros da revolução, na qual também acreditei, mas cujo fim testemunhei
à distância. Relataram-me a provação do que foi a guerra civil. Disfarçam mal a
actual descrença nas instituições. Percebo-a pelos não-ditos e pelos hábitos.
É-me confirmada quando enuncio a constatação. O país não funciona. A educação é
ineficaz. Chega-se ao 12º mal sabendo ler e escrever. A saúde não tem
capacidade de resposta, pelo que os moçambicanos com algum poder financeiro
escolhem tratar-se na África do Sul e aí ter os seus filhos. Os curandeiros
ocupam-se da saúde. Os feiticeiros da justiça. O tribalismo voltou em força,
tal como o lobolo e a poligamia, após os anos de proibição marxista.
Terminados
o colonialismo português e a guerra civil, os moçambicanos permaneceram vítimas
de conflitos armados, fome, miséria, ausência de liberdade de expressão e domínio
das potências estrangeiras de cujo financiamento dependem.»
E
surge a referência à crise económica e
política que “não agrada a ninguém”, naturalmente, à corrupção,
ao partido no poder que também está descontente , “inclusive a elite
que dele depende directa ou indirectamente”, aos “votos roubados”
nas eleições, à desesperança de todos,
que não acreditam em mudanças pois que “a Renamo ainda é pior”,
ao “futuro do país” para o qual prevê apenas “sangue, muito sangue”.
Mas, como aqui, também por lá ”o povo é sereno “, pois há sempre um Pinheiro
de Azevedo apaziguador nestas coisas do sangue, que as carnificinas são
incompatíveis com os climas amenos como o nosso, ou perfumados pelas acácias e
jacarandás citadinos de lá, como bem frisa Isabela Figueiredo na sua
reportagem escrita 41 anos depois da sua vinda de desenraizada, lá como cá , “O
regresso impossível a Moçambique”.
Mas,
pela demonstração discursiva da sua personalidade - literária e psicológica -, se
ela fosse mais velhinha quando aconteceu a descolonização, comportar-se-ia como
as outras “democratas” que refiro num
texto meu da altura, publicado em “Pedras de Sal”: «As democratas chiques
vão às sedes dos democratas, tal como dantes era chique ir-se às recepções e
aos chás do Governo Geral”. De facto, ela orgulhosamente afirma (apesar da
simpatia pelo povo dominado pelo branco de outrora, e mais ainda pelo negro de
agora - mas de que ela se distancia com a autoridade da verdadeira democrata de
hoje, afirma “não ser presa para o dente” do admirador atrevido e
fortuito do “chapa” que apanhou para a Costa do Sol das suas recordações
de menina - local bem diferente, como tudo o resto em Maputo, onde estradas e
bairros citadinos servem de acampamento e local de venda, as casas dos bairros
chiques bem gradeadas contra os assaltos, onde se vive como em guetos. Mas parte
dos novos habitantes são estrangeiros, que foram para lá preencher o nosso
abandono democrático, ocupando posições de prestígio económico, pouco se lhes
dando que os negros vivam nas ruas ou que governem renamos ou frelimos. A nós,
por cá, que estamos a salvo, também não se nos dá que esses desconcertos
sucedam por lá, embora continuemos a dizer bem deles e a fazer coisas
fascinantes como esses programas da Catarina Furtado sobre os Palops e outros, cheios de simpatia
humana para com os desditosos e os que se sacrificam para os tornar mais aptos
e felizes, programas que Catarina justifica em lindo texto de amor e gratidão,
- «Príncipes do Nada» - que retirei da Internet e que transcrevo,
o qual vai ao encontro, na sua beleza e emoção - (a intenção política apenas subjacente
nos tais) - das palavras finais da reportagem
tão pessoal e sensível de Isabela Figueiredo:
«A
desesperança que testemunhei ao longo das semanas que passei no Maputo não é
compatível com a realidade de uma terra tão agraciada pelos deuses em condições
naturais. Ter regressado 41 anos depois ajudou-me a compreender melhor onde e a
quem pertenço. Não sei se poderei voltar, ou se o desejarei no futuro, mas na
minha terra adoptiva gozo da liberdade de expressão pela qual os moçambicanos
anseiam e posso ao menos falar em nome daqueles cujo testemunho escutei,
esperando ser escutada por quem toma decisões na terra que um dia também foi
minha. Não por ter aí nascido, mas porque a nobreza do povo com o qual
contactei na infância merece ser honrada.
As
ruas continuam a ser semeadas de acácias, jacarandás e frangipanis que exalam o
seu perfume ao final da tarde. Por todo o lado, as frutas, a cor e o caos que
eu também sou. A mesma terra igual, mas tudo é outro.»
E
no entanto, não parece a terra a mesma, a linda catedral sempre branquinha das
minhas recordações transformada num quase pardieiro que o tempo vai carcomendo,
assim como a Câmara ou a Estação dos Caminhos de Ferro, considerada a sétima das
mais belas do mundo, em 2007, degradação que as fotos da reportagem bem revelam,
no seu confronto do antes e do depois. Mas o meu grande desejo vai para que os
confidentes moçambicanos de Isabela não venham a sofrer represálias por conta
das inconfidências desta.
Príncipes do Nada
Catarina
Furtado
“Príncipes
do Nada” nasceu há sete anos na sequência de uma vontade partilhada entre mim,
enquanto Embaixadora de Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a
População (UNFPA), e a RTP, estação de serviço público. O programa
foi desenvolvido em parceria com o realizador Ricardo Freitas da produtora
Até ao Fim do Mundo. Depois de ter sido acarinhado pelos directores Nuno
Santos e José Fragoso, é agora sob a direcção de Hugo Andrade
que chega à grelha do canal 1 a terceira série de 13 programas. Em
cada episódio, mergulhamos em realidades dramáticas através de exemplos de
esperança.
Quem
são os Príncipes do Nada?
Quando
criámos o conceito do nosso programa e andámos à procura de um nome, as
palavras que nos apareciam tinham sempre a ver com a necessidade de, ao
informarmos, querermos também fazer uma espécie de agradecimento a todas as
pessoas que trabalham incansavelmente para construir um mundo mais justo.
São
os voluntários, são os trabalhadores de ONG, associações, agentes da
Cooperação Portuguesa, missionários religiosos, são todos aqueles (na maioria
portugueses) que deixam a sua zona de conforto para se debruçarem na ajuda ao
desenvolvimento (ou de emergência) em países cujas culturas são muito diferentes
das suas.
Príncipes
do Nada são também pessoas extraordinárias que, sem recursos,
sem regalias e tantas vezes sem apoios dão a volta às adversidades da vida e
através de uma força e persistência invulgares conseguem lutar pelas causas em
que acreditam e fazem realmente a diferença nos seus países de origem.
Mas
Príncipes do Nada podem também ser (como tantos espectadores já nos disseram)
as meninas, os meninos, os/as jovens, as mulheres e os homens para quem todo o
trabalho que divulgamos é dirigido.
Não
se nasce pobre, está-se pobre. As desigualdades acontecem também por
discriminação mesmo quando se desenham as políticas de intervenção.
Por isso, Príncipes do Nada são também aqueles que conseguem colocar
o seu apelo em voz alta, na ordem do dia, nas agendas nacionais e
internacionais. Príncipes do Nada ajudam a reflectir, a mudar
mentalidades, com uma preocupação central de promover a cidadania e os Direitos
Humanos. Mesmo sem Nada pode ser-se TUDO, até príncipes e princesas.
E,
sensível que sou também, concluo o meu
texto de apreço sobre as democratas do passado e as do presente, como pessoas
generosas que são, para com todos os desditados:
«Eu
fico extasiada a olhá-las, gosto muito das suas aparências, que se vê logo
serem do mais puro democrata, ou seja, do mais puro chiquismo». (in «Pedras
de Sal»)
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