sábado, 4 de fevereiro de 2017

“De profundis…”



“De profundis…”
Naturalmente, um excelente estudo de Pulido Valente, sobre aqueles tempos da nossa revolução de trazer por casa, que repõe a história segundo a sua forma sagaz e simultaneamente desdenhosa contra gregos e troianos, doutores implicados no processo, tropas em fuga de deveres, Cunhal e comandita armadilhada de alguma experiência de terreno, dos tempos estalinistas, um Mário Soares corajoso lançando-se nos cornos dessas misérias, safando-nos do lodaçal em que nos queriam afundar os zeladores do povo livre, o que em grande parte conseguiram, pelo menos nos territórios das colónias, com a libertação dos povos, esmagados pelos novos governantes seus naturais, esses, sim, seguindo a doutrina que os fez ganhar a sua guerra descolonizadora e o esmagamento das respectivas massas, mantidas no lodo. Mas essas facetas nada contam para VPV, que defende bem o seu herói, aquele que ajudou a nação à libertação do fascismo e posteriormente do comunismo, outra ditadura mascarada de zelo populista.
Realmente, lembro-me de que Mário Soares, com o seu compadre Almeida Santos, lá andaram pela Zâmbia, a travar conversações com o Samora Machel para a descolonização eficaz de Moçambique, até o disse num livrinho que publiquei em Moçambique, em 74 - “Pedras de Sal” - a respeito do Samora Machel, “que quando viaja para a Zâmbia para travar as conversações  vai no avião particular do Kaunda e é recebido no palácio deste com o estatuto, enquanto o desprezado Mário Soares fica no hotel sem avião, coitado, por falta do estatuto.» (in E portanto…”). Daqui se vê que Mário Soares era arrojado e despachado, merecendo a estima de VPV, e a nossa, por adesão póstuma, feita mais consciente após estes estudos notáveis de Vasco Pulido Valente:
O Diário de Vasco Pulido Valente
Uma democracia contra a vontade do PC e do MFA
Observador, 28/1/2017
Não podia haver uma guerra civil, mas podia haver uma matança e algumas figuras justificadamente trataram de se esconder ou de tomar precauções. Soares, com a cabeça a prémio, foi à Alameda.
Tirando as fantasias de Spínola, havia em 26 de Abril de 1974 três forças políticas: o Partido Comunista (que tinha um programa), o MFA (que estava armado) e Mário Soares, que a Europa conhecia e estimava. No I Governo Provisório, Soares foi ministro dos Negócios Estrangeiros, com o encargo de “negociar” a descolonização (na balbúrdia dos tempos a trapalhada era quase uma regra). Muita gente o criticou depois, sem perceber que nenhuma “negociação” era possível quando o exército se insurreccionara precisamente para sair de África. Ficava a Soares, pela ausência de outro qualquer aliado, o trabalho de estabelecer uma democracia contra a vontade do PC e do MFA.
O PC não queria impor aqui o “socialismo real” da Europa de Leste, que os russos não podiam sustentar. Como Cunhal se fartou de explicar, só queria uma “democracia de tipo diferente”, um conceito muito falado na guerra civil de Espanha e agora tirado do ferro-velho da seita. Em que consistia essa antiga monstruosidade? No meio da retórica do costume, consistia em fazer o Estado tomar conta dos “commanding heights” da economia (a energia – incluindo o petróleo – a banca, as seguradoras, a indústria pesada e as grandes propriedades fundiárias do sul). Ao resto de Portugal, o PC dava licença de ir à sua vidinha, com os sindicatos submetidos à CGTP e a administração central e local ocupada por militantes e por “amigos com provas”.
O bom povo compreendeu que este magnífico plano o levaria rapidamente à miséria e uma larga parte dos militares, duramente analfabetos, acharam que na sociedade do dr. Cunhal ficariam ao abrigo de qualquer represália, excepto evidentemente das represálias que o dr. Cunhal lhes resolvesse aplicar por desobediência ou “desvio” político. O problema do dr. Soares era instilar um pouco de bom senso e realismo em algumas cabeças do MFA; e ir resistindo ao assalto do PC ao Estado e às “culminâncias” da economia, uma benemérita actividade a que a “inteligência indígena” prestou os seus zelosos serviços.
Posto isto, o PS precisava também de reforçar a sua organização e de se estender a todo o país. Em 1974, o partido não ia além de algumas venerandas figuras da I República, de alguma Maçonaria e de cinco ou seis dúzias de drs., espalhados pelo Porto e por Lisboa. A geração da crise académica rejeitou quase completamente o que lhe parecia ser um instrumento do “sub-imperialismo” alemão. Não achava o PS “revolucionário” que lhe chegasse e fundou o MES (uma sombra do MIR chileno) e, quando o MES se desfez numa inqualificável loucura, os mais sensatos (11 ou 12, se isso) passaram a almoçar juntos num hotel de Lisboa, sob a designação de GIS (ou Grupo de Intervenção Socialista). Escusado será dizer que não intervieram em nada de consequente.
Mas, mesmo sem eles, Soares conseguiu suster ou moderar os golpes — porque eram verdadeiros golpes, preparados na sombra e executados à revelia dos poderes nominalmente legais — do PC e do MFA. Durante meses pôs na rua manifestações cada vez maiores de um povo que, ao contrário do “slogan”, se começava a desunir. Quando uma greve de tipógrafos (não de jornalistas) fechou o jornal socialista “A República”, Portugal e a Europa compreenderam de uma vez quem eram o MFA e o dr. Cunhal.
E o dr. Cunhal e o MFA ficaram mais longe de resolver o seu grande problema: a eleição para a Constituinte. Prometida pelo programa original dos militares, sinal para o mundo da boa fé dos “revolucionários” do dia essa eleição tinha de se fazer e, simultaneamente, não se podia fazer. Se por acaso se fizesse, ganhava Soares e todo o plano de Cunhal e dos seus camaradas do MFA iria abaixo. E se por acaso não se fizesse a ilegitimidade do PREC (como na altura sentimentalmente se chamava ao delírio da esquerda) não deixaria a mais leve dúvida a ninguém. Felizmente uma parte do MFA, que se recusava a ser o braço forte da repressão comunista e a receber ordens do PC, insistiu na eleição e calou a facção mais excitada do exército. Em Abril de 1975, o povo desunido votou: à volta de 38 por cento em Soares e à volta de 12 por centro no PC.
Mas nem perante esta arrasadora evidência a “festa” terminou. À boa maneira leninista, a televisão e a imprensa insultavam e caricaturavam a Assembleia, houve cercos de operários indignados por causa dos representantes do país se atreverem a discutir os problemas do país, Cunhal garantia a uma senhora italiana (muito célebre nessa altura) que em Portugal nunca haveria uma “democracia burguesa”. A “inteligência” de cá desceu a abismos de indignidade a que raramente alguém desceu e a seguir andou anos a comprar do seu bolso os seus próprios livros, com o fim de purificar o mercado e de aparecer limpinha ao dr. Mário Soares.
A atmosfera de medo e de intimidação não parou com as eleições de 75. As manifestações continuavam, a censura apertou nos jornais, na RTP e nas rádios. José Saramago apelava à revolta no “Diário de Notícias”. Quem falava no parlamento ou em votos era um puro “burguês” dedicado a esmagar as “classes trabalhadoras”. E começaram a correr rumores de guerra civil. Os rumores eram absurdos por três razões. Primeiro, porque nenhuma das partes tinha dinheiro. Segundo, porque a “revolução” indisciplinara as tropas do PC (e a URSS proibira disparates). Terceiro, porque a gente de Otelo não passava de uma mascarada sem valor militar. Não podia haver uma guerra civil, mas podia haver uma matança e algumas figuras justificadamente trataram de se esconder ou de tomar precauções. Soares, com a cabeça a prémio, foi à Alameda e a seguir ajudou, à sua maneira, o golpe de 25 de Novembro, que removeu de cena os partidários do PREC.
Infelizmente, o dito PREC deixara Portugal em ruínas e os militares no centro do regime político. O Presidente da República (Eanes) comandava efectivamente o exército. O Conselho da Revolução, sem espécie de mandato, aprovava ou desaprovava a legislação da Assembleia, com o propósito de preservar intacta a sua preciosa “revolução”. Mas Soares, Balsemão, Freitas do Amaral e Mota Pinto, entre si e contra algumas facções internas no PS e mesmo no PSD, acabaram por meter os militares nos quartéis, sem lhes deixar um vestígio de influência política.
Nesse ponto crítico, Eanes, a meses de sair de Belém, decidiu organizar um novo partido para ele e para os amigos: o PRD. Mas Soares, entretanto eleito Presidente da República, não o deixou viver. À primeira oportunidade dissolveu a Assembleia, sabendo perfeitamente que ia entregar uma maioria a Cavaco. E, de facto, entregou, porque o PRD juntava só o oportunismo e ressentimento e sem poder não valia um cêntimo. Soares viu desfilar os seus inimigos íntimos pela televisão. Mas ganhou. Ganhámos nós.»

Já agora, concluo o texto “Admiração” (inCravos Roxos”, 1981), que iniciei no artigo anterior, de Vasco Pulido Valente sobre Mário Soares, para complementar um retrato de um ser aparentemente bonacheirão, mas caprichoso e obstinado, habituado a conseguir. E conseguiu. Pelo menos  é o que informa Vasco Pulido Valente, ao finalizar a sua ponderada análise, com a vitória - de Mário Soares e nossa - o que eu de certo modo também dera a perceber no meu texto, feito “in loco” e “in illo tempore”:

«…..Quarta causa: A sua voz calma e monocórdica, medindo os argumentos sem dificuldade aparente, tanto para impor o regresso dos colonos, como para defender honradamente a entrega de Angola aos três movimentos negros disputadores, e não só a um, como preconizavam os adeptos das esquerdas inicialmente, e aceitaram todos os adeptos posteriormente, depois da escrupulosa hesitação salvaguardadora das responsabilidades.
Quinta:  o aspecto “raffiné” dos seus fatos de bom corte, esclarecedores a respeito das suas boas viagens - sempre pelo norte, jamais pelo sul - e originando uma figura bem arranjada e limpa e extremamente fotogénica em qualquer posição.
Finalmente, o facto de o doutor Mário Soares se afirmar socialista mas com generosas tendências pluralistas causa a minha admiração ilimitada, a adicionar às demais causas citadas, rendendo-me ao seu poder subjugante, impresso airosamente há muito no seu impecável V.
Com efeito, dentro de um conceito de democracia pluralista, ou de pluralismo democrático, ele deverá admitir todas as opiniões, e dessa forma mal defenderá os seus pontos de vista. Felizmente, não é isso o que a gente ouve, pois na mesa redonda com o doutor Álvaro Cunhal ele defendeu esses pontos sagazmente na sua voz embaladora e não deixou de atacar da mesma maneira, apesar do pluralismo, os pontos do seu venerável opositor.
Depois da intentona de Novembro, é certo, abriu de novo os braços ao camarada Dr. Cunhal, por causa do pluralismo, mas na propaganda eleitoral não deixa de apontar os defeitos dos vários partidos, realçando as qualidades intrínsecas do seu.
Por estas razões é que me custa compreender o pluralismo dele e dos seus camaradas rivais, causa da minha admiração ilimitada, mas a minha politização é ainda muito recente, devo confessar, com poucas viagens e todas pelo sul.
Com o meu retorno ao norte, contudo, navegarei certamente em breve no mesmo conceito pluralista - único campo actual da nossa navegação, mas muito fértil - mais substancial aquele do que o conceito unitário. E do que a gente agora mais precisa, segundo se diz, é de substância, Deus no-la dê.
Mas se Deus não der, há sempre gente generosa por esse mundo. Não vamos morrer de fome assim.»

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